quarta-feira, 16 de julho de 2025

A Sinergia e seu valor na Bruxaria Tradicional

 Por Draco Stellamare

A leitura de algumas passagens do livro Della Medicina, de Lisa Fazio, me trouxe um insight interessante sobre o papel que o coletivo desempenha no desenvolvimento dos saberes tradicionais e como até mesmo a sua estruturação prática depende das relações entre o praticante e o outro – sendo esse outro tanto o alvo da prática, quanto o auxiliar dela, um elemento humano ou não humano presente no mesmo contexto e todo o restante da teia de complexidades que os envolvem. A autora do livro menciona que a medicina folclórica italiana nasceu – como diversos saberes tradicionais de diferentes etnias – através de uma emergência de conhecimento propiciada pela sinergia de diversos seres: humanos (dentre os quais a relação entre muitas gerações que legaram conhecimento de múltiplas formas às gerações posteriores, e a relação entre membros de uma mesma comunidade que interferem e trocam entre si no mesmo espaço), não-humanos (como as plantas, animais e demais fatores naturais com os quais o humano se relaciona de forma muito profunda) e supernaturais (como espíritos, deidades, e outras presenças de cunho transcendental à matéria nua e crua, que fazem parte daquele complexo de relações).



La Danza - Guglielmo Zocchi (1874)

O uso da palavra sinergia é muito propício, pois ela vem de συνεργία que traduz o alinhamento entre duas partes que permite a manifestação de algo que ultrapassa suas individualidades. Ou seja, a união harmônica, sinérgica, dos seres que coabitam um mesmo espaço é superior à soma de suas partes individualmente consideradas. É com base nesse mesmo princípio que podemos entender a importância do coletivo tanto nas práticas da magia folclórica – de qualquer etnia e contexto – quanto nas bruxarias tradicionais.

Em um contexto folclórico a própria compreensão do que significa esse termo já demonstra a necessidade do coletivo – folk nada mais é do que um vocábulo inglês para “povo”, designando um coletivo de pessoas unido pelas mesmas características de tempo, local, ascendência etc. Assim a magia, a medicina, a arte e toda a cultura do povo são “folclóricas”. Não se faz algo folclórico sozinho, sem uma origem da qual os saberes tenham vindo e um outro – uma alteridade – para o qual se destinam. Tal como a própria noção de sacerdócio religioso implica no serviço em prol de uma comunidade ou no serviço que liga uma comunidade ao sagrado, um curador ou feiticeiro folclórico só existe plenamente em função de uma coletividade popular. Tal como não há sentido algum em exercer o ofício sacerdotal para o próprio umbigo, não há benzedeira que trabalhe somente para si mesma. Pelo contrário, é o reconhecimento popular, da comunidade, que enaltece a praticante das artes curativas como tal. Num certo sentido, se há algo como uma “validação” nas práticas folclóricas, essa validação certamente parte do povo, da família, do grupo, enfim, do reconhecimento comunitário.

Já quando entramos na seara da bruxaria tradicional os grupos assumem uma função ainda mais relevante. Isso porque o processo de formação do conhecimento não é apenas orgânico como ocorre no âmbito folclórico, mas é também linear e coordenado segundo uma agenda iniciática, um caminho estruturado com começo, meio e fim, que foi recebido de uma fonte espiritual, transmitido em uma cadeia viva, e é supervisionado – senão pelas pessoas que o integram, ao menos pelos espíritos tutelares da corrente. Além do papel essencialmente coletivo da tradição, que é soberano em qualquer vertente tradicional, aquelas que funcionam segundo uma lógica de grupo estruturado usufruem de uma outra dimensão na qual o coletivo adquire valor e relevância. Essa outra dimensão é a própria amplificação de poder, saber e oportunidades que advém da colaboração de muitos seres num mesmo coletivo. É a sinergia de iniciados, aprendizes, ancestrais e aliados espirituais, animais, vegetais e de outras tantas naturezas. É o complexo de seres que gravitam ao redor da “alma coletiva” que se fortalece mutuamente e permite a cada parte alcançar um potencial maior do que aquele que ela alcançaria sozinha. Não somente por ressonância mágica, ou pela somatória de esforços, mas também pelo olhar do outro sobre nós, e pelo nosso olhar sobre o outro, é que nos definimos em nossa senda espiritual. É quase sempre através do olhar do outro – seja o iniciador ou os companheiros de jornada – que nossas falhas ficam visíveis, e que as melhores oportunidades de crescimento podem ser aproveitadas. Assim a senda em bruxaria tradicional é amplamente favorecida por um grupo estruturado em sinergia.



A Dança das Bruxas - Herman Hendrich

Infelizmente o contrário também é verdadeiro. O desalinhamento das partes que formam um corpo iniciático é a maior chance de colapso para ele. Tal como nas antigas comunidades italianas – em seu isolamento agrário – as pessoas poderiam ser exiladas ao se desviar gravemente dos costumes e quebrar as normas do “contrato social” (por ex. infringindo a instituição do casamento com adultério, profanando o sagrado da comunidade, atentando contra os valores comunitários ao cometer crimes, dentre outros), a pessoa que se encontra inserida num corpo iniciático de bruxaria e quebra as normas pelas quais esse corpo busca sua sinergia pode dele ser expelida, não somente pela liderança, mas pelos próprios espíritos tutelares do caminho ou pela própria alma coletiva. A árvore de espírito de uma tradição sempre agirá visando sua preservação, e isso pode incluir podas necessárias que nem sempre ocorrem com a ciência das lideranças. Em linguagem mais ilustrativa: experimente participar de um grupo tradicional sob juramento e começar a quebrar esse juramento às escondidas, para ver se as coisas não vão pelos ares mais cedo ou mais tarde... Todo juramento tomado também envolve uma garantia ofertada, e toda permanência em um clã, covine ou congrega é uma via de mão-dupla de direitos e deveres a serem observados.

Tamanha é a importância do coletivo em bruxaria tradicional que não se pode fugir dele mesmo quando a tradição é carregada por uma única pessoa a cada geração. Ainda que em aparente solidão do iniciado, o complexo de relações com os espíritos do caminho cobrará um preço em obediência ao “contrato social” assinado quando a tradição foi estabelecida em nosso mundo.

O aprendiz, o postulante e até mesmo o iniciado fariam muito bem em se debruçar sobre esse entendimento – o valor do coletivo em sinergia – com mais frequência. Vivemos numa sociedade capitalista pós-moderna, cujas regras são ditadas por uma elite burguesa que lucra alienando o povo de suas identidades, de seus saberes folclóricos – que constituem a força de incontáveis gerações – e estabelecendo uma lógica de individualismo em que o EU é incentivado a competir por sucesso econômico contra tudo e todos o tempo todo. Essa dinâmica de vida é em muitos aspectos diametralmente oposta a dinâmica das comunidades agrárias de nossos antepassados nas quais a cooperação – muitas vezes com trabalho sendo feito em terras comuns ou em cultivos familiares codependentes – se estabelecia como uma primordial estratégia de sobrevivência e de desenvolvimento. Manter nossos saberes folclóricos e (mais ainda) integrar uma tradição de bruxaria requer de nós um constante esforço para ir na contramão do individualismo doentio e da competitividade compulsória que são o padrão de conduta em nossa geração.



Detalhe de Echo e Narcissus - John William Waterhouse (1903)

A tradição, assim, não funciona bem sob critérios egoístas. É necessário empenho para o estabelecimento de relações sinérgicas com nossos irmãos de linhagem, com nossos iniciadores e iniciados, com os espíritos aliados, com os ancestrais, com as plantas que utilizamos em nossos filtros, pós, banhos e incensos, com os animais que nos trazem insumos e presságios, com as deidades e santidades, celestiais e demoníacas, com as quais estamos em acordo e serviço. Isso só é possível através da abertura para perceber e conhecer – e por fim entender – o outro em sua plenitude, e não somente naquilo em que ele pode ser útil aos seus interesses imediatos. É necessário buscar o equilíbrio com a comunidade em que estamos inseridos dentro e fora da Arte – um equilíbrio que não se traduz em subserviência a valores alheios, mas que permite a convivência sinérgica em tudo quanto possível. E na mesma linha, é preciso abdicar do modus operandi da modernidade e do ecletismo, no qual somos um grande umbigo ensebado e ferido, que precisa estar no centro de todas as conexões e ditar todas as regras, para se sentir relevante na era do Capital financeiro e midiático. Antes da competição, nossos grupos devem prezar pela colaboração. Antes do antagonismo vicioso com outros coletivos, com o respeito às fronteiras entre nossos domínios e entendimentos. Antes da busca de uma acumulação compulsiva e desenfreada que busca suprir um senso prejudicado de autoimportância, devemos valorizar o aprofundar daquilo que temos em mãos, e a riqueza que dessa profundidade pode ser extraída. Antes de deixar às traças nossas obrigações com o coletivo por razões pessoais, devemos considerar que se um órgão do corpo decide parar de trabalhar, sobrecarregará todo o restante. Antes de disputar quem sabe mais, quem pode mais, quem “se inicia/sobe de nível primeiro” ou mesmo quem carrega maiores responsabilidades, devemos cooperar para que cada parte do todo funcione bem e o sucesso do todo reverbere o sucesso do um.

A sinergia é o valor que permite que nos orientemos a um rumo mais alinhado com a tradicionalidade. Uma tarefa hercúlea em tempos nos quais a contradição e o conflito são instaurados dentro e fora do ser como estratégia de dominação e escravização do ser humano, com fins econômicos. Estar em sinergia requer de nós a busca por estar em plenitude para os nossos coletivos, e reconhecer que somos partes vitais dele mais do que ele é um mero favorecedor de conquistas em nossas vidas.

Essa é uma das muitas razões pelas quais os processos verdadeiros de retomada ancestral, e o trilhar de um caminho tradicional, são tão difíceis. Hoje talvez, mais do que nunca na história do ser humano, eles exigem uma fibra moral que está em falta no mercado.

Termino esse texto com um questionamento que interessa mais a você do que a mim: você tem a fibra moral necessária para essa jornada?

Eis a questão.




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