quarta-feira, 15 de maio de 2024

INICIAÇÃO NA BRUXARIA TRADICIONAL: Como funciona, como obtê-la e outras minúcias

Por Draco Stellamare



"Noi preghiamo a Dio e la Madonna, e loro parlano anche col diavolo, pregano al diavolo"
"Nós rezamos a Deus e a Maria, e elas também falam com o diabo, e rezam ao diabo"
- Resposta de uma benzedeira italiana sobre a diferença entre ela e as bruxas.


Bruxaria tradicional pressupõe tradição que, por sua vez, significa o recebimento de uma corrente de poder e uma simbologia apta a trabalhar os mistérios atrelados a essa referida corrente através de mito, rito, símbolo gráfico, sonoro, gestual etc. Este recebimento é a iniciação, o processo por meio do qual o indivíduo adquire acesso aos mistérios da tradição e, por meio deste acesso adquirido, galga uma expansão de sua consciência e percepção sobre a espiritualidade e a própria vida. Infelizmente, o processo iniciático em diferentes vertentes do que hoje se denomina bruxaria tradicional é encarado ora como um privilégio somente concedido a alguns poucos escolhidos de uma pretensa elite espiritual, e ora como uma mera formalidade que chancela o indivíduo socialmente como “bruxo” e que seria passível de ser feita de forma autônoma e superficial. Nas tradições às quais pertenço, a iniciação é considerada um aspecto importantíssimo da caminhada espiritual, e os entendimentos sobre como ela funciona, quais os seus desdobramentos e como ela pode ser alcançada são fundamentais tanto para legar as práticas à diante, quanto para saber interpretar corretamente a caminhada e o status espiritual das pessoas ao nosso redor. Este texto visa dialogar sobre esses entendimentos e apontar os caminhos possíveis para aqueles que buscam o progresso iniciático em sua jornada.

Primeiramente, se faz necessário esclarecer que existem duas formas principais de iniciação. Uma delas é a iniciação dita “horizontal”, na qual o iniciado recebe a corrente de poder na forma de um laço transmitido por um iniciador humano e vivo, que normalmente também transmite o conhecimento necessário e a simbologia tradicional (as formas de se operar o poder recebido e desenvolvido). A outra, em contrapartida, seria a iniciação “vertical”, na qual uma pessoa recebe a corrente de poder na forma de um laço transmitido a ela diretamente do mundo espiritual, tendo por iniciador um ser – ou uma coletividade de seres – que pode ser divinizado, demoníaco ou ancestral. A iniciação vertical é como as tradições de bruxaria começam a existir e serem transmitidas de forma horizontal. Toda linhagem hoje transmitida horizontalmente nasceu de forma vertical em algum ponto de sua história.

sexta-feira, 10 de maio de 2024

GÊNESIS: Um ensaio sobre o evangelho das bruxas

 Por Draco Stellamare

À primeira vista o “significado” da bruxaria e suas definições como culto, ofício ou condição pessoal de empoderamento parecem ser realidades completamente discrepantes umas das outras. Enquanto alguns entendem que a bruxaria é um ofício mágico que adere a certas características e outros a enxergam como um culto, seja à fertilidade ou a certas potências cósmicas obscuras, existem aqueles – dentre os quais eu me encaixo na maior parte do tempo – que preferem entender o fenômeno como uma condição pessoal específica de empoderamento – algo que pode estar ou não estar atrelado a uma tradição. Entretanto, uma constante em todas essas maneiras de se pensar a bruxaria é a presença do divino, senão enquanto deidade à qual se presta culto, ao menos enquanto potência do cosmos com a qual se tece uma profunda e quintessencial comunhão. Lembro-me que algumas das conversas que eu tive com minha primeira iniciadora giraram ao redor da natureza do divino e como suas várias manifestações distintas entre si conduziam a uma mesma eternidade. Desde então minha experiência com o exercício da bruxaria ao longo dos anos me fez crer que essa é uma verdade substancial que permeia todas as práticas e legados essencialmente bruxos, embora a forma como eu enxergue a questão hoje em dia seja um pouco mais complexa do que a forma que era exposta por aqueles que me precederam. É sobre essa transcendência que eu gostaria de discorrer neste texto.



The Demoniac - Joseph Middeleer (1893)


quinta-feira, 2 de maio de 2024

BRUXARIA "TRADICIONAL" ?

 Por Draco Stellamare

Há algumas semanas o cenário virtual da bruxaria brasileira estava pegando fogo (de novo!) com o debate polêmico e um pouco risível acerca dos elementos judaico-cristãos na bruxaria tradicional. Dentre as muitas coisas que eu aprendi sobre o status quo de nossa comunidade virtual – com a enxurrada de discussões infrutíferas e desrespeitosas – uma das mais interessantes foi perceber que, subitamente, todo mundo está se tornando bruxo “tradicional”, e eu escrevo propositalmente entre aspas por uma razão muito clara. Não fui só eu que percebi isso, pois até alguns dos inquisidores neopagãos que estavam em ação naqueles dias apontaram para esse fato, entre um chilique e outro.



The Witches - William Edward Frost (sec. XIX)


Hoje parece haver uma nova moda em nosso meio, uma nova tendência, que consiste em aderir a uma bruxaria “tradicional” que funciona mais ou menos de acordo com as mesmas bases de uma bruxaria moderna e eclética, porém com santos católicos, o Diabo e uma Rainha de Elphame no lugar dos deuses. Não me cabe fazer nenhum juízo de valor sobre a prática pessoal de ninguém, que fique claro, mas quando vejo novos praticantes assumindo da noite para o dia esse título de “tradicional”, me parece curioso o entendimento que vem se consolidando sobre o que seja “bruxaria tradicional” em nossa comunidade. Nesse sentido, percebo duas perspectivas sobre tradicionalidade na bruxaria que vem ganhando força (ou se tornando mais visíveis), e as duas são formas de pensar que eu, particularmente, considero problemáticas, ou porque levam a uma simplificação perigosa do que seja o caminho tradicional, ou porque são reducionistas e historicamente delirantes.

domingo, 21 de abril de 2024

MARIA E AS BRUXAS: Um mito tradicional da stregoneria friulana

 Por Draco Stellamare




A região italiana chamada Friuli Venezia Giulia é um local muito único, o que torna suas tradições mágicas também especialmente singulares. Os diversos encontros e desencontros que ocorreram no Friûl histórico entre os vênetos, os germânicos e os eslavos terminaram por gerar ali uma cultura rica e de muitas formas distinta daquela de outras partes da Itália. Nas tradições de bruxaria da região friulana, destaca-se a figura da Virgem Maria como uma rainha e protetora das bruxas. Apesar de a devoção mariana neste e em outros locais suceder o culto de deusas precedentes (como eu abordei nesse texto sobre Diana Trivia), a presença de Maria como senhora das bruxas não se dá tradicionalmente através da redução de sua imagem a uma simples “máscara”, arbitrariamente utilizada para esconder alguma entidade não-cristã por meio de um sincretismo superficial, mas sim através de uma cosmologia e mitologia próprias ao universo da bruxaria, que constituem – senão por escrito ao menos oralmente – uma espécie de pequeno evangelho bruxo. Esse “evangelho”, mais bem comprovado pela pesquisa histórica do que o de Charles Leland, está vivo – de forma plural e ao mesmo tempo harmoniosamente coesa – nas linhagens que carregam os mitos da bruxaria friulana ainda hoje, na Itália, no Brasil e possivelmente em outros países onde os poucos imigrantes friulanos da história aportaram.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Sobre o Círculo Stella Maris

Existem várias definições possíveis para o que vem a ser um círculo de bruxos. Naquela que consideramos mais próxima de nossos valores, um círculo é um grupo de pessoas reunidas para praticar uma tradição de bruxaria sem que mais do que uma delas – no caso o/a dirigente – seja iniciada. Atuando um pouco como escola e um pouco como irmandade ou rede de apoio, um círculo funciona como uma semente para aquilo que pode vir a ser uma congrega, um grupo de pessoas iniciadas de uma mesma linhagem ou tradição de bruxaria.



sexta-feira, 8 de março de 2024

VISLUMBRES DO SABÁ: Um ensaio sobre a Assembleia das Bruxas

Por Draco Stellamare

Um dos maiores mistérios – e controvérsias – existentes na história da bruxaria tradicional é o ritual denominado “Sabá das Bruxas”, ou como é conhecido em minha tradição, a Assembleia. Esse ritual foi imaginado e retratado por vários escritores, pintores e compositores desde que ganhou seus principais contornos e simbolismos pelas mãos que conduziram o Santo Ofício. Entre cópulas das bruxas com o Diabo sob a forma de um bode monstruoso, atos blasfemos com a iconografia católica e o osculum infame, o Sabá aterrorizou e estimulou a fantasia de gerações, sendo um tópico muito debatido na comunidade bruxa ainda hoje.



O Sabá das Bruxas - Franz Francken (1607)