Por Draco Stellamare
A
leitura de algumas passagens do livro Della Medicina, de Lisa Fazio, me
trouxe um insight interessante sobre o papel que o coletivo desempenha
no desenvolvimento dos saberes tradicionais e como até mesmo a sua estruturação
prática depende das relações entre o praticante e o outro – sendo esse outro
tanto o alvo da prática, quanto o auxiliar dela, um elemento humano ou não
humano presente no mesmo contexto e todo o restante da teia de complexidades
que os envolvem. A autora do livro menciona que a medicina folclórica italiana
nasceu – como diversos saberes tradicionais de diferentes etnias – através de
uma emergência de conhecimento propiciada pela sinergia de diversos seres:
humanos (dentre os quais a relação entre muitas gerações que legaram
conhecimento de múltiplas formas às gerações posteriores, e a relação entre
membros de uma mesma comunidade que interferem e trocam entre si no mesmo
espaço), não-humanos (como as plantas, animais e demais fatores naturais com os
quais o humano se relaciona de forma muito profunda) e supernaturais (como
espíritos, deidades, e outras presenças de cunho transcendental à matéria nua e
crua, que fazem parte daquele complexo de relações).
La Danza - Guglielmo Zocchi (1874)
O uso da palavra sinergia é muito propício, pois ela vem de συνεργία que traduz o alinhamento entre duas partes que permite a manifestação de algo que ultrapassa suas individualidades. Ou seja, a união harmônica, sinérgica, dos seres que coabitam um mesmo espaço é superior à soma de suas partes individualmente consideradas. É com base nesse mesmo princípio que podemos entender a importância do coletivo tanto nas práticas da magia folclórica – de qualquer etnia e contexto – quanto nas bruxarias tradicionais.
Em
um contexto folclórico a própria compreensão do que significa esse termo já
demonstra a necessidade do coletivo – folk nada mais é do que um
vocábulo inglês para “povo”, designando um coletivo de pessoas unido pelas
mesmas características de tempo, local, ascendência etc. Assim a magia, a
medicina, a arte e toda a cultura do povo são “folclóricas”. Não se faz algo
folclórico sozinho, sem uma origem da qual os saberes tenham vindo e um outro
– uma alteridade – para o qual se destinam. Tal como a própria noção de
sacerdócio religioso implica no serviço em prol de uma comunidade ou no serviço
que liga uma comunidade ao sagrado, um curador ou feiticeiro folclórico só
existe plenamente em função de uma coletividade popular. Tal como não há
sentido algum em exercer o ofício sacerdotal para o próprio umbigo, não há
benzedeira que trabalhe somente para si mesma. Pelo contrário, é o
reconhecimento popular, da comunidade, que enaltece a praticante das artes
curativas como tal. Num certo sentido, se há algo como uma “validação” nas
práticas folclóricas, essa validação certamente parte do povo, da família, do
grupo, enfim, do reconhecimento comunitário.
Já
quando entramos na seara da bruxaria tradicional os grupos assumem uma função
ainda mais relevante. Isso porque o processo de formação do conhecimento não é
apenas orgânico como ocorre no âmbito folclórico, mas é também linear e
coordenado segundo uma agenda iniciática, um caminho estruturado com começo,
meio e fim, que foi recebido de uma fonte espiritual, transmitido em uma cadeia
viva, e é supervisionado – senão pelas pessoas que o integram, ao menos pelos
espíritos tutelares da corrente. Além do papel essencialmente coletivo da
tradição, que é soberano em qualquer vertente tradicional, aquelas que
funcionam segundo uma lógica de grupo estruturado usufruem de uma outra
dimensão na qual o coletivo adquire valor e relevância. Essa outra dimensão é a
própria amplificação de poder, saber e oportunidades que advém da colaboração
de muitos seres num mesmo coletivo. É a sinergia de iniciados,
aprendizes, ancestrais e aliados espirituais, animais, vegetais e de outras
tantas naturezas. É o complexo de seres que gravitam ao redor da “alma
coletiva” que se fortalece mutuamente e permite a cada parte alcançar um
potencial maior do que aquele que ela alcançaria sozinha. Não somente por
ressonância mágica, ou pela somatória de esforços, mas também pelo olhar do outro
sobre nós, e pelo nosso olhar sobre o outro, é que nos definimos em nossa senda
espiritual. É quase sempre através do olhar do outro – seja o iniciador ou os
companheiros de jornada – que nossas falhas ficam visíveis, e que as melhores
oportunidades de crescimento podem ser aproveitadas. Assim a senda em bruxaria
tradicional é amplamente favorecida por um grupo estruturado em sinergia.
A Dança das Bruxas - Herman Hendrich |
Infelizmente
o contrário também é verdadeiro. O desalinhamento das partes que formam um
corpo iniciático é a maior chance de colapso para ele. Tal como nas antigas
comunidades italianas – em seu isolamento agrário – as pessoas poderiam ser
exiladas ao se desviar gravemente dos costumes e quebrar as normas do “contrato
social” (por ex. infringindo a instituição do casamento com adultério,
profanando o sagrado da comunidade, atentando contra os valores comunitários ao
cometer crimes, dentre outros), a pessoa que se encontra inserida num corpo
iniciático de bruxaria e quebra as normas pelas quais esse corpo busca sua
sinergia pode dele ser expelida, não somente pela liderança, mas pelos próprios
espíritos tutelares do caminho ou pela própria alma coletiva. A árvore de
espírito de uma tradição sempre agirá visando sua preservação, e isso pode
incluir podas necessárias que nem sempre ocorrem com a ciência das lideranças.
Em linguagem mais ilustrativa: experimente participar de um grupo tradicional
sob juramento e começar a quebrar esse juramento às escondidas, para ver se as
coisas não vão pelos ares mais cedo ou mais tarde... Todo juramento tomado
também envolve uma garantia ofertada, e toda permanência em um clã, covine
ou congrega é uma via de mão-dupla de direitos e deveres a serem
observados.
Tamanha
é a importância do coletivo em bruxaria tradicional que não se pode fugir dele
mesmo quando a tradição é carregada por uma única pessoa a cada geração. Ainda que
em aparente solidão do iniciado, o complexo de relações com os espíritos do
caminho cobrará um preço em obediência ao “contrato social” assinado quando a
tradição foi estabelecida em nosso mundo.
O
aprendiz, o postulante e até mesmo o iniciado fariam muito bem em se debruçar
sobre esse entendimento – o valor do coletivo em sinergia – com mais
frequência. Vivemos numa sociedade capitalista pós-moderna, cujas regras são
ditadas por uma elite burguesa que lucra alienando o povo de suas identidades,
de seus saberes folclóricos – que constituem a força de incontáveis gerações –
e estabelecendo uma lógica de individualismo em que o EU é incentivado a
competir por sucesso econômico contra tudo e todos o tempo todo. Essa dinâmica
de vida é em muitos aspectos diametralmente oposta a dinâmica das comunidades
agrárias de nossos antepassados nas quais a cooperação – muitas vezes
com trabalho sendo feito em terras comuns ou em cultivos familiares
codependentes – se estabelecia como uma primordial estratégia de sobrevivência
e de desenvolvimento. Manter nossos saberes folclóricos e (mais ainda) integrar
uma tradição de bruxaria requer de nós um constante esforço para ir na
contramão do individualismo doentio e da competitividade compulsória que são o
padrão de conduta em nossa geração.
Detalhe de Echo e Narcissus - John William Waterhouse (1903)
A
tradição, assim, não funciona bem sob critérios egoístas. É necessário empenho
para o estabelecimento de relações sinérgicas com nossos irmãos de linhagem,
com nossos iniciadores e iniciados, com os espíritos aliados, com os
ancestrais, com as plantas que utilizamos em nossos filtros, pós, banhos e
incensos, com os animais que nos trazem insumos e presságios, com as deidades e
santidades, celestiais e demoníacas, com as quais estamos em acordo e serviço. Isso
só é possível através da abertura para perceber e conhecer – e por fim entender
– o outro em sua plenitude, e não somente naquilo em que ele pode ser útil aos
seus interesses imediatos. É necessário buscar o equilíbrio com a comunidade em
que estamos inseridos dentro e fora da Arte – um equilíbrio que não se traduz
em subserviência a valores alheios, mas que permite a convivência sinérgica em
tudo quanto possível. E na mesma linha, é preciso abdicar do modus operandi
da modernidade e do ecletismo, no qual somos um grande umbigo ensebado e
ferido, que precisa estar no centro de todas as conexões e ditar todas as
regras, para se sentir relevante na era do Capital financeiro e midiático.
Antes da competição, nossos grupos devem prezar pela colaboração. Antes do
antagonismo vicioso com outros coletivos, com o respeito às fronteiras entre
nossos domínios e entendimentos. Antes da busca de uma acumulação compulsiva e
desenfreada que busca suprir um senso prejudicado de autoimportância, devemos
valorizar o aprofundar daquilo que temos em mãos, e a riqueza que dessa
profundidade pode ser extraída. Antes de deixar às traças nossas obrigações com
o coletivo por razões pessoais, devemos considerar que se um órgão do corpo
decide parar de trabalhar, sobrecarregará todo o restante. Antes de disputar
quem sabe mais, quem pode mais, quem “se inicia/sobe de nível primeiro” ou
mesmo quem carrega maiores responsabilidades, devemos cooperar para que cada
parte do todo funcione bem e o sucesso do todo reverbere o sucesso do um.
A
sinergia é o valor que permite que nos orientemos a um rumo mais alinhado com a
tradicionalidade. Uma tarefa hercúlea em tempos nos quais a contradição e o
conflito são instaurados dentro e fora do ser como estratégia de dominação e
escravização do ser humano, com fins econômicos. Estar em sinergia requer de
nós a busca por estar em plenitude para os nossos coletivos, e reconhecer que
somos partes vitais dele mais do que ele é um mero favorecedor de conquistas em
nossas vidas.
Essa
é uma das muitas razões pelas quais os processos verdadeiros de retomada
ancestral, e o trilhar de um caminho tradicional, são tão difíceis. Hoje
talvez, mais do que nunca na história do ser humano, eles exigem uma fibra
moral que está em falta no mercado.
Termino
esse texto com um questionamento que interessa mais a você do que a mim: você
tem a fibra moral necessária para essa jornada?
Eis
a questão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário