quinta-feira, 2 de maio de 2024

BRUXARIA "TRADICIONAL" ?

 Por Draco Stellamare

Há algumas semanas o cenário virtual da bruxaria brasileira estava pegando fogo (de novo!) com o debate polêmico e um pouco risível acerca dos elementos judaico-cristãos na bruxaria tradicional. Dentre as muitas coisas que eu aprendi sobre o status quo de nossa comunidade virtual – com a enxurrada de discussões infrutíferas e desrespeitosas – uma das mais interessantes foi perceber que, subitamente, todo mundo está se tornando bruxo “tradicional”, e eu escrevo propositalmente entre aspas por uma razão muito clara. Não fui só eu que percebi isso, pois até alguns dos inquisidores neopagãos que estavam em ação naqueles dias apontaram para esse fato, entre um chilique e outro.



The Witches - William Edward Frost (sec. XIX)


Hoje parece haver uma nova moda em nosso meio, uma nova tendência, que consiste em aderir a uma bruxaria “tradicional” que funciona mais ou menos de acordo com as mesmas bases de uma bruxaria moderna e eclética, porém com santos católicos, o Diabo e uma Rainha de Elphame no lugar dos deuses. Não me cabe fazer nenhum juízo de valor sobre a prática pessoal de ninguém, que fique claro, mas quando vejo novos praticantes assumindo da noite para o dia esse título de “tradicional”, me parece curioso o entendimento que vem se consolidando sobre o que seja “bruxaria tradicional” em nossa comunidade. Nesse sentido, percebo duas perspectivas sobre tradicionalidade na bruxaria que vem ganhando força (ou se tornando mais visíveis), e as duas são formas de pensar que eu, particularmente, considero problemáticas, ou porque levam a uma simplificação perigosa do que seja o caminho tradicional, ou porque são reducionistas e historicamente delirantes.

domingo, 21 de abril de 2024

MARIA E AS BRUXAS: Um mito tradicional da stregoneria friulana

 Por Draco Stellamare




A região italiana chamada Friuli Venezia Giulia é um local muito único, o que torna suas tradições mágicas também especialmente singulares. Os diversos encontros e desencontros que ocorreram no Friûl histórico entre os vênetos, os germânicos e os eslavos terminaram por gerar ali uma cultura rica e de muitas formas distinta daquela de outras partes da Itália. Nas tradições de bruxaria da região friulana, destaca-se a figura da Virgem Maria como uma rainha e protetora das bruxas. Apesar de a devoção mariana neste e em outros locais suceder o culto de deusas precedentes (como eu abordei nesse texto sobre Diana Trivia), a presença de Maria como senhora das bruxas não se dá tradicionalmente através da redução de sua imagem a uma simples “máscara”, arbitrariamente utilizada para esconder alguma entidade não-cristã por meio de um sincretismo superficial, mas sim através de uma cosmologia e mitologia próprias ao universo da bruxaria, que constituem – senão por escrito ao menos oralmente – uma espécie de pequeno evangelho bruxo. Esse “evangelho”, mais bem comprovado pela pesquisa histórica do que o de Charles Leland, está vivo – de forma plural e ao mesmo tempo harmoniosamente coesa – nas linhagens que carregam os mitos da bruxaria friulana ainda hoje, na Itália, no Brasil e possivelmente em outros países onde os poucos imigrantes friulanos da história aportaram.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Sobre o Círculo Stella Maris

Existem várias definições possíveis para o que vem a ser um círculo de bruxos. Naquela que consideramos mais próxima de nossos valores, um círculo é um grupo de pessoas reunidas para praticar uma tradição de bruxaria sem que mais do que uma delas – no caso o/a dirigente – seja iniciada. Atuando um pouco como escola e um pouco como irmandade ou rede de apoio, um círculo funciona como uma semente para aquilo que pode vir a ser uma congrega, um grupo de pessoas iniciadas de uma mesma linhagem ou tradição de bruxaria.



sexta-feira, 8 de março de 2024

VISLUMBRES DO SABÁ: Um ensaio sobre a Assembleia das Bruxas

Por Draco Stellamare

Um dos maiores mistérios – e controvérsias – existentes na história da bruxaria tradicional é o ritual denominado “Sabá das Bruxas”, ou como é conhecido em minha tradição, a Assembleia. Esse ritual foi imaginado e retratado por vários escritores, pintores e compositores desde que ganhou seus principais contornos e simbolismos pelas mãos que conduziram o Santo Ofício. Entre cópulas das bruxas com o Diabo sob a forma de um bode monstruoso, atos blasfemos com a iconografia católica e o osculum infame, o Sabá aterrorizou e estimulou a fantasia de gerações, sendo um tópico muito debatido na comunidade bruxa ainda hoje.



O Sabá das Bruxas - Franz Francken (1607)


quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Stregoneria Liventina in Terra Brasilis: Um olhar sobre a minha tradição

 Por Draco Stellamare

              Tenho escrito muitas coisas desde que comecei este blog, da a bruxaria alemã nos Estados Unidos até diversas nuances da stregoneria italiana, que como já devem saber é mais plural do que se possa imaginar. Contudo, não escrevi até hoje sobre a minha própria tradição e como ela funciona, e percebo que isso gera expectativas em alguns dos meus leitores. Vocês têm culto aos deuses pagãos? Você tem um coven? Como posso me iniciar na sua tradição? Entre outras, são perguntas que aparecem de vez em quando por meio das redes sociais sempre que eu mostro alguma coisa que pertença a nossas práticas. Essa postagem é uma tardia explicação sobre a tradição que mantenho, suas origens, como ela chegou até aqui e para onde eu acredito que ela esteja caminhando. Não vou revelar coisas que considero íntimas, excessivamente polêmicas ou secretas, e nem vou me alongar demais nas explicações. Mas espero que gostem mesmo assim e que algumas ansiedades sejam diminuídas através desse vislumbre da minha história que eu vos ofereço.



Imagem que me remete à relação com os espíritos da água no Friuli.
Fonte IA.

              Minha tradição – assim como a maior parte das tradições semelhantes que já tive o prazer de conhecer – é no todo um conjunto orgânico de diversos laços tradicionais. O que quero dizer com isso é que existem diversas práticas mágicas, conhecimentos, mitos e ancestralidades que se cruzaram no decorrer das suas transmissões de uma geração à outra. A sabedoria para lançar ou exorcizar o malocchio é um laço que é transmitido de uma pessoa à outra de forma linear, tal como a sabedoria para conjurar os mortos, a sabedoria para curar o “mau-jeito” etc. São diferentes linhagens, que ora convergem, ora se separam, e que têm origens que podem ser até mesmo longínquas umas das outras, considerando os ramos de nossa árvore ancestral. Algumas provêm dos meus antepassados que vieram do sul da Itália, outras estão fortemente enraizadas no nordeste italiano, e outras ainda foram adquiridas aqui, em solo brasileiro. Mas existe um fio condutor que eu compreendo como a principal de todas essas transmissões ancestrais, ao redor do qual todas as demais práticas se acomodam, e é esse o legame (laço) que eu pretendo abordar como a fonte e o denominador comum de nossa stregoneria.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

LIVRO: Fundamentos de Bruxaria Tradicional e Stregoneria

 Por Draco Stellamare

    Algumas vezes na vida encontramos pessoas cuja trajetória une mundos diversos e sintetiza diversos saberes ancestrais, criando novas perspectivas e suscitando promissores debates. Esse é com certeza o caso de Cleber Lupino Haddad, ou como é mais bem conhecido: Sett Lupino, o autor da obra Fundamentos de Bruxaria Tradicional e Stregoneria, lançada em dois volumes pela Editora Manus Gloriae, para a qual eu tive o prazer e a imensa honra de escrever o prefácio. Tamanha honra se deve ao fato de que uma das principais vozes a falar da bruxaria italiana no Brasil tenha sido este ilustre bruxo, através do seu blog Congrega Lupino, que serviu de inspiração para eu mesmo e outras tantas pessoas que fazem parte destes caminhos ou neles possuem interesse.




CULTO ANCESTRAL - Parte 2: Prática

Por Draco Stellamare


Memento Mori - Edwaert Collier (1640-1707)


Na primeira parte deste texto abordei conceitos e entendimentos que são necessários para uma abordagem mais profunda do culto ancestral sob a ótica de minha tradição. Agora, tendo assimilado uma ideia mais orgânica da ancestralidade, vamos discutir como se estrutura uma prática de culto ancestral. Não é minha intenção fornecer um esquema pronto e imutável, mas sim uma estrutura compreensível para que cada leitor possa compreender o que é adequado fazer – dentro de uma miríade de possibilidades de como fazer – e, tão importante quanto isso, o porquê fazer.

Portanto, eu partirei do princípio, tomando por exemplo um leitor leigo que não esteja familiarizado com nenhuma forma de devoção ancestral equivalente ao que será aqui discutido. Mais adiante, a complexidade do culto pode aumentar à medida que os primeiros passos forem dados com sucesso. Espero que gostem!