terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Os Significados Ocultos do Presépio nas Tradições Italianas

 Por Draco Stellamare



Presépio de minha casa neste ano, com as peças principais pintadas à mão.
Além deste participo da montagem de um que pertenceu à minha bisavó.

O presépio é uma das maiores representações religiosas da época de Natal, difundido no mundo todo. Levado como decoração por alguns, e por outros como um ato religioso, a ideia do presépio surgiu com São Francisco de Assis, que desejava elaborar uma reencenação do nascimento de Jesus. Com a ideia posta em prática, a encenação com atores reais em breve deu origem às reproduções em imagens esculpidas, primeiro nas casas dos nobres e mais abastados, e depois nas casas do povo em geral. Na cultura italiana e ítalo-diaspórica o presépio se mantém como um símbolo persistente de sazonalidade e devoção – um símbolo que, como outros símbolos religiosos, adquire significados subliminares nas tradições de bruxaria e magia folclórica da península e dos locais de diáspora. Neste texto vou discorrer brevemente sobre alguns desses significados dentro de meu conhecimento.

O núcleo central do presépio é a tríade formada pela Sagrada Família, composta pelo menino Jesus, a Virgem Maria e São José. Para além dos significados comuns à religiosidade católica e ultrapassando as visões particularizadas de Cristo e Maria nas vertentes mágicas populares e no discernimento esotérico de certas stregonerie, a Sagrada Família é uma das representações mais emblemáticas do culto doméstico. Ela representa a unidade familiar concebida – ao menos até bem recentemente na história ocidental –  como básica e universal (formada de mãe, pai e criança), e também a tripartição de elementos santos manifestos em figura humana – diferente da Trindade, que possui somente uma de suas partes nessa condição. Assim o triângulo simbólico formado por Jesus, Maria e José é entendido como uma representação de todas as famílias, de todas as linhagens, e de todos os lares. O presépio, embora retrate a cena do nascimento de Jesus – o terceiro mistério do rosário – inclui em si a representação da Sagrada Família e tudo o que ela desdobra em significado. Não é sem razão que ela também simboliza aos mais eruditos outras triplicidades, como a dos princípios alquímicos e a dos três mundos do Cosmos mediterrâneo – terra (José), mar (Maria) e céu (Jesus).



O núcleo de nosso presépio.

As demais figuras essenciais da cena também carregam relevantes significados. Os Três Reis Magos representam os poderes políticos do mundo, curvados à soberania do espírito nascido na carne – representado pelo bebê na manjedoura. Eles simbolizam também os sábios do oriente, de onde muito do esoterismo cristão bebeu desde a Renascença. Não é sem motivo que existem inúmeros costumes folclóricos de cunho mágico envolvendo a festa de Reis na Epifania do Senhor (em 6 de Janeiro). Temos o costume friulano de consagrar a proteção da porta de uma casa em nome dos Reis, e são frequentes no centro e no sul da Itália as simpatias de prosperidade que os invocam. O ouro, o incenso e a mirra, três presentes para três aspectos da vida de Jesus – sua importância político-social, sua divindade e seu sacrifício – tornam-se representações de três aspectos da vida humana e reforçam a simbologia das triplicidades que é central na figura da Sagrada Família e dos próprios Reis Magos. A entrega dos três presentes pelos Magos do Oriente é também um simbolismo no qual praticantes mais intelectualizados enxergam a recuperação das sabedorias e correntes esotéricas dos povos orientais, inoculada novamente no mundo cristão a partir do período do renascimento. Atrelado à figura dos Reis, está a Estrela Guia ou Estrela de Belém, ela simboliza a providência divina e a orientação vinda do espírito. Com similar significado está o anjo, que pairando acima da manjedoura simboliza o intermédio com Deus e a presença da ordem espiritual.



Os Três Reis Magos.

As coisas começam a ficar mais inusitadas quando partimos para os animais e os outros personagens menos essenciais à cena. Tradicionalmente considera-se o boi, o asno e as ovelhas como representações dos povos que participam do mito cristão: enquanto o boi representa os judeus, pela associação com seus valores civilizatórios e também com a ambiguidade que lhe é atribuída biblicamente, o asno é o representante dos pagãos, politeístas e adoradores de divindades antigas tidas pelo judaísmo como demônios. Por fim, as ovelhas representam os cristãos, aqueles que seguiriam a palavra de Cristo – representada pelo pastor que as guarda. Em especial o simbolismo do asno é relevante à bruxaria, pois se relaciona diretamente ao mito do Asno de Ouro de Apuleio, no qual a transformação de Lucio em asno e a sua volta à forma humana através do culto da deusa Ísis são uma metáfora para a iniciação e o renascimento em transcendência. Enquanto os animais maiores possuem tais associações, o galo traz a lembrança do marcador das horas e do sinal da negação do apóstolo Pedro após a prisão de Jesus. Tanto o boi, quanto o asno quanto o galo são assim os ícones mais usuais nos quais o Diabo é contemplado à espreita no presépio. O galo sendo um símbolo masculino e fálico, desponta com destaque, não sendo por acaso que ele se encontra incluído em diversas versões da cimaruta, o amuleto folclórico arcaico que foi tomado como símbolo pela stregheria moderna. Dentre outras aves que carregam significados e por vezes são inseridos no presépio podemos citar o pombo branco representando o Espírito Santo, o peru como símbolo de abundância, o faisão como elemento de riqueza e nobreza, e até mesmo o pavão, que é entendido hegemonicamente como um ícone de vaidade e soberba, mas possui uma vinculação com a Madonna em tradições bruxas.

O jovem pastor carregando uma ovelha está entre as primeiras representações imagéticas do cristianismo, comunicando-se popularmente em tempos pretéritos com as imagens de deuses pastoris ou semi-pastoris como Silvanus, Lupercus, Hermes Karneios e Apollo Nomios. Na época do cristianismo primitivo, quando muitos dos séquitos cristãos eram perseguidos (inclusive uns pelos outros) a figura do jovem pastor à semelhança de alguma deidade pagã foi um artifício usado como representação de Jesus Cristo e do ideal cristão como um todo de forma velada. Além da representação do jovem como o Cristo e da ovelha como as almas dos fiéis que são guiadas por ele, o cordeiro nos ombros do pastor é o próprio Cordeiro de Deus, símbolo do sacrifício da divindade, da pureza e da inocência. Enquanto o jovem pastor carrega toda essa carga positiva, o pastor dormindo, chamado de Benino no presépio napolitano, é a representação dos infiéis e aqueles que optam por não seguir a divindade.



Os músicos e o jovem pastor.

Outros personagens comuns do presépio, e que recebem camadas de significados profundos são os músicos, em especial os gaiteiros ou zampognari, atrelados à profanidade carnavalesca em contraste com a santidade. Normalmente próximos do vendedor de vinhos (el vinaio ou il cicci bacco), representam o sangue dionisíaco e a prevalência de seus mistérios em meio às práticas mágicas. O vinho como o sangue da terra é rememorado como sendo também o sangue de Cristo, e assim o deus celestial e o ctônico são unidos em uma única simbologia. Nos presépios vêneto-friulanos o vendedor de vinho é costumeiramente retratado junto a uma mulher que carrega ânforas, simbolizando a ligação do feminino com o dionisíaco, os desejos e aquilo que a Igreja consideraria “desordem” – desnecessário dizer que a ânfora na strigaria de algumas tradições locais é a morada dos espíritos. Já em presépios napolitanos e de outras partes do sul da Itália duas figuras emergem entre os vinicultores e os músicos na forma de dois irmãos ou dois amigos, i due compari, sendo um mais jovem que representa o Carnaval e outro mais velho que representa a Morte – dois extremos das polaridades do ano solar. Em especial em Napoli é possível ver nos presépios mais irreverentes a figura do Pulcinella, que além de encarnação dionisíaca do Carnaval representa para alguns também o próprio Diabo.

Os trabalhadores em geral possuem também seus significados. Os vendedores de alimentos e flores são inúmeros e seus significados costumam variar de acordo com as atribuições daquilo que carregam em mãos. Os marceneiros e construtores (mais raros) fazem referência expressa às guildas de ofício e às sociedades ocultas que operaram conhecimentos entremeados à magia e ao esoterismo. O caçador e o lenhador, portando armas e instrumentos de corte como o machado, simbolizam o poder divino celestial, transcendente ao mundo humano e punitivo quando necessário. Neles ecoam os caracteres severos de Yahweh como o Senhor dos Exércitos e como juiz que julga, condena e castiga do alto do Paraíso. Nessa imagem também se vislumbra Zeus, Jupiter e os deuses de similar aspecto que se entranharam na cosmovisão folclórica, gerando associações como as de Jupiter e Perun com São Elias na Slavia Friulana. A eles, justamente, se vincula também a imagem da bica de corrida e da carruagem – símbolos do carro celeste e do poder ígneo do mundo divino. Já os pescadores, para além da ligação óbvia com o antigo símbolo do peixe – e da “pesca de almas” – no cristianismo e o ofício de São Pedro, são uma metáfora para a divindade ctônica por meio da fartura e do uso da barca como uma travessia para o mundo dos mortos. A barca, que numa visão ortodoxa do cristianismo simboliza a Igreja Católica, passa a representar para as bruxas vêneto-friulanas a sua própria comunidade, seja a comunidade organizada como uma Congrega ou Convento, seja a mais usual união da bruxa com aqueles que vieram antes e com os que virão depois em sua linhagem. Não à toa um dos feitiços de voo para o Sabbat nos arredores de Veneza consiste nos praticantes se reunirem na praia numa noite de lua cheia ou nova e girarem ao redor de um pequeno barco a remo repetindo vara per uno, vara per due, vara per tre... sempre recomeçando após atingir o número de pessoas participantes. O ato está completo e o voo é alçado quando o giro amplia o efeito dos enteógenos utilizados e os praticantes caem exaustos em transe. Esse feitiço se alinha simetricamente à simbologia da deusa Reitia, conhecida por navegar o céu usando a lua como barco – algo que influenciou a associação da Madonna à lua e às águas.



Cristo e a Samaritana.

Tal como a barca leva estes bruxos e bruxas para o sabbat por sobre a água, outros elementos aquáticos sobressaem no presépio com simbologias ambivalentes. O poço, que no catolicismo oficial é um símbolo da “fonte de vida” que vem de Deus e um local de encontro de importantes personagens como Cristo e a Samaritana, torna-se nas bruxarias um portal de passagem para o mundo inferior e os seres que nele vivem. Nas tradições do centro-sul italiano o poço é habitado por um tipo específico de assombração, uma espécie de sereia ou ninfa que vive nas águas profundas e estica seus longos braços para puxar suas vítimas para o fundo – La Manalonga. Já na área alpina e pré-alpina do Triveneto, o poço é uma passagem para o domínio da deusa das bruxas, personificada em figuras como La Redodesa, Frau Perchta, Matoha e Baba Pehtra. Tais figuras, bem como todas as demais que recebem nomes específicos dentro de cada comunidade ou tradição, representam um cruzamento plural entre a mitologia de Frau Holda do mundo germânico, as deidades matronas de área vêneta e romana, e a mitologia eslava sobre as bruxas da floresta – algo observável, por exemplo, nos registros históricos inquisitoriais e nas etnografias mais recentes. É descendo o poço que o reino de Holda e suas contrapartes regionais é acessado, e através do poço também se invocam raízes antigas e profundas da ancestralidade, tanto humana quanto demoníaca.



Ainda tratando de personagens que estão na água, a lavandaia ou lavadeira é um dos mais relevantes. Nas tradições do sul, ela representa a purificação, o poder de exorcismo contra o mal e de cura da comunidade, utilizado pelas magare e guaritori. Na strigaria vêneto-friulana ela é relacionada às aganis ou anguane, os espíritos femininos das fontes d’água profundamente ligados às bruxas tradicionais. Perto da lavadeira muitas vezes se encontrarão animais como o sapo e a rã, símbolos respectivos do Diabo e da Deusa das bruxas, e a serpente, que além de ser uma das espécies ligadas às aganis também simboliza para as bruxarias diabolistas a serpente do Éden, a mesma que depois estará sob os pés de Maria na iconografia de culto. Se pelo olhar da Igreja a pisada na cabeça da serpente representa a aniquilação do pecado, para as bruxarias de cunho sabático simboliza o domínio da Mãe Divina sobre a serpente cósmica e sobre a própria magia. Na serpente se encontra o veneno e a cura, e assim a venefica identifica ali a sua representação.



A lavadeira.

Outra personagem famosa e por vezes incluída no presépio – principalmente em tradições da Toscana, Emilia Romagna, Lombardia e Veneto – é a bruxa Befana, que voando em sua vassoura teria guiado os Reis Magos durante intempéries de sua viagem, ou em outras versões teria se recusado a ajudá-los, sendo assim condenada por Deus a passar a eternidade distribuindo doces nas noites de Epifania. Enquanto nas regiões mencionadas e ao sul ela é vista em tais contornos, na tradição friulana ela costuma ser confundida e mesclada a outras figuras que atuam na mesma noite: a figura folclórica de uma “Santa Epifania” (mãe dos Reis Magos), a esposa de São Nicolau (chamada de Mamma Natale, Bonasora ou simplesmente “a Velhinha”) e Santa Catarina de Alexandria. O que todas essas figuras possuem em comum? A associação com a bruxaria, em diferentes níveis de significado e contexto.

Tal como a quantidade de personagens nos maiores presépios é infinitamente maior do que a aqui apresentada, também as interpretações de suas simbologias mudam segundo contexto regional e tradição. Contudo, a sacralidade do presépio é uma constante nas vertentes mágicas italianas, e tanto sua montagem quanto desmontagem obedecem a regras e tabus. Uma das regras é a de que não se deve desmontar um presépio sem rezar um terço dedicado a ele antes. Outra, que varia, é quanto à data de colocação das peças – enquanto algumas famílias e comunidades colocam todas desde a montagem, outras colocam o menino Jesus somente na meia-noite do Natal e os Três Reis Magos na meia-noite da Epifania. É também um pressuposto que a cada ano algum detalhe (por mais que minúsculo) deve ser acrescentado. Outro ainda, que minha casa obedece, é que sempre que alguém montar um presépio pela primeira vez, deve repetir o feito por sete anos consecutivos, do contrário sofrerá com a sfortuna (má-sorte).

Como muitos outros costumes antigos, este vem desaparecendo de muitas casas de famílias que em gerações passadas o mantinham. No conjunto de práticas das linhagens que carregam tradições mágicas, ao menos entre aqueles que optam por manter essas tradições, o costume do presépio continua vivo e carregado de significados. Espero que nesse breve texto eu tenha sanado um pouco da curiosidade dos leitores sobre um dos infinitos usos e significados das simbologias religiosas nessa época de Natal.





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