Por Draco Stellamare
Há um assunto sempre muito debatido
nos círculos de bruxos tradicionais que me faz refletir e procurar respostas no
passado, tanto o meu quanto o dos outros. Esse assunto é a relação íntima e ao
mesmo tempo conflituosa e incompleta entre a bruxaria historicamente precedente
à Wicca de Gerald Gardner e o esoterismo – em sentido tradicional da palavra. A
noção esotérica de tradição é o que faz com que muitos de nós tenhamos aderido
ao termo bruxaria tradicional para designar as nossas práticas, pois ele
reflete as noções de linhagem iniciática, simbologia coesa e alinhamento com os
pressupostos e estruturas dados pela tradição perene (ou qualquer outro nome
que se queira dar para esse mesmo conceito). Contudo, maiores detalhes sobre
como se deu esse processo de “esoterização” de nossas bruxarias frequentemente
fogem ao nosso entendimento.
No pouco tempo livre que me sobra entre o trabalho, a manutenção da vida doméstica e os afazeres pertinentes aos meus grupos de bruxaria, li um texto relevante da autoria de Andrew D. Chumbley – um autor frequentemente mencionado por mim e não por acaso – para a antologia Hands of Apostasy publicada em 2014 pela Three Hands Press. Esse texto se chama The Magic of History e, como o próprio título sugere, aborda as complexidades existentes entre a concepção acadêmica-historiográfica sobre o passado e a concepção interna às tradições bruxas sobre sua própria história. Chumbley elabora nesse texto uma linha de pensamento sobre a evolução das bruxarias inglesas que eu mesmo me valho para compreender as tradições italianas – em específico a minha.
De acordo com sua perspectiva,
com a qual me identifico por ter experiências similares às do autor no que
tange o conhecimento de linhagens vivas de bruxaria em paralelo ao estudo da
história, a bruxaria começa a assumir como parte integrante de sua identidade autoconsciente
as noções de linhagem iniciática mapeada, rituais formais de iniciação e a
elaboração de práticas mais cerimoniais em conjunto à magia folclórica somente
a partir do início do século XIX. Isso não implica que antes deste período não existia
nem a sombra destes conceitos dentro da Arte, mas sim que eles começam a ficar
mais importantes e a aproximar muito da bruxaria sobrevivente nas práticas
folclóricas ao esoterismo tradicional a partir deste período, que não por
coincidência coincide com diversos movimentos europeus de reavivamento das
práticas mágicas de teor iniciático e filosófico. Em parte, esse é um dos
motivos pelos quais a vasta maioria das linhagens estica sua genealogia
iniciática conhecida – com muito esforço – somente até os idos de 1800.
A maior mensagem que essa
perspectiva dos fatos nos apresenta é que somos todos frutos do nosso tempo e
local, inexoravelmente atados ao zeitgeist, e em especial reféns do
contexto sociorreligioso da cultura em que estamos inseridos. O exemplo tedioso
do cristianismo cai bem para ilustrar esse tema e, tal como é de conhecimento
do leitor deste blog que a minha ancestralidade vinculada à stregoneria se
considera católica, também é relevante a afirmação feita por Chumbley em seu
artigo de que seus predecessores nas duas linhagens que recebeu também se
consideravam cristãos. Com o florescimento de uma autoconsciência maior da
bruxaria enquanto uma tradição per se, e não uma adjacência herética e
vergonhosa de uma dita religião, ocorre um processo de emancipação que não
implica necessariamente no abandono da religião de berço, mas no entendimento
de que em nossas vidas e caminhos ela é subserviente a leis mais profundas e
significativas: as leis da bruxaria, nossa verdadeira tradição. Como diz o
autor ao final de seu texto, ao crescer por tempo suficiente apoiada num tronco
a hera se torna ela mesma uma árvore.
O que quero dizer com essa reflexão
é que tal como a bruxaria se conservou como uma heresia cristo-pagã por muito
tempo inconsciente de sua autonomia religiosa, ela também se manteve por muito
tempo sendo mais folclórica do que esotérica. O praticante da bruxaria antiga
mais comum poderia ter um entendimento sobre a transmissão do poder de uma
pessoa para a outra em contexto iniciático, mas dificilmente se importaria com o
pedigree da linhagem formada por essa transmissão. Suas preocupações em
um contexto de menor acesso à informação e necessidades de sobrevivência mais
urgentes estavam mais voltadas à funcionalidade das práticas de que ele dispunha.
Tal como uma autoconsciência sobre a autonomia da bruxaria frente às religiões
veio surgindo graças ao reavivamento das tradições sob a bandeira contemporânea
de bruxaria tradicional, também através dessa mesma bandeira – e antes
dela por influência dos muitos movimentos espiritualistas e ocultistas que
percorreram a Europa e as Américas – a relevâncias dos aspectos esotéricos das
tradições legítimas foi evidenciada. Isto é, ao menos entre aqueles que entenderam
o sentido esotérico da expressão “tradicional”.
Não é sem uma boa dose de influência
rosacruciana que tornou-se hábito em minha tradição definir que nosso cristianismo
é distinto do da Igreja Católica. Os diabolistas mais antigos da linhagem tinham
mais facilidade de reconhecer a si mesmos como membros de uma tradição autônoma
do que os cristãos heréticos (que nem ao menos se consideravam bruxos explicitamente).
A lucidez e autodeterminação dos bruxos tradicionais contemporâneos é fruto de processos
por meio dos quais essas diferentes vertentes bruxas e feiticeiras – tropeçando
umas sobre as outras durante a luta pela sobrevivência – entram em contato com
o entendimento do esoterismo tradicional presente em ordens iniciáticas,
escolas filosóficas e até em dimensões internas de determinadas religiosidades.
Isso não tira dos Antigos mais distantes no tempo o mérito de terem conduzido
uma verdadeira tradição, mas o entendimento que se tinha antes sobre quem somos
ampliou-se consideravelmente. É uma ironia do destino – ou talvez uma providência!
– o fato de que quase não somos capazes de mapear com certeza como esses
processos de amadurecimento começaram ou quando e com quem começaram na
história de nossos caminhos. Sabemos apenas aquilo que é possível concluir a partir
de quem está vivo hoje, ou de quem deixou documentadas as mudanças de
entendimento de gerações passadas. Minha crença pessoal é de que tal como as
linhagens bruxas tendem a ressurgir pelo sangue mesmo muitas gerações após a
perda de seu conhecimento, a bruxaria enquanto tradição primordial ressurge
coletivamente no tempo, atravessando períodos em que ela se protege no interior
da rústica magia folclórica, somente para desabrochar em maior refinamento
quando as condições do meio – e o próprio zeitgeist – tornam-se propícios
novamente.
Como tudo debaixo do sol é
cíclico, talvez chegue um dia em que tenhamos que ser menos eruditos, e
regressar a uma autoimagem mais simples e pragmática, mais próxima de quem
fomos no passado. Mas tenho a certeza de que tudo aquilo que se perde um dia poderá
ser achado. Tudo que morre um dia nasce novamente, não como era no passado, mas
– com sorte – maior e ainda mais forte do que antes!
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