quinta-feira, 25 de maio de 2023

ARADIA NA SARDENHA - Artigo de Sabina Magliocco

Deixo abaixo uma livre-tradução do artigo da antropóloga Sabina Magliocco, carinhosamente fornecida por Remus Lupino, para que o público brasileiro possa usufruir mais facilmente dessas informações. Agradeço ao Remo por ter me disponibilizado o texto, bem como pelas suas contribuições ao meu próprio texto sobre Aradia que espero concluir em breve. Relembro que não somos proprietários deste artigo e que esta tradução foi feita meramente para fins informativos aos interessados.

~Draco Stellamare.




ARADIA NA SARDENHA

A Arqueologia de uma Personagem Popular

Por Sabina Magliocco[1]

 

Prólogo

Este periódico versa sobre o meu artigo “Quem Foi Aradia? A História e Desenvolvimento de uma Lenda”[2] de 2001. Como um dos pares revisores deste periódico, Professor Hutton me trouxe um feedback extremamente valioso, o que deu início ao que veio a se tornar uma frutífera troca interdisciplinar de ideias. Enquanto eu e o Professor Hutton somos especializados em disciplinas diferentes – Etnologia / História e Estudos Folclóricos, respectivamente – temos interesses em vários assuntos similares e em questões teóricas mais amplas, por isso, nossas perspectivas complementam uma à outra.

Além disso, minha própria compreensão da história é fraca e falha, o domínio do Professor Hutton sobre literatura antropológica e folclórica é extraordinário para uma estudiosa treinada em uma disciplina completamente diferente. É, portanto, especialmente apropriado que a minha contribuição para este volume retome mais uma vez os fios daquele periódico original, então expandindo-o para novas direções e adicionando o que o próprio Professor Hutton escreveu sobre o assunto de Herodias e Aradia. Este trabalho também fornece uma conexão inesperada entre a minha pesquisa etnográfica inicial na Sardenha e meu interesse posterior na Bruxaria contemporânea, fazendo com que a minha pesquisa complete o ciclo de forma satisfatória.

Tive o privilégio de encontrar pessoalmente pela primeira vez o Professor Hutton em Abril de 2004, quando eu e meu colega John Bishop viemos para o Reino Unido cuidando de dois estudantes para filmar a celebração do Dia 1º de Maio em Padstow, na Cornualha. Devido ao fato do Professor Hutton ter escrito a respeito da história deste festival, especialmente sobre a figura do cavalo de madeira que se eleva no centro das festividades (veja Hutton, 1996: 81-94), eu o entrevistei para o filme (Bishop & Magliocco, 2007). Os comentários espirituosos e incisivos que ele nos deu a respeito das origens folclóricas da ideia de que cavalo de madeira de Padstow seja uma sobrevivência do paganismo antigo nunca deixam de provocar risos do público do filme.

Naquele momento, o que mais me impressionou no Professor Hutton foi a grande gentileza e interesse que ele mostrou para com os nossos alunos. Ele poderia tê-los ignorado com facilidade, ao invés disso, ele demonstrou sua mentoria natural ao cativá-los em conversas a respeito dos seus interesses acadêmicos, experiência e planos futuros. Não é um mistério o motivo pelo qual Professor Hutton tem uma comitiva de seguidores devotados tão numerosos quanto as almas da Procissão da própria Heródias: para ele, cada troca é um momento de ensino, dispensando elogios e críticas com beleza e sensibilidade. Receber um elogio dele, no entanto, é o mesmo que ser carregado ao alto com asas douradas, como a Nike ateniense.

As trocas entre eu e o Professor Hutton se tornaram ao longo dos anos uma amizade de colégio, e eu tive a sorte de encontra-lo em outras ocasiões acadêmicas. Certamente a mais memorável foi a sua gloriosa performance no Instituto Getty de Pesquisas[3], umas das premiadas instituições culturais de Los Angeles, na Califórnia, em Abril de 2007. Convidado pela Sociedade Getty de Pesquisas e pelo estudioso de religiões antigas Jan Bremmer, ele ministrou uma palestra intitulada “Festivais Pagãos Modernos”[4] como parte de uma série de palestras ao longo do ano dedicadas ao tema das festividades.

Figura 1: Professor Ronald Hutton, Jan Bremmer e Sabina Magliocco no Instituto Getty de Pesquisas em Abril de 2007. Foto tirada por Jaynie Rabb Aydin.

Eu tive o privilégio de ser escolhida como respondente dos seus comentários. Ele falou para uma incomumente grande audiência constituída por ambos, estudantes e pagãos, conduzindo a difícil tarefa de encantar e esclarecer ambos os campos, recebendo elogios entusiasmados. É, portanto, com gratidão e carinho que eu retorno para Aradia, o tópico do nosso primeiro contato, oferecendo esta pequena contribuição para o volume em honra ao décimo aniversário da publicação do trabalho magistral do Professor Hutton, O Triunfo da Lua: uma História da Bruxaria Pagã Moderna[5].

 

Quem é Ela?

Indiscutivelmente, Aradia é uma das figuras centrais da bruxaria pagã moderna. Ela é a principal personagem do livro Aradia, ou o Evangelho das Bruxas (1899), do folclorista amador Charles G. Leland, onde ela aparece como filha de Diana, enviada para a terra por sua mãe divina para ensinar os mistérios da bruxaria para os camponeses italianos. Certamente que Gerald Gardner foi influenciado por Leland na criação da sua Bruxaria pagã moderna, especialmente ao usar o nome “Aradia” como a deusa principal da Arte até 1960, sua sacerdotisa Doreen Valiente baseou um pouco da sua prosa “A Carga da Deusa” – possivelmente uma das peças mais difundidas da liturgia Wiccaniana – no material do Aradia do Leland.

Houveram outras interpretações literárias dessa personagem entre os pagãos modernos, em particular a Epístola de Diana[6] de Aidan Kelly, um romance publicado privadamente e que tem sido propagado pela internet, e a curta história “O Conto Secreto de Aradia” de Myth Woodling, baseada na lenda presente no original “A Casa do Vento”[7] de Leland e também disponível online (http://www.jesterbear.com/Aradia/secret.html). O autor ítalo americano Raven Grimassi tem elaborado sobre a história de Aradia em seus livros Caminhos da Strega (1995), Bruxaria Italiana (2000) e Bruxaria Hereditária (1999), dando a ela um sobrenome, história pessoal e doze seguidores para espalhar o evangelho dela após o seu desaparecimento.

Enquanto Leland iguala Aradia com Herodias (1899, 1), alegando posteriormente que ela é, na realidade, uma versão de Lilith (1899, 102), uma quantidade de outras teorias a respeito da origem do nome de Aradia têm sido propostas. Uma hipótese, apresentada pela estudiosa italiana Lorenza Menegoni em sua tradução e edição do Aradia de Leland, é que o nome deriva do Grego Ariadne, através do seu cognato etrusco Areatha (Menegoni, 1999, xii). O estudioso francês de etrusco, Zacharie Mayani, conecta a raiz Ar- com as palavras para “fogo” e “altar”, por associação com os conceitos de luminosidade e sacralidade; assim, Areatha ou Arathia seria “a luminosa”, um epíteto apropriado para a filha da deusa da lua (Mayani, 1963). Outra explicação liga o nome Aradia as palavras latinas ara, “altar”, e dea, “deusa”, fazendo dela a deusa adorada no altar; ou alternativamente, aratrum (arado) e dea, significando “deusa da terra fértil” (Grimassi, http://www.stregheria.com/Herodias.html). O problema com essas derivações é que elas são putativas; nenhum nome como Areatha, Arathia ou Aradia sobreviveu nas inscrições Etruscas nem na literatura Romana. A questão das origens não está completamente posta, pois embora os parâmetros das narrativas sejam paralelos com as lendas medievais de Herodias, ou Erodiade, como ela ficou conhecida em italiano, não há registro do nome Aradia em nenhum texto italiano publicado ou manuscrito medieval. Da mesma maneira, enquanto numerosas personagens folclóricas italianas têm nomes que derivam de Erodiade – como exemplo, la Redodesa, Redodeia, e Aredodesa na Italia subalpina (Cattabiani, 1994: 13), estas se referem a bruxa boa do Natal do folclore italiano, la Befana, sugerindo uma conexão entre lendas medievais de uma figura feminina sobrenatural que voa pelo ar, e o desenvolvimento de lendas infantis modernas. Etnógrafos não conseguiram, até agora, encontrar algum material sobre a personagem especificamente chamada de Aradia.

De fato, Ronald Hutton sugeriu que o nome Aradia foi, na realidade, uma italianização do Leland para a deusa bruxa “Herodiade” do romance de Jules Michelet La Sorcière (1862)[8] (Hutton, 1993: 307). Enquanto o retrato romântico e igualitário de Michelet a respeito da bruxaria certamente influenciou Leland, que bem pode ter se baseado no trabalho de Michelet para supor que Aradia realmente era Herodias, minha pesquisa sugere que Aradia já existia no folclore italiano; ela não precisava do Leland para inventá-la.

Neste periódico eu apresento evidencias indiretas de que uma personagem italiana medieval com o nome Aradia deve ter existido, pois sobreviveu na Sardenha sob um nome ligeiramente diferente até o fim do século XX. Irei demonstrar que ela está ligada as lendas medievais de Herodias e Diana, e que o seu nome é uma versão Sardenha da “Aradia” italiana. Minha hipótese é que em algum ponto antes do fim do século XIX, lendas sobre uma personagem com o nome Aradia, correspondendo as lendas de Herodias e Diana e conectada as bruxas e fadas, vieram da Sardenha, onde elas se desenvolveram de forma independente.

Isso não significa, contudo, que a personagem popular da Sardenha seja a mesma Aradia do paganismo moderno, nem que Aradia seja a mesma personagem bíblica Herodias; uma combinação de falsa etimologia, mal entendido e fraude deliberada deve ter levado ao sincretismo de diversas personagens lendárias durante a idade média. Isso será explorado profundamente abaixo.

Além da porção linguística do meu argumento, eu também sustento que a presença de Aradia na Sardenha até os idos de 1980 ilustra a tremenda preservação dessa lenda, mesmo tendo se adaptado completamente ao contexto sardo misturado com materiais das lendas nativas. Uma das razões para a boa recepção do Evangelho de Leland entre os folcloristas italianos no início do século XX, comparado com o interesse provocado pelos seus outros trabalhos, foi o ceticismo em relação a possibilidade da continuidade da existência de crenças a respeito de Diana e Herodias (Menegoni 1999, x-xi).

A sobrevivência no folclore sardo de 1980 de uma personagem relativa a Aradia prova da longue durée[9] das narrativas de Diana e Herodias, e a possibilidade de que elas podem ter existido na Toscana um século antes. Portanto, se torna mais plausível, que a informante de Leland, Maddalena[10], possa tê-lo apresentado a essa personagem mesmo em 1890.

Eu chamo meu método de “arqueologia de uma lenda”, emprestando o termo do etnologista italiano Ernesto de Martino, cujo historicismo fundamentado o permitiu examinar a religião vernacular italiana na intenção de entender como o Cristianismo se impôs sobre sistemas de crenças pré-existentes (De Martino, 2005 [1961]: 7). De Martino via o folclore como um documento histórico através do qual o passado é reconstruído – não como uma sobrevivência, mas como

“um documento de uma história única: aquela das civilizações religiosas na qual ele é uma relíquia, ou aquela das civilizações religiosas nas quais ele permanece ou é mais ou menos remodelado profundamente” (ibid.).

Minerar é, portanto, um projeto histórico, mas um para o qual eu estou usando ambas abordagens de materiais históricos e etnográficos. Meu objetivo é remover camada sobre camada, começando pela mais recente, para revelar as raízes e escoras dos materiais de narrativas modernas. Ao fazê-lo, não estou discutindo a existência de sobreviventes, ou implicando que o significado dessas narrativas não tenha mudado ao longo das eras, mas ao invés disso, demonstrando como os materiais lendários se adaptam ao contexto sociocultural enquanto mantêm uma reconhecível conexão com o seu passado.

 

Sa Rejusta

Esta história começa em Bessude, uma pequena cidade nas terras altas do noroeste da Sardenha, no verão de 1986. Como uma jovem estudante de graduação, eu estava fazendo meu trabalho de campo a respeito dos festivais religiosos tradicionais e mudanças sociais, mas mantinha um ouvido atento para narrativas locais, especialmente lendas. De fato, era difícil evita-los, visto que essa área é particularmente rica em história. No processo de ouvir e gravar esses contos, eu ouvi falar de uma personagem conhecida como sa Rejusta ou sa Rajusta. Era dito que esse ser vivia sob a Craxtu de Funari, uma grande rocha com vista para a bacia de Bidighinzu, da qual ela podia ser vista surgindo apenas uma vez ao ano, na noite de 31 de Julho, quando ela podia voar sobre as ruas da cidade apanhando e levando embora crianças que ela viesse a encontrar. Alguém poderia mantê-la na baia ao deixar um prato de massa no peitoral da janela; a ogra pararia para comer até se encher, diminuindo seu apetite por qualquer criança errante que pudesse passar pelo seu caminho.

Figura 2: a Craxtu de Funari, local de morada da sa Rejusta, no território Bessude (Sardenha, Italia). Foto da autora.

É claro que na época do meu trabalho de campo, Sa Rejusta pertencia a categoria dos bichos-papões: seres imaginários cujo propósito principal é apavorar crianças para que não façam coisas que seus pais e cuidadores não gostariam que elas fizessem. De fato, para muitas das minhas fontes de campo, há pouca diferença entre sa Rejusta  e outros bichos-papões tais como sas mamas (“as mães”): as mama de su sole (“a mãe do sol” que aparece ao meio-dia nos dias quentes de verão que apanha crianças que se recusam a tirar um cochilo), sa mama de su ventu (“a mãe do vento” que serve ao mesmo propósito no inverno) e sa mama de su funtana (“a mãe da fonte” que puxa as crianças que se inclinam muito perto de fontes e poços).

Acredita-se que Sa Rejusta assusta as crianças que ficam acordadas até muito depois do horário de dormir nas curtas noites de verão quando o céu ainda está claro no horário que elas deveriam dormir. No entanto, por volta de 1980, o medo dessas personagens já estava desaparecendo mesmo entre as crianças mais jovens da cidade graças a influencia da educação, televisão e globalização. Hoje, muitas crianças em Bessude nunca ouviram falar de sa Rejusta ou nas sas mamas, provavelmente devido a estarem sob a influencia de métodos de criação infantil baseados na psicologia, em que assustar crianças é considerado traumático e danoso para o seu desenvolvimento.

Desde o começo, eu fiquei fascinada por sa Rejusta. Quem ela era e como é que ela foi parar sob o Craxtu de Funari? Por que ela ia atrás de crianças pequenas? Qual era a história dela e qual era o significado do seu nome? Eu tentei ir atrás dos moradores mais antigos da cidade em busca de respostas para as minhas perguntas, mas tive poucas explicações. “Sa Rejusta significa a lagosta”, me explicaram; e de fato, a palavra italiana aragosta remente ao dialeto Sardo Logudoran[11], algo como s’arajusta. Mas esta palavra não é nativa para Lagudoro; mesmo assim, eu sabia instintivamente que esta era uma etimologia popular. Sa Rejusta não era e não podia ser uma lagosta gigante; Sa Rejusta, eu suspeitava, pertencia a uma camada muito mais antiga do tecido cultural.

Foi a professora Mariana Nieddu, uma conhecedora do folclore local, que primeiro me ajudou a trazer luz a esse ser lendário ao me contar uma versão mais completa da história.

“Sa Rejusta era um tipo de bruxa”, ela me explicou. “Na noite de 31 de Julho ela deixava a sua casa debaixo da Craxtu de Funari e se tornava muito pequena. Ela entrava nas casas através do buraco da fechadura, e devia checar se as garotas em idade de casar da família estavam fiando e tecendo o suficiente para o seu dote. Se você estivesse trabalhando bastante, ela não a machucaria, mas se você fosse preguiçosa ela a puniria picava os seus dedos. E havia uma rima que eu não consigo lembrar agora, de acordo com a qual, quanto mais você estivesse fiando e tecendo, tantos dedos ela iria cortar” (entrevista com Marianna Nieddu, 22 de Agosto de 1986).

A forma de manter distante esse ser aterrorizante era deixar um prato de lentilha ou trigo na soleira da porta; a bruxa seria forçada a parar e contar tudo, o que levaria até o amanhecer. Assim que o sol nascia ela seria obrigada a retornar a sua casa escondida sob a pedra.

Aqui encontramos temas bem conhecidos do folclore europeu: a bruxa noturna maliciosa que pode encolher a si mesma e entrar através do buraco da fechadura, e que, quando presenteada com objetos pequenos tais como sementes ou grãos de areia, é forçada a conta-los, então acaba se frustrando e não causando danos. Nas regiões vizinhas, nas redondezas das cidades Torralba e Bonnanaro, sa Rejusta tinha um nome ligeiramente diferente: Sorre Justa, “a irmã justa”. Enquanto isso, linguisticamente, faz mais sentido para mim, ela requer uma pergunta: se uma personagem canibal que sequestra crianças e pica os dedos de jovens mulheres era a irmã justa, quem seria a irmã injusta, e o que ela fazia? Em Budduso e nas cidades ao redor, o mesmo espírito é chamado de mama Erodas (“mãe Herodias”) (Turchi,2001, 97). Esse detalhe nos traz uma primeira e importante chave para a identidade de sa Rejusta, ao liga-la não apenas com as outras “mães” sobrenaturais, mas a figura bíblica de Herodias e a complexa e bem desenvolvida lenda ao redor dessa personagem no folclore italiano. Meu argumento, então, é que a sa Rejusta de Bessude deriva de um conjunto de lendas mais antigo sobre perambulações noturnas, figuras femininas sobrenaturais ligadas com a fiação e tecelagem, magia, as janas ou fadas e com reuniões e justiça: premiando os obedientes e punindo os perversos. Mas a própria Herodias é provavelmente uma interpretação medieval cristã do que poderia ter sido uma figura sobrenatural mais antiga com laços no folclore do norte da Europa, cuja história entrou na Sardenha durante o início da Idade Média e foi sincretizada com lendas nativas de espíritos femininos perigosos. O restante deste capítulo é dedicado a revelar essa história examinando cada camada do folclore como um bom arqueólogo, para contextualizar e entender o seu significado.

 

Herodias e Diana

Durante a Idade Média, iniciando por volta do século IX, alguns documentos eclesiásticos reportavam lendas sobre procissões espirituais noturnas lideradas por uma figura sobrenatural nas áreas que hoje fazem parte do Norte da Itália, Sul da França e Oeste da Alemanha. Nas narrativas e crenças relacionadas, essas procissões entravam nas casas, consumiam comidas que eram restauradas magicamente, cantavam, dançavam, e costumavam a se divertir. A líder respondia as perguntas de suas seguidoras e dava conselhos a respeito de ervas curativas e a localização de objetos perdidos ou roubados. Se a assembleia encontrasse a casa bem organizada, ela entrega bençãos e boa sorte, mas se encontrassem a casa bagunçada e suja, ela puniria os moradores.

Enquanto estas lendas incorporavam claramente materiais fantásticos, algumas mulheres de fato confessaram participar dessas reuniões noturnas, enquanto seus corpos permaneciam deitados dormindo (Cohen, 1975, 206-24; Ginzburg, 1989, 68-78). Na maioria dos documentos mais antigos, os crentes se referiam a líder da assembleia espiritual por uma série de nomes incluindo Madonna Oriente (“Dama do Leste”), la signora del giuco (“a dama do jogo”), Richella (“Rica”, a dama das riquezas), Abundia, Satia, Holda, Perchta, Bensozia (do latim bona socia, “a boa sócia”), ou Bensoria (do latim bona soror, “a boa irmã”) (Ginzburg, 1989: 67-71). Contudo, começando com o relato mais antigo dessas lendas, no trabalho de Regino, Abade de Prüm em 899, os clérigos associaram a líder com duas figuras do Novo Testamento: Diana e Herodias.

Citando o Canon Episcopi, um documento atribuído ao Concílio de Ancyra em 314, mas possivelmente uma falsificação posterior, visto que essa foi sua primeira menção nos registros eclesiásticos, Regino se queixa que muitos acreditam que Diana é uma deusa ou uma rainha que tem um terço da terra sob seus cuidados. Ele adverte os bispos para avisarem seus rebanhos contra a falsa crença das mulheres que pensam que seguem “a deusa pagã Diana, ou Herodias” em suas viagens noturnas, cavalgando nas costas dos animais sobre longas distancias, seguindo as ordens da senhora que as chamava para servir em determinadas noites (Bonomo, 1959: 19; Caro Baroja, 1961: 62; Cohen, 1975: 211). Esses avisos, juntamente com os nomes de Herodias e Diana, são repetidos no encíclico de Raterius de Liegi, Bispo de Verona (890-974), Burchard de Worms (950-1025), e vários escritores eclesiásticos posteriores, eventualmente passando para o corpo da lei canônica (Cohen, 1975: 212). Em 1310 o Concílio de Treviri combinou os dois nomes, criando “Herodiana” (Ginzburg, 1989: 67).

O Historiador Carlo Ginzburg argumenta que a identificação da líder da assembleia espiritual noturna das mulheres com Diana ou Herodias foi uma tentativa dos homens da igreja de tornar compreensível, dentro de uma estrutura eclesiástica, um corpo de crenças populares que não se conformavam com a base de conhecimento e com as expectativas do clero. Foram os clérigos que, em sua encíclica e manuais de confissão, trouxeram a conexão entre a líder das assembleias espirituais e as figuras mais conhecidas em um contexto eclesiástico, tal qual Herodias e Diana. Ginzburg escreve:

“Não obstante a dúvida permanece de que os homens da igreja e bispos (bem como posteriormente os inquisidores) estivessem forçando a crença que eles encontraram em estruturas já existentes. O aceno para “a deusa pagã Diana”, por exemplo, nos leva a suspeitar de uma interpretatio romana, de uma lente distorcida derivada da religião antiga” (1989: 68).

Não é acidental que ambas figuras Herodias e Diana tenham sido trazidas do Novo Testamento, o principal corpo de conhecimento sobre o qual o conhecimento eclesiástico medieval foi construído, e que nele, ambas são personagens negativas.

Herodias, ou “Erodiade” em Italiano, aparece no Evangelho de Mateus como a cunhada do Rei Herodes (Mateus, 14:3-12). Ela odiava João Batista e queria vê-lo morto, então ela criou um plano para mata-lo. Ela persuadiu sua filha Salomé a dançar para Herodes em troca da cabeça do santo. O plano funcionou: Salomé dançou, Herodes levou a cabeça de João Batista entregue para ela em um prato, e esse é o final da história, ao menos nos evangelhos. Mas diversas lendas pré-cristãs explicam que quando Salomé viu a cabeça de São João Batista trazida diante dela, ela começou a lamentar e arrepender-se de seu pecado em um ataque de remorso. Uma rajada de vento surgiu da boca do santo e soprou a famosa dançarina no ar, onde ela foi condenada a vagar eternamente em penitência (Cattabiani, 1994: 208; Cohen, 1975: 212).

Enquanto sabemos de Salomé através de contos históricos, os Evangelhos na verdade nunca mencionaram o nome dela; ela foi conhecida simplesmente como “a filha de Herodias” (Marcos 6:17-28 e Mateus 14:3-12). Visto que, no costume romano, as esposas e filhas de uma casa eram normalmente conhecidas pelo nome do chefe da família, é fácil de ver como, com o passar do tempo, Salome foi confundida com a sua mãe Herodias. Tão pouco uma figura positiva; de fato, Herodias é indiscutivelmente a mulher mais perversa mencionada no Novo Testamento. Este fato é essencial para a ligação que se desenvolveu entre Herodias, a deusa Diana, e as lendas a respeito das mulheres que voavam de forma sobrenatural que os clérigos medievais tentaram reprimir.

Diana é a única deusa pagã citada no Novo Testamento, em Atos 19:1-41, que conta a história da jornada de Paulo para Éfeso, onde se eleva o grande templo de Ártemis, que o Evangelho chama pelo nome de sua contraparte romana, Diana. Ártemis e Diana foram associadas com a lua, em um de seus aspectos, Diana foi confundida com a Hécate Grega, a protetora das bruxas. Hécate era também a rainha dos espíritos dos mortos, presente em túmulos e na lareira, onde os povos pré-romanos enterravam os seus ancestrais. A noite ela aparecia nas encruzilhadas, seguida por uma comitiva de espíritos de mortos inquietos – aqueles que morreram antes de seu tempo ou em situações injustas (Caro Baroja, 1961: 26).

Assim, para os clérigos medievais, Diana não era apenas uma deusa pagã, mas ela era aquela associada com o pior tipo de atividade espiritual. Essa ligação com a bruxaria e os espíritos dos mortos foi crucial para ajudar os clérigos a censurar as crenças nas jornadas espirituais noturnas, argumentando que os espíritos eram maus e que as experiências das mulheres que reportavam essas jornadas eram inspiradas por demônios (Cohen, 1975: 217).

Ao conectar a líder das assembleias espirituais com Herodias e Diana, os homens da igreja medieval se esforçaram claramente em não apenas inserir crenças populares seculares na estrutura religiosa cristã, mas em enquadrá-las como uma forma de idolatria pagã, e assim condená-las. Como C. S. Watkins argumentou a respeito dos costumes medievais ingleses, apesar do fato de que com algumas poucas exceções, a Europa medieval já estava completamente cristianizada por volta do século X, os clérigos medievais frequentemente escreviam como se o paganismo fosse uma ameaça real, pois o material teológico do qual eles derivam vem de um período anterior, durante o qual o paganismo ainda estava vivo.

Eles transferiram essas referências para práticas fora da norma que eles observaram em seu próprio tempo, geralmente em uma tentativa de censurá-las (Watkins, 2008).

Contudo, não devemos deduzir a partir disso que as crenças fossem realmente uma forma de religiosidade pagã. Ao invés disso, elas misturavam temas de sistemas de crenças anteriores com material vindo do contexto contemporâneo, como o folclore sempre faz. O que elas de fato representam é um entendimento de mundo popular ou vernacular, em contraste com o eclesiástico.

Se as lideres das assembleias espirituais noturnas do folclore medieval não fossem a deusa pagã Diana, nem a vilã do Novo Testamento Herodias, elas certamente seriam figuras trazidas das lendas pré-cristãs. Podemos conseguir um melhor entendimento sobre a sua natureza ao examinar os nomes dados a elas nos relatos de autores clericais e nas confissões dos seus párocos.

Burchard de Worms da o nome alternativo Holda, uma importante personagem do folclore alemão até o tempo dos irmãos Grimm no início do século XIX. Holda (Frau Holle, Hulda, Holle, etc.; também conhecida como Perchta ou Berchta) foi originalmente uma deusa pagã do solstício de inverno e o renascimento do ano (Cohen, 1975: 213). Ela era um ser sobrenatural maternal ligada aos poços e cavernas (portanto, ao submundo terreno) e ao voo pelo ar. Ela era associada frequentemente com o inverno; ela era ativa durante os doze dias do Natal, e acreditava-se que os flocos de neve eram as penas que caiam da sua capa de penas de ganso (Motz, 1984). Ela tinha ambos aspectos, belo e aterrorizante; ela poderia aparecer como uma mulher jovem e atraente, ou como uma velha feia, de nariz longo com dentes enormes que aterrorizava as crianças, mas geralmente ela só era agressiva se fosse irritada. O que mais a irritava eram a preguiça e o desleixo no trabalho feminino, particularmente relacionado com a fiação e a tecelagem, das quais ela era padroeira. Quando ela voava pelo ar, era acompanhada pelo cortejo de almas dos mortos, especialmente as crianças que não foram batizadas e os que morreram antes do tempo. As suas visitas, contudo, traziam boa sorte, prosperidade e fecundidade para a terra (Cohen, ibid.).

Inclusive, os outros nomes dessa visitante espiritual frequentemente fazem referencia e são associadas com a fertilidade e prosperidade de todos os tipos: a francesa Abundia (do latim abundantia, “abundancia”) e Satia (do latim satius, “cheio” ou “abundante”) e a italiana Richella (do italiano ricco, “rica”) claramente ilustram essa ligação. Alguns dos seus outros nomes, ao invés disso, sugerem eufemismos para outra deusa com associações parecidas, mas diferentes. Nos anos 1200, Vincent de Beauvais escreveu no Speculum morale que algumas “mulheres iludidas” chamam Herodias e Diana bonae res, “coisas boas”. O Roman de la Rose chama as seguidoras de Abonde bonnes dames, “as damas bondosas”. Os Benandanti (bons andarilhos) do Friuli homenageiam uma dama majestosa chamada “dama bondosa”.

Ginzburg chama a atenção para a natureza propiciatória dessas denominações, comparando-as com os epítetos bonna dea e plácida, que fazem referência a ninguém menos que Hécate, deusa da bruxaria e senhora dos mortos, que também voa pelo ar encabeçando um cortejo de almas (Ginzburg, 1989: 77). No mundo pós-romano, com a sua mistura de culturas, o folclore sobre Hécate, a rainha dos mortos, e Holda, portadora de fertilidade que também cavalga na frente de uma procissão de almas, devem ter começado a se fundir, desenvolvendo padrões trans geográficos firmes, bem como características locais.

Claramente, estamos lidando com um corpo de materiais muito arcaico, cujas origens remetem a visão de mundo pré-cristã no qual os espíritos dos mortos, liderados por uma figura feminina sobrenatural, visitava as casas onde recebia oferendas de comida e bebida; se tudo estivesse em ordem, elas traziam fertilidade e abundância para os lares visitados.

Quaisquer que fosse a sua origem nativa, nomes locais eram atribuídos para as líderes dessas assembleias espirituais nos diversos vernáculos europeus, por volta do século XIII, a sua identificação com as figuras de Diana e Herodias realizada através da influência da Igreja, foi concluída.

 

 

As Damas da Noite, as Fadas e os Mortos

Assim como a sua líder, os espíritos da procissão liderada por Diana ou Herodias ficaram conhecidos por uma série de nomes: bonae res (“coisas boas”), dominae nocturnae (“damas da noite”) ou fatae (“fadas”). Como Ginzburg argumenta acima, essas denominações sugerem uma certa qualidade eufemista indicando a natureza ambígua desses espíritos; isso nos faz lembrar certas tradições de língua inglesa nas quais as fadas são chamadas de “bom povo”. Inclusive, uma série de estudiosos já argumentou que esses espíritos que ficaram conhecidos como “fadas” em inglês originalmente eram as almas dos mortos.

No folclore europeu, as fadas e os mortos tem uma série de características em comum: eles existem nas margens do mundo humano, podem aparecer e desaparecer conforme desejarem, frequentemente são associados com antigos cemitérios, recompensam e punem as ações humanas, podem entrar nos lares humanos para banquetear, e em tempos passados se satisfaziam com danças noturnas em circulo[12]. Conforme citado por Diana Purkiss:

“Fadas ... compartilham muitas características dos mortos; em algumas histórias elas são os mortos, ou os mortos estão com elas, em outras é igualmente difícil para o contador e para o leitor dizer a diferença entre um fantasma ou uma aparição e uma fada. [...] Mas a ligação entre as fadas e os mortos que retornaram não é confusa; ... como os mortos que retornam para banquetear em suas casas, ... as fadas são ao mesmo tempo uma sociedade separada da sociedade humana e está crucialmente interligada a ela. Como os mortos, elas são estrangeiras e familiares; como os mortos, elas precisam de presentes dos vivos e dão presentes em troca; como os mortos, elas podem ser irritadas. Como os mortos, elas estão ao mesmo tempo presentes e ausentes” (Purkiss, 2000: 87).

Podemos, portanto, concluir que parte do material que apareceu tanto na literatura eclesiástica do século IX em diante, quanto em certas confissões e relatos de julgamentos do período da perseguição contra a bruxaria, tem suas raízes em um corpo de lendas com raízes ainda mais profundas no folclore europeu. Essas lendas de uma procissão de espíritos encabeçada por uma líder sobrenatural podem nos levar de volta a uma camada narrativa relacionada aos mortos e a sua relação com os vivos. Isso ainda estava muito vivo na Sardenha em 1980.

Eu lembro que nos meus primeiros trabalhos de campo, os moradores mais velhos da cidade frequentemente reclamavam dos barulhos noturnos feitos pelos jovens retornando das festas e festivais referindo a isso como su traigozzu (a grande comitiva). Após um questionamento mais próximo, esta comitiva se tornava não outra senão a procissão de almas condenadas; diziam que era barulhento porque cada espírito arrastava uma corrente pesada que consistia nos pecados que ela acumulou durante a vida.

Um outro nome para essa procissão era as regula morte (a tropa dos mortos), e em Gallura, a parte nordeste da ilha, era chamada de as frotta de Erode (a tropa de Herodias), preservando a ligação com a lenda medieval (Turchi, 2001: 224). Dizia-se que haviam certas pessoas no vilarejo que tinha habilidades sobrenaturais de ver essa procissão ao ir em uma encruzilhada ao meio-dia ou à meia-noite e olhar sobre seus ombros. Os espíritos dos moradores da cidade que estavam condenados a morrer dentro de um ano apareciam nesse cortejo.

Aqueles abençoados (ou amaldiçoados) com essa habilidade eram conhecidos como bidemortos “[aqueles que] viam os mortos”. Mas mesmo os moradores que não tinham essa capacidade interagiam com os mortos de forma regular. Naquele tempo ainda era costume levar oferendas de comida aos cemitérios durante o período conhecido como sos mortos, “os mortos”, entre 30 de outubro e 02 de novembro. Muitos moradores também mantinham um local na mesa para os seus mortos amados, colocando comida para eles. Entre as oferendas apropriadas para essas refeições espirituais haviam dois tipos de biscoitos: sas trikkas, feito com uvas que sobravam do processo de feitura do vinho, essencialmente idênticas com aquelas que os antigos gregos deixavam para Hécate, e sas ankas de kane, “pernas de cachorro”, que eram de fato modelados como pernas de cachorro, que no passado podiam fazer referencia aos cães sagrados de Hécate.

As almas dos mortos eram aguardadas durante o período de sos mortos, não importando se fosse uma procissão fantasma ou como indivíduos; uma vez vi uma mulher oferecendo uma refeição para um Cigano (Rom) que veio pedindo na cidade. “Eu geralmente não dou nada para eles”, ela explicou, “mas visto que eu perdi recentemente meu marido, e este sendo período de sos mortos e tudo o mais, você nunca sabe quem pode vir à sua porta.” Sugerindo que as almas penadas poderiam aparecer mesmo disfarçadas de estranhos durante esse período liminar do ano, e que a oferenda de comida era feita necessariamente para manter as relações harmoniosas entre os vivos e os mortos.

Dizem que na Sardenha há seres chamados janas, cujo nome significa “seguidoras de Diana”, conectando-as diretamente com as lendas dos espíritos vagantes. Dizem que elas vivem nos túmulos Neolíticos escavados em rocha, conhecidos como domus de janas, “casas das fadas”, ou em cavernas, ambos locais funerários pré-históricos. Elas são excelentes fiandeiras e tecelãs, podendo interagir com humanos e até mesmo casar com eles, em alguns casos (Liori, 1992: 107-111). Como as iele romenas, que são lideradas pela Irodesa (Kligman, 1981: 54), as janas sardinhas tem como padroeira Araja ou Arada (Turchi, 2000: 78), cujo nome é uma versão da Erodiade italiana medieval. Ela é de fato uma interpretação em Sardo da palavra hipoteticamente italiana “Aradia”.

Esta é uma evidencia parcial persuasiva, sugerindo que em algum momento do tempo, uma personagem chamada Aradia deva ter existido no folclore italiano, e quando a sua história foi trazida para a Sardenha, seu nome, bem como detalhes de sua lenda, adquiriram um tempero sardo. Em alguns casos, a líder das janas era chamada de s’Araja dimoniu, “o demônio Aradia”, um reflexo da demonização da lenda nas mãos dos clérigos. Se s’Araja dimoniu é a líder das fadas, não é um salto irracional supor que em algum momento no lendário sardo, essa figura se divida em duas, adquirindo uma contraparte não demoníaca, mas bondosa, recompensando o trabalho bem feito e punindo a preguiça das mulheres jovens que fiavam e teciam. O nome desse espírito era s’Araja justa, “a Aradia justa” – e aqui temos o possível antecedente de sa Rejusta (Turchi, 2001: 79).

As lendas de Herodias e Diana devem ter entrado na Sardenha durante os séculos XII e XIII, quando as cidades estado de Pisa e Genova competiam pelo controle da ilha. Esse foi o momento exato durante o qual essas lendas foram largamente difundidas na Itália continental, e quando os clérigos estavam escrevendo encíclicas de cuidado contra os perigos de acreditar nesses contos. De fato, não é improvável que tenha sido através da influência dos próprios clérigos que a lenda tenha sido importada. Por volta do século XV ela já podia ser encontrada em confissões sardas (Turchi, 2001: 84).

O que parece não ter acontecido na Sardenha é a mistura dessa lenda complexa com o mito emergente do sabá diabólico; os registros medievais de julgamentos contra bruxas na Sardenha carecem de confissões de mulheres que aleguem ter saído a noite com Aradia (Hennigsen, 1993; Pinna, 2000). Ao invés disso, s’Araja justa parece ter se desenvolvido de forma hibrida, ao longo dos séculos, com personagens lendárias nativas tal como sas mammas (“as mães”), que podem ter sido versões pré-cristãs de espíritos ou divindades ligadas com o sol, a lua e a água. Ela também se fundiu com lendas a respeito dos seres vagantes noturnos de um tipo bastante diferente.

Ao lado das lendas de espíritos femininos benéficos voando sobre a noite encabeçando uma procissão, havia na Europa, desde tempos antigos, lendas de um tipo de criatura bastante diferente: a maléfica bruxa noturna. Acreditava-se que essas mulheres entravam nas casas durante a noite em forma espiritual para causar danos aos moradores sugando o seu sangue, cozinhando e comendo o corpo das suas vítimas antes de restaurá-los para a aparência saudável. Eventualmente suas vítimas ficavam doentes e morriam.

Essas histórias são relativas as lendas clássicas romanas das striae, mulheres que podiam se transformar em aves de rapina para voar durante a noite e comer suas vítimas, frequentemente crianças, em suas camas. Suas vítimas frequentemente pareciam saudáveis, mas após algum tempo adoeciam e morriam: acreditava-se que as suas almas tivessem sido devoradas e em alguns casos, cozinhadas pelos seres maléficos (Bonomo, 1959: 33; Cohen, 1975: 206-8).

Certamente existiam lendas análogas na Sardenha até mesmo no século XX. O folclore sardo distingue claramente entre a totalmente maligna coga (literalmente “cozinheira”, ou bruxa vampira) ou surbile e a jana (fada). Cogas e suas contrapartes, surbile, são completamente malignas. Elas caçam recém-nascidos e crianças não batizadas, entrando nas casas durante a noite através do buraco da fechadura ao se transformarem em insetos, ou se ficando tão finas quanto linhas (Turchi, 2001: 87-8). Algumas supostamente untam seus corpos com um tipo de óleo para realizar essa transformação (ibid). A coga ou surbile são frequentemente inconscientes das suas ações; uma lenda conta a respeito de uma avó que involuntariamente chupou o sangue de seu próprio neto (Turchi, 2001: 99).

Em outras lendas, contudo, cogas e surbiles parecem pertencer a uma sociedade de bruxas malignas, e podem iniciar outras pessoas. Turchi cita uma lenda relatada por Piero Maria Cossu na qual uma jovem é iniciada por uma criada doméstica que era secretamente uma coga. A bruxa mais velha instrui a jovem iniciada no uso de um unguento de voo, e a adverte para não ter medo enquanto voa, e especialmente a não fazer o sinal da cruz quando passar por cima de uma igreja ou cemitério. Mas em seu primeiro voo, a jovem faz [o sinal da cruz] de forma tão instintiva, então cai imediatamente no chão. Na manhã seguinte ela é descoberta pelo padre enrolada no chão em posição fetal, nua e chorando. Ele então a leva ilesa para sua família, mas a criada que era uma coga é então descoberta e queimada viva por bruxaria (Turchi, 2001: 122). Para se defender contra as perigosas coga e surbile, é necessário deixar cevada ou trigo na soleira da porta, onde ela será forçada a contar os grãos (Turchi, 2001: 97) – um tema agora encontrado no complexo de lendas envolvendo sa Rejusta.

Mas sa Rejusta está em algum ponto entre Araja, a rainha das janas, e a malvada coga e surbile. Ela tem elementos em comum com outra personagem folclórica sa gioviana (“aquela da quinta-feira”), um espírito feminino que entrava nas casas das mulheres às quintas-feiras, quando elas estavam fiando, oferecendo ajuda mágica de forma que elas poderiam fiar grandes quantidades (Turchi, 2001: 86). Ela também poderia punir as mulheres que fiassem com preguiça, que começavam tarde suas tarefas e não fiavam ou teciam o bastante para os seus dotes (Turchi, 2001: 93). Ela poderia ser afastada colocando alguns grãos de cevada ou grão de bico na entrada da porta.

As lendas das gioviana foram lembradas nos relatos de julgamentos por bruxaria no século XIV narrados por Carlo Ginzburg e outros historiadores nos casos da Sibillia e Pierina de Milão, que eram chamadas para servir sua senhora, a Signora Oriente, as quintas-feiras para participar das festas e assembleias espirituais (Bonomo, 1959; Baroja, 1961; Muraro Vaiani, 1976; Ginzburg, 1989). Podemos perceber que, de muitas formas, as lendas das gioviana lembras as da sa Rejusta. Ambas figuras sobrenaturais são relacionadas com a fiação e tecelagem, e com punição de mulheres que não tivessem fiado quantidade suficiente; ambas podem ser afastadas ao serem forçadas a contar grãos ou sementes colocadas na entrada da porta. Ambas parecem trazer elementos do folclore de Holda, aquela que voa a noite, padroeira da fiação, tecelagem e fertilidade.

Está claro que historicamente, essas lendas funcionavam como uma forma de controle social para assinalar o comportamento apropriado para as jovens. Enquanto elas não eram enclausuradas severamente como as mulheres da Sicilia e de outras partes do sul do Mediterrâneo, até o século XX, era esperado que as mulheres solteiras da Sardenha confinassem suas ações à esfera doméstica. Enquanto os homens traziam para o casamento uma casa, terra e gado, as mulheres eram responsáveis por trazer toda a decoração doméstica, incluindo as roupas de cama e tapetes. Estes, tradicionalmente, eram feitos em casa com os produtos da economia agrária e pastoral, que incluíam a lã e o linho. Assim, fiar e tecer              eram consideradas habilidades essenciais para as mulheres da Sardenha. Era típico que as mulheres começassem a aprender ainda crianças, e trabalhavam em seus dotes desde muito cedo. Um bom dote era uma posse importante para as jovens, que frequentemente levavam apenas isso para o seu casamento em uma ilha com economia severa e empobrecida. Ainda em meados do século XX, uma procissão de casamento com carroças puxadas por cavalos ou burros levava as mobílias domésticas da casa da noiva para a do casal, onde o trabalho manual da noiva era exposto para os vizinhos admirarem durante vários dias. O bom trabalho manual não era apenas uma habilidade doméstica essencial; ele poderia elevar a condição social da mulher aos olhos dos seus novos parentes e vizinhos. Não é de se admirar, então, que houvesse pressão social para as jovens não apenas produzirem, mas produzirem bem e abundantemente. A tia mais velha de Marianna Nieddu, a jovem de quem eu coletei a versão mais completa da lenda de sa Rejusta em 1986, confessou ter ficado aterrorizada, enquanto jovem, de que a velha bruxa pudesse mutila-la porque não estava fiando o suficiente.

Por volta do século XIX, Herodias e Diana como líderes das donzelas noturnas já havia sumido da tradição oral da Sardenha, substituídas pela gioviana e sa Rejusta, que ajudavam as jovens habilidosas a cumprirem sua obrigação, mas aterrorizava s preguiçosas com uma retribuição brutal.

A partir deste muito breve estudo, duas conclusões importantes podem ser tiradas. A primeira, que será interessante para historiadores do paganismo moderno, é que em algum ponto, houve uma personagem conhecida no folclore italiano como Aradia, derivada das lendas medievais de Herodias e ligada aos voos noturnos, entrada em casas, fiação, tecelagem e magia. Enquanto ela parece ter desaparecido do folclore da Toscana e Emília-Romana onde Charles Leland relatou tê-la encontrado no século XIX, ela ainda existe na Sardenha, embora de forma local. A segunda conclusão, mais ampla, destaca o trabalho dos estudiosos de lendas, e diz respeito a habilidade dos narradores moldarem o material lendário da narrativa para refletir preocupações e adaptar-se aos padrões locais. Assim, s’Araja justa não é apenas Herodias e Diana, mas uma primorosa personagem da Sardenha.

 

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[1] Publicado originalmente em Inglês como “Aradia in Sardinia: The Archaeology of a Folk Character”. Tradução para o Português com notas de tradução por Remus Lupino.

[2] N.T. Do original em Inglês “Who Was Aradia? The History and Development of a Legend” (2001).

[3] N.T. Getty Research Institute

[4] N.T. Modern Pagan Festivals

[5] N.T. The Triumph of the Moon: a History of Modern Pagan Witchcraft

[6] N.T. Epistle of Diana

[7] N.T. The House of the Wind

[8] N.T. “A Feiticeira” disponível em português.

[9] N.T. “Longa duração” em francês

[10] Na realidade, Margherita Talenti ou Taluti; veja em Robert Mathiesen, “Charles G. Leland e as Bruxas da Italia”, 30. Para a identificação do provável sobrenome dela, estou em débito com R. S. Grimassi, que encontrou evidências disso nos papeis pessoais de Leland guardados na Biblioteca do Congresso.

[11] A região noroeste da ilha é conhecida como Logudoro; Bessude está localizada nessa área.

[12] Veja a lenda da Sardenha sobre os mortos dançando em circulo e quase levando um fazendeiro para o seu mundo no texto “Two Madonnas” (Duas Mães) de Sabina Magliocco, 95.

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