Por Draco
Stellamare, a.k.a Hercle Lupino
A
narrativa mítica das tradições não nasce a partir do nada. Ela é o resultado de
um longo processo de trocas, amálgamas, transliterações e traduções que ocorrem
com os simbolismos mágico-religiosos ao longo da história. Um perfeito exemplo
disso é a figura de São Cristóvão em sua representação cinocéfala (com cabeça
de cão), amplamente perseguida nos últimos séculos, mas ainda sobrevivente no
folclore e nas tradições de bruxaria europeias e diaspóricas. Essa figura, que
corrobora diversos e complementares mistérios, relaciona-se a representações
caninas, lupinas e cinocefálicas anteriores ao cristianismo, como as figuras do
deus lobo italiota que originou o romano Lupercus – ora representado com cabeça
de lobo, ora como fauno –, os cães da horda de Hécate ou Diana Trivia, e o
sincrético Hermanúbis do Egito helenizado.
Os cultos do cão e do lobo na península itálica são muito antigos, e já eram praticados por vários dos povos que habitaram o local antes da expansão política romana, como os lígures e os sabinos. Inicialmente, a divindade loba (ancestral do cão) não era muito diferente da Mãe-Ursa dos povos do sul: caracterizava-se pelo totemismo e por sintetizar uma deidade clânica, cosmologicamente central na visão de mundo do povo que a cultuava, e dotada de características tanto primordiais quanto apotropaicas. Com as movimentações entre esses diferentes povos e a assunção de um modelo religioso politeísta curvado aos centros de poder político e social que surgiam, tais divindades clânicas e locais passam a ser inseridas numa cosmologia onde adquirem um papel secundário ou derivativo em relação aos deuses principais dos dominadores políticos. É assim, resumidamente, que a figura primordial e primitiva do deus lobo – tanto em aspecto masculino quanto feminino – se desdobra em Lupercus (um deus que passa a ser considerado filho de Marte em alguns contextos, ou uma face de Sabazios, Dis Pater, Februo ou Fauno em outros) e as figuras lupínicas matriarcais como a heroína Valeria Luperca e a própria Lupa Capitolina, que nutriu Romulo e Remo.