Tornou-se comum ao esoterismo ocidental moderno dividir a si mesmo e as demais práticas mágico-religiosas entre caminhos da “mão-direita” e caminhos da “mão-esquerda”, recorrendo a interpretação ocidental do Tantra e dos pilares da Cabala como explicações para a existência desses dois caminhos. Enquanto o caminho da mão direita traria uma busca pelo alinhamento à vontade divina e uma harmonia com o cosmos, o caminho da mão esquerda traria para muitos praticantes as ideias da auto-superação e da revolta contra as instituições, normas culturais e religiosas da sociedade hegemônica, por vezes, permeadas de um propósito “anticósmico” mais ou menos evidente conforme a narrativa em questão.
Diante
desse paradigma, é tentador aos interessados nesses temas tentar encaixar as
práticas de bruxaria em um desses caminhos, quando não em ambos, sem perceber
que essa dicotomia é por vezes artificial e pouco representativa, pois muitas
vertentes de bruxaria tradicional possuem a sua própria compreensão do que seja
a esquerda e a direita, e de qual dessas polaridades de alinhamento moral
melhor lhes cabem a partir de suas identidades e seus valores.
Nos
conhecimentos orais de minha linhagem preserva-se a história de um menino que
abandona sua casa em busca de Deus, e seguindo as direções reveladas a ele por
um sonho, encontra uma bifurcação onde o caminho da esquerda é violento, cheio
de estradas íngremes e animais venenosos, enquanto o caminho da direita é suave
e leva até uma igreja deserta. Em nenhum dos caminhos ele é capaz de encontrar
Deus, embora receba sinais de sua manifestação. Finalmente, ao retornar à
bifurcação ele descobre a verdade sobre a sua busca através de uma aparição da Virgem Maria, e então retorna para casa
mais sábio do que antes.
Essa
história sintetiza uma percepção mais simples do que o entendimento
contemporâneo sobre direita e esquerda, na qual estas direções seriam metáforas
para o bem e o mal, para o dia e a noite, e em alguns casos para a vida e a
morte. A grande lição é que a apoteose que buscamos através da magia não
se encontra em nenhum deles, mas na experiência de ambos em equilíbrio. Deste modo,
entendo que não devemos nos conformar à doutrinação eclesiástica de uma moral
puritana, associada à igreja vazia na direita, que visa nos transformar em
seres indefesos que pautam sua conduta de vida numa lógica perigosa de
não-violência, que frequentemente se desdobra em conformismo e vitimização ante
às injustiças e intempéries da existência humana. Contudo, deveríamos rejeitar
igualmente a senda oposta, na qual a violência irrefletida e a perversidade são
como um veneno que nos transforma em verdadeiros monstros, insensíveis e
incapazes de exercitar as virtudes do autocontrole, da compaixão e do agir em
prol de uma comunidade. O que está expresso na esquerda é o lado mais cruel e
brutal da natureza, que em nosso entendimento faz sim parte do Cosmos, e é
necessário à manutenção do equilíbrio natural em seu devido contexto. O que
está expresso na direita, em benevolência e suavidade, é outra parte necessária
para o bom andamento das coisas.
A
concepção de direita e esquerda aqui se volta a um alinhamento moral pessoal, à
decisão consciente por agir de forma benéfica ou maléfica em relação ao outro e
ao mundo ao seu redor, sabendo também que o que é bom ou mau em relação a cada
ser vivo e a cada contexto sempre é muito relativo, e depende de uma série de
circunstâncias e interpretações. A partir disso, é necessário dizer que a
prática de atos benéficos e maléficos contra outros seres obedece a um conjunto
de valores na stregoneria, mas estes valores não estão contidos nas leis
humanas ou na doutrina religiosa hegemônica.
O contorno disso que podemos
chamar de “ética” bruxa é a natureza marginal e intermediária da própria bruxaria:
marginal porque cresce e se desenvolve às margens da sociedade convencional,
e intermediária porque o seu exercício ocorre entre o mundo dos vivos e
dos mortos, entre o divino celestial-transcendente e o divino ctônico, ou seja,
entre o paraíso e o inferno. Pela sua própria natureza enquanto bruxo, o
indivíduo precisa ser capaz de andar por ambas as vias às quais acredita ter
acesso em razão de sua marginalidade. A fonte desses valores também não é outra
senão as qualidades do divino e os seres que se manifestam neste universo intermediário,
nessa bifurcação entre os mundos clássicos de terra, céu e mar. A título de
exemplo, não se pode clamar pertencimento à raça dos daimones da água, cuja
natureza é ambivalente e insidiosa, nem se pode clamar que se está sob o
patronato da deidade luciférica da bifurcação, se não houver potencialidade
para agir de acordo com essa natureza – o que inevitavelmente inclui não apenas uma sabedoria que deve ser buscada,
mas também modos de conduta rechaçados pela moralidade convencional, como a liberdade
erótica, a amoralidade competitiva na busca pelos objetivos desejados e a vingança
praticada por um justo motivo.
Aqueles que se limitam a optar
pela direita em sua espiritualidade, rejeitando – talvez ilusoriamente – toda e
qualquer conduta que possa ferir a outrem, independente dela ser necessária
para defesa pessoal ou para corrigir uma injustiça – como é o caso de muitas
benzedeiras e curandeiros – não são compreendidos como bruxos dentro dessa perspectiva.
Falta-lhes algo da natureza que a bruxa compartilha com os daimones de sua
ancestralidade. De forma semelhante, aqueles alucinados que se lançam a uma
insanidade predatória e acreditam que fazer o mal por esporte os torna “mais
fortes” não são sábios segundo o entendimento legado por nossos mitos, uma vez
que frequentemente estes praticantes da magia estão fadados a autodestruição e,
quando raramente não chegam a esse fim, tornam-se poderosos às custas da
imposição de grande e desnecessário sofrimento a outros seres e a si mesmos.
É justo dizer então que andamos
na direita e na esquerda, perpetuamente na bifurcação, onde nossa verdade
reside, e onde aquela que ilumina nosso caminho pode ser encontrada. Quem nos
observa apenas de um lado dessa bifurcação pode nos tomar por caminhantes do
bem, e do outro lado por caminhantes do mal, como se vivêssemos exclusivamente
de caridade ou de maledicência, mas quem nos conhece de verdade saberá que o
nosso caminho é duplo, como diz a resposta tradicional à pergunta sobre em qual
caminho nós andamos nesta vida. Nossos valores nos possibilitam um olhar sobre
a vida que busca tanto o equilíbrio quanto a manifestação da natureza complexa que
compartilhamos com os antigos e com os daimones, sob a tutela do divino e da
santidade que cultuamos.
Desnecessário
dizer que não somos um “caminho do meio”, somos o caminho que serpenteia em
busca de harmonia. Podemos andar torto por um caminho reto, mas também devemos
andar reto por um caminho torto. Muitos se perdem e encontram a morte por se
aventurar nessas trilhas pela primeira vez, mas os que sobreviverem até subir
aos Céus, como Maria, viverão para sempre.
Y
Assumption of The Virgin - Sir Pieter Paul Rubens (1625-26) |
Nenhum comentário:
Postar um comentário