Por Draco Stellamare
Presépio de minha casa neste ano, com as peças principais pintadas à mão. Além deste participo da montagem de um que pertenceu à minha bisavó. |
O presépio é uma das maiores representações religiosas da época de Natal, difundido no mundo todo. Levado como decoração por alguns, e por outros como um ato religioso, a ideia do presépio surgiu com São Francisco de Assis, que desejava elaborar uma reencenação do nascimento de Jesus. Com a ideia posta em prática, a encenação com atores reais em breve deu origem às reproduções em imagens esculpidas, primeiro nas casas dos nobres e mais abastados, e depois nas casas do povo em geral. Na cultura italiana e ítalo-diaspórica o presépio se mantém como um símbolo persistente de sazonalidade e devoção – um símbolo que, como outros símbolos religiosos, adquire significados subliminares nas tradições de bruxaria e magia folclórica da península e dos locais de diáspora. Neste texto vou discorrer brevemente sobre alguns desses significados dentro de meu conhecimento.
O
núcleo central do presépio é a tríade formada pela Sagrada Família, composta
pelo menino Jesus, a Virgem Maria e São José. Para além dos significados comuns
à religiosidade católica e ultrapassando as visões particularizadas de Cristo e
Maria nas vertentes mágicas populares e no discernimento esotérico de certas stregonerie,
a Sagrada Família é uma das representações mais emblemáticas do culto
doméstico. Ela representa a unidade familiar concebida – ao menos até bem
recentemente na história ocidental – como
básica e universal (formada de mãe, pai e criança), e também a tripartição de
elementos santos manifestos em figura humana – diferente da Trindade, que
possui somente uma de suas partes nessa condição. Assim o triângulo simbólico
formado por Jesus, Maria e José é entendido como uma representação de todas as
famílias, de todas as linhagens, e de todos os lares. O presépio, embora
retrate a cena do nascimento de Jesus – o terceiro mistério do rosário – inclui
em si a representação da Sagrada Família e tudo o que ela desdobra em
significado. Não é sem razão que ela também simboliza aos mais eruditos outras
triplicidades, como a dos princípios alquímicos e a dos três mundos do Cosmos
mediterrâneo – terra (José), mar (Maria) e céu (Jesus).
As
demais figuras essenciais da cena também carregam relevantes significados. Os
Três Reis Magos representam os poderes políticos do mundo, curvados à soberania
do espírito nascido na carne – representado pelo bebê na manjedoura. Eles
simbolizam também os sábios do oriente, de onde muito do esoterismo cristão
bebeu desde a Renascença. Não é sem motivo que existem inúmeros costumes
folclóricos de cunho mágico envolvendo a festa de Reis na Epifania do Senhor
(em 6 de Janeiro). Temos o costume friulano de consagrar a proteção da porta de
uma casa em nome dos Reis, e são frequentes no centro e no sul da Itália as
simpatias de prosperidade que os invocam. O ouro, o incenso e a mirra, três
presentes para três aspectos da vida de Jesus – sua importância
político-social, sua divindade e seu sacrifício – tornam-se representações de
três aspectos da vida humana e reforçam a simbologia das triplicidades que é
central na figura da Sagrada Família e dos próprios Reis Magos. A entrega dos
três presentes pelos Magos do Oriente é também um simbolismo no qual
praticantes mais intelectualizados enxergam a recuperação das sabedorias e
correntes esotéricas dos povos orientais, inoculada novamente no mundo cristão
a partir do período do renascimento. Atrelado à figura dos Reis, está a Estrela
Guia ou Estrela de Belém, ela simboliza a providência divina e a orientação
vinda do espírito. Com similar significado está o anjo, que pairando acima da
manjedoura simboliza o intermédio com Deus e a presença da ordem espiritual.
As
coisas começam a ficar mais inusitadas quando partimos para os animais e os
outros personagens menos essenciais à cena. Tradicionalmente considera-se o boi,
o asno e as ovelhas como representações dos povos que participam do mito
cristão: enquanto o boi representa os judeus, pela associação com seus valores
civilizatórios e também com a ambiguidade que lhe é atribuída biblicamente, o
asno é o representante dos pagãos, politeístas e adoradores de divindades
antigas tidas pelo judaísmo como demônios. Por fim, as ovelhas representam os
cristãos, aqueles que seguiriam a palavra de Cristo – representada pelo pastor
que as guarda. Em especial o simbolismo do asno é relevante à bruxaria, pois se
relaciona diretamente ao mito do Asno de Ouro de Apuleio, no qual a
transformação de Lucio em asno e a sua volta à forma humana através do culto da
deusa Ísis são uma metáfora para a iniciação e o renascimento em transcendência.
Enquanto os animais maiores possuem tais associações, o galo traz a lembrança
do marcador das horas e do sinal da negação do apóstolo Pedro após a prisão de
Jesus. Tanto o boi, quanto o asno quanto o galo são assim os ícones mais usuais
nos quais o Diabo é contemplado à espreita no presépio. O galo sendo um símbolo
masculino e fálico, desponta com destaque, não sendo por acaso que ele se
encontra incluído em diversas versões da cimaruta, o amuleto folclórico arcaico
que foi tomado como símbolo pela stregheria moderna. Dentre outras aves que
carregam significados e por vezes são inseridos no presépio podemos citar o pombo
branco representando o Espírito Santo, o peru como símbolo de abundância, o
faisão como elemento de riqueza e nobreza, e até mesmo o pavão, que é entendido
hegemonicamente como um ícone de vaidade e soberba, mas possui uma vinculação
com a Madonna em tradições bruxas.
O
jovem pastor carregando uma ovelha está entre as primeiras representações
imagéticas do cristianismo, comunicando-se popularmente em tempos pretéritos
com as imagens de deuses pastoris ou semi-pastoris como Silvanus, Lupercus,
Hermes Karneios e Apollo Nomios. Na época do cristianismo primitivo, quando
muitos dos séquitos cristãos eram perseguidos (inclusive uns pelos outros) a
figura do jovem pastor à semelhança de alguma deidade pagã foi um artifício usado
como representação de Jesus Cristo e do ideal cristão como um todo de forma
velada. Além da representação do jovem como o Cristo e da ovelha como as almas
dos fiéis que são guiadas por ele, o cordeiro nos ombros do pastor é o próprio
Cordeiro de Deus, símbolo do sacrifício da divindade, da pureza e da inocência.
Enquanto o jovem pastor carrega toda essa carga positiva, o pastor dormindo,
chamado de Benino no presépio napolitano, é a representação dos infiéis
e aqueles que optam por não seguir a divindade.
Outros
personagens comuns do presépio, e que recebem camadas de significados profundos
são os músicos, em especial os gaiteiros ou zampognari, atrelados à
profanidade carnavalesca em contraste com a santidade. Normalmente próximos do
vendedor de vinhos (el vinaio ou il cicci bacco), representam o
sangue dionisíaco e a prevalência de seus mistérios em meio às práticas
mágicas. O vinho como o sangue da terra é rememorado como sendo também o sangue
de Cristo, e assim o deus celestial e o ctônico são unidos em uma única
simbologia. Nos presépios vêneto-friulanos o vendedor de vinho é costumeiramente
retratado junto a uma mulher que carrega ânforas, simbolizando a ligação do
feminino com o dionisíaco, os desejos e aquilo que a Igreja consideraria “desordem”
– desnecessário dizer que a ânfora na strigaria de algumas tradições
locais é a morada dos espíritos. Já em presépios napolitanos e de outras partes
do sul da Itália duas figuras emergem entre os vinicultores e os músicos na
forma de dois irmãos ou dois amigos, i due compari, sendo um mais jovem
que representa o Carnaval e outro mais velho que representa a Morte – dois
extremos das polaridades do ano solar. Em especial em Napoli é possível ver nos
presépios mais irreverentes a figura do Pulcinella, que além de encarnação
dionisíaca do Carnaval representa para alguns também o próprio Diabo.
Os
trabalhadores em geral possuem também seus significados. Os vendedores de
alimentos e flores são inúmeros e seus significados costumam variar de acordo
com as atribuições daquilo que carregam em mãos. Os marceneiros e construtores
(mais raros) fazem referência expressa às guildas de ofício e às sociedades
ocultas que operaram conhecimentos entremeados à magia e ao esoterismo. O
caçador e o lenhador, portando armas e instrumentos de corte como o machado,
simbolizam o poder divino celestial, transcendente ao mundo humano e punitivo
quando necessário. Neles ecoam os caracteres severos de Yahweh como o Senhor
dos Exércitos e como juiz que julga, condena e castiga do alto do Paraíso.
Nessa imagem também se vislumbra Zeus, Jupiter e os deuses de similar aspecto
que se entranharam na cosmovisão folclórica, gerando associações como as de
Jupiter e Perun com São Elias na Slavia Friulana. A eles, justamente, se
vincula também a imagem da bica de corrida e da carruagem – símbolos do carro
celeste e do poder ígneo do mundo divino. Já os pescadores, para além da
ligação óbvia com o antigo símbolo do peixe – e da “pesca de almas” – no
cristianismo e o ofício de São Pedro, são uma metáfora para a divindade ctônica
por meio da fartura e do uso da barca como uma travessia para o mundo dos
mortos. A barca, que numa visão ortodoxa do cristianismo simboliza a Igreja
Católica, passa a representar para as bruxas vêneto-friulanas a sua própria
comunidade, seja a comunidade organizada como uma Congrega ou Convento, seja a
mais usual união da bruxa com aqueles que vieram antes e com os que virão
depois em sua linhagem. Não à toa um dos feitiços de voo para o Sabbat
nos arredores de Veneza consiste nos praticantes se reunirem na praia numa
noite de lua cheia ou nova e girarem ao redor de um pequeno barco a remo
repetindo vara per uno, vara per due, vara per tre... sempre recomeçando
após atingir o número de pessoas participantes. O ato está completo e o voo é
alçado quando o giro amplia o efeito dos enteógenos utilizados e os praticantes
caem exaustos em transe. Esse feitiço se alinha simetricamente à simbologia da
deusa Reitia, conhecida por navegar o céu usando a lua como barco – algo que
influenciou a associação da Madonna à lua e às águas.
Tal
como a barca leva estes bruxos e bruxas para o sabbat por sobre a água,
outros elementos aquáticos sobressaem no presépio com simbologias ambivalentes.
O poço, que no catolicismo oficial é um símbolo da “fonte de vida” que vem de
Deus e um local de encontro de importantes personagens como Cristo e a Samaritana,
torna-se nas bruxarias um portal de passagem para o mundo inferior e os seres
que nele vivem. Nas tradições do centro-sul italiano o poço é habitado por um
tipo específico de assombração, uma espécie de sereia ou ninfa que vive nas
águas profundas e estica seus longos braços para puxar suas vítimas para o
fundo – La Manalonga. Já na área alpina e pré-alpina do Triveneto, o
poço é uma passagem para o domínio da deusa das bruxas, personificada em
figuras como La Redodesa, Frau Perchta, Matoha e Baba Pehtra. Tais figuras, bem
como todas as demais que recebem nomes específicos dentro de cada comunidade ou
tradição, representam um cruzamento plural entre a mitologia de Frau Holda do
mundo germânico, as deidades matronas de área vêneta e romana, e a mitologia
eslava sobre as bruxas da floresta – algo observável, por exemplo, nos registros
históricos inquisitoriais e nas etnografias mais recentes. É descendo o poço
que o reino de Holda e suas contrapartes regionais é acessado, e através do
poço também se invocam raízes antigas e profundas da ancestralidade, tanto humana
quanto demoníaca.
Ainda
tratando de personagens que estão na água, a lavandaia ou lavadeira é um
dos mais relevantes. Nas tradições do sul, ela representa a purificação, o
poder de exorcismo contra o mal e de cura da comunidade, utilizado pelas magare
e guaritori. Na strigaria vêneto-friulana ela é relacionada às aganis
ou anguane, os espíritos femininos das fontes d’água profundamente ligados
às bruxas tradicionais. Perto da lavadeira muitas vezes se encontrarão animais
como o sapo e a rã, símbolos respectivos do Diabo e da Deusa das bruxas, e a
serpente, que além de ser uma das espécies ligadas às aganis também
simboliza para as bruxarias diabolistas a serpente do Éden, a mesma que depois
estará sob os pés de Maria na iconografia de culto. Se pelo olhar da Igreja a
pisada na cabeça da serpente representa a aniquilação do pecado, para as
bruxarias de cunho sabático simboliza o domínio da Mãe Divina sobre a serpente
cósmica e sobre a própria magia. Na serpente se encontra o veneno e a cura, e
assim a venefica identifica ali a sua representação.
Outra
personagem famosa e por vezes incluída no presépio – principalmente em
tradições da Toscana, Emilia Romagna, Lombardia e Veneto – é a bruxa Befana,
que voando em sua vassoura teria guiado os Reis Magos durante intempéries de
sua viagem, ou em outras versões teria se recusado a ajudá-los, sendo assim
condenada por Deus a passar a eternidade distribuindo doces nas noites de
Epifania. Enquanto nas regiões mencionadas e ao sul ela é vista em tais
contornos, na tradição friulana ela costuma ser confundida e mesclada a outras
figuras que atuam na mesma noite: a figura folclórica de uma “Santa Epifania”
(mãe dos Reis Magos), a esposa de São Nicolau (chamada de Mamma Natale, Bonasora
ou simplesmente “a Velhinha”) e Santa Catarina de Alexandria. O que todas essas
figuras possuem em comum? A associação com a bruxaria, em diferentes níveis de
significado e contexto.
Tal
como a quantidade de personagens nos maiores presépios é infinitamente maior do
que a aqui apresentada, também as interpretações de suas simbologias mudam
segundo contexto regional e tradição. Contudo, a sacralidade do presépio é uma
constante nas vertentes mágicas italianas, e tanto sua montagem quanto
desmontagem obedecem a regras e tabus. Uma das regras é a de que não se deve
desmontar um presépio sem rezar um terço dedicado a ele antes. Outra, que
varia, é quanto à data de colocação das peças – enquanto algumas famílias e
comunidades colocam todas desde a montagem, outras colocam o menino Jesus
somente na meia-noite do Natal e os Três Reis Magos na meia-noite da Epifania.
É também um pressuposto que a cada ano algum detalhe (por mais que minúsculo)
deve ser acrescentado. Outro ainda, que minha casa obedece, é que sempre que
alguém montar um presépio pela primeira vez, deve repetir o feito por sete anos
consecutivos, do contrário sofrerá com a sfortuna (má-sorte).
Como
muitos outros costumes antigos, este vem desaparecendo de muitas casas de
famílias que em gerações passadas o mantinham. No conjunto de práticas das linhagens
que carregam tradições mágicas, ao menos entre aqueles que optam por manter
essas tradições, o costume do presépio continua vivo e carregado de
significados. Espero que nesse breve texto eu tenha sanado um pouco da
curiosidade dos leitores sobre um dos infinitos usos e significados das
simbologias religiosas nessa época de Natal.
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