“A Cruz no peito e o Diabo no feito” – Ditado popular de algumas regiões de Pernambuco, Brasil.
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Fotografia de William Montensen, pertencente a ensaio realizado entre 1926 e 1927, retratando a execução de uma bruxa frente ao escárnio social e a exibição de símbolos cristãos. |
Certa vez um professor do colégio me disse que “o maior ato de liberdade individual é ferir a individualidade do outro”. Não sei em quais filósofos ele se pautou para produzir essa colocação, se é que se pautou em alguém, mas fato é que essa frase, com a qual ainda não decidi se concordo ou não, me acompanhou durante toda a vida na tentativa de entender alguns comportamentos que, vira e mexe, o ser humano vem a repetir.
A
revolta contra o cristianismo que encontramos no meio neopagão e entre os
adeptos da bruxaria e do ocultismo modernos é plenamente justificável. Não
apenas a doutrina da Igreja deixou sequelas sociais profundas no mundo
ocidental, como também a perpetuação, no seio familiar, da mentalidade
restritiva e ignorante do catolicismo hegemônico e do protestantismo chucro
deixou muita gente com mágoas e feridas que não se lavam ou cicatrizam
facilmente. Falo de sexismo, homofobia, brinquedos jogados no lixo após
acusações de satanismo subliminar, abuso psicológico e físico, quando não
sexual, dentre outras asquerosidades.
É
natural, após uma convivência familiar tóxica estimulada pela mentalidade
cristã, que os emancipados dessa mentalidade se sintam inclinados a vilipendiar
os símbolos dessa fé que serviu de justificativa para os seus sofrimentos, e
que dela não desejem e não tolerem partilhar mais nenhum elemento, mesmo que a
título sincrético.
Convém
relembrar que – para o desgosto dos doutrinadores neopagãos – ainda se perpetua
sob a estética católica uma vasta ramificação de reminiscências folclóricas
vivas de religiões pré-cristãs, bem como inúmeras correntes mágicas que
ressignificaram os elementos do catolicismo segundo seus próprios termos. Elas
vão desde as linhagens de benzimento e curandeirismo do catolicismo popular até
as bruxarias tradicionais e folclóricas que instrumentalizam mito e rito
cristão para servir à sua própria agenda de crença e interesses. Este texto,
contudo, não é sobre heresia, onde se enquadram esses fenômenos que acabo de
mencionar, mas sim sobre blasfêmia.
O
termo heresia vem de haeresis, que no latim significa a opção ou escolha,
ou ainda uma doutrina sectária à parte da principal, ou seja, a faculdade de
escolher algo que afasta ou se opõe ao dogma religioso hegemônico. Em
contrapartida, blasfêmia vem do grego e era originalmente um termo para as palavras
que trazem mau agouro. Blasfêmia é qualquer palavra ou ato que insulta
propositalmente uma divindade ou um contexto sacro-religioso. A medida da
diferença entre o herético e o blasfemo está na intenção da ofensa ao sagrado.
A blasfêmia contra os símbolos da fé cristã está entre alguns dos elementos que foram catalogados historicamente em confissões de bruxas tomadas pela Inquisição. Em diversos países e contextos, os inquisidores buscaram com especial atenção – e grandes doses de manipulação – por relatos que demonstrassem o vilipêndio dos símbolos sagrados e a perversão dos sacramentos da Igreja Católica. Pode-se dizer que o intuito eclesiástico de construir uma ideia sobre as bruxas como membros de um único culto criminoso e anti-cristão deu muitos frutos, e influenciou não apenas a sociedade da época, como todo o imaginário da cultura ocidental posterior acerca do tema. Embora tenha existido grande pressão para a criação artificial deste estereótipo satânico pela Igreja, principalmente através da tortura e coação dos réus da Inquisição, houveram também contribuições verídicas de praticantes de bruxaria para esse processo, observáveis especialmente nos últimos estágios do período inquisitorial. Representações não faltam de bruxas e bruxos pisando na cruz e urinando na bíblia, dando a hóstia consagrada para os animais e realizando todo tipo de ato tido à época como satânico, do canibalismo à zoofilia. Algumas destas condutas são mais plausíveis de terem sido realizadas do que outras, mas fato é que todas elas contribuem para a imagem da blasfêmia que se criou ao redor do culto das bruxas no imaginário coletivo.
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Bruxos pisando na cruz diante do Diabo - Baixa Idade Média. |
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Von gotteslestern (da blasfêmia) - Albrecht Durer, 1494. |
Inspirados pela superficialidade desses
relatos e retratos, muitos praticantes modernos cercam a si mesmos de símbolos
blasfemos e adotam um comportamento de antagonismo hostil a qualquer
demonstração da religiosidade cristã que deles se aproxime. É o clássico “vou
pegar fogo se eu entrar na Igreja” que muitos dizem, em tons de
brincadeira.
Mas,
será que a blasfêmia das bruxas antigas está sendo bem interpretada no contexto
contemporâneo? Ou será que essa corrente mágica esconde mais mistérios por trás
destes atos de rebeldia do que o olho incauto pode ver? A julgar pela relação
quase simbiótica que certas bruxarias tradicionais tecem com o catolicismo eu
apostaria na segunda alternativa.
Para
começar a entender isso talvez seja interessante buscar a comparação com alguns
elementos existentes nas tradições orientais, que preservaram mais de sua
sabedoria ancestral e xamânica em tempos de religião institucionalizada do que
foi permitido às tradições do ocidente.
Existe no Tantra da “Mão Esquerda”, como se
convencionou chamar, a prática ritualística de atos que são considerados tabu
pela maior parte da sociedade indiana, tais como o consumo de carne de vaca, o
sexo extraconjugal, o consumo de bebida alcóolica forte, dentre outros. A
prática destes atos considerados como desviantes pela norma social visa criar
um rompimento nas estruturas às quais a mente do adepto está acostumada, de
modo que ela possa despertar de suas ilusões e progredir em sua jornada de
iluminação.
Destaque pode ser feito, dentro do universo
hindu, para o Aghori Tantra. Os aghori são gurus reconhecidos
como pessoas dotadas de poderes ocultos terríveis, uma aura que é reforçada
pelo seu estilo de vida que, em séquitos mais extremistas, visa quebrar
radicalmente com todas as normas e restrições culturais da sociedade hindu. Os aghori,
devotos de Shiva e Maha Kali, rejeitam a divisão da sociedade em castas,
meditam sobre cadáveres, cobrem o próprio corpo com cinzas das piras
funerárias, bebem água do Rio Ganges e vinho com mel em crânios humanos e,
dentre outros tantos tabus, rejeitam firmemente qualquer conceito de purificação,
pautando-se na ideia de que a imanência do divino permite que em qualquer
contexto, independente do quão impuro seja, exista um contato verdadeiro com os
Deuses.
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Aghori meditando coberto de cinzas funerárias - Autoria não encontrada. |
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Adepto do Aghori segurando crânio humano usado para beber líquidos - Fonte: The Sun U.S. |
A
lógica do Aghori Tantra reverbera, ao menos em algum nível atávico e
subliminar, com a blasfêmia encontrada em meio à bruxaria tradicional. Como o
finado magister da Cultus Sabbati, Andrew Chumbley, menciona em vários momentos
de sua antologia Opuscula Magica, a iniciação e o ingresso em certos
mistérios do Sabá das Bruxas exigem a construção de um impulso de contrariedade
à própria realidade mundana na qual o adepto nasceu e cresceu, um verdadeiro
rompimento com o mundo civilizado do cotidiano que seja capaz de capturar a sensação de identificação com o que é externo e estranho, sensação essa que ele chama de The Otherness. Este
impulso possui as mesmas características da quebra de paradigmas sociais buscada
nos rituais do Vamachara Tantra, e pela conduta agressivamente
subversiva dos aghori.
Pensemos na mente humana como um material por
natureza elástico e flexível, mas quase sempre atrofiado pela conformidade às
normas sociais que são estabelecidas desde a tenra infância como limites claros
e objetivos (inquestionáveis) à conduta do indivíduo. Uma criança nasce sem
o filtro de comportamento que anos mais tarde, ao ser desenvolvido, impedirá
que ela jogue o café quente de sua xícara na cara de seu chefe no trabalho.
Os assim chamados “rituais de ruptura”, como a quebra de tabus mencionada,
buscam romper estas amarras psíquicas que foram afixadas na mente do indivíduo
de modo que ela possa tornar a esticar-se, e assim a cobrir uma área maior de
percepção e atuação na realidade sensível e suprassensível do que cobriria se
ainda estivesse aprisionada.
A
blasfêmia trata-se assim, na seara religiosa, de uma destas chaves de libertação
da mente para uma nova dimensão de percepção da sua própria realidade. Para uma
pessoa nascida e criada em um ambiente cristão conservador, onde as regras do
próprio universo se dobram à literalidade bíblica e às peripécias
interpretativas de seus sacerdotes, a ofensa e e perversão dos símbolos e
sacramentos são um processo de ruptura radical e poderoso. Conduzido de maneira
correta, pode libertar a mente das prisões que restringem sua percepção da
realidade e da espiritualidade, abrindo o espaço e o canal para que a
comunicação com os Antigos, os Deuses e os poderes ancestrais da corrente
mágica em questão seja atingida. Daí advém a necessidade, historicamente
documentada, de que frente a certos ritos de iniciação à bruxaria – pelas mãos
do Diabo ou de outro bruxo mais experiente – o iniciando pratique atos
blasfemos. Em vários sentidos,
a blasfêmia enquanto técnica mágica é similar à ameaça aos santos, um elemento
que encontra lugar na feitiçaria popular católica, mas que pouco se fala sobre
de maneira assertiva.
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São José enterrado de cabeça para baixo para vender uma casa. |
Temos assim a blasfêmia como uma ferramenta,
mas, como o próprio Chumbley assevera em seus escritos, é necessário cautela
para não tomar a ferramenta pela finalidade última da sua utilização.
A blasfêmia não é, para muitas vertentes de bruxaria pautadas na linhagem atávica do Sabá, um fim em si mesma. Ela não é praticada no único intuído tosco de ser uma ofensa ao Deus que é cultuado na Igreja, até porque muitos dos que a praticam na noite do sábado voltam à missa no domingo de manhã, e conciliam em suas práticas a famosa Adoração de Duas Mãos, na qual se recorre igualmente aos demônios e aos santos. Não se trata a bruxaria de uma anti-religião, cuja própria existência é uma birra, uma reação infantilóide ao cristianismo. Assim como aqueles que limitam toda a bruxaria a um culto diabólico/satânico estão desconsiderando os seus aspectos mais profundos, a pessoa que toma a blasfêmia como um objetivo teológico e não como um instrumento de realização mágica através da alteração da consciência tende a incorrer no mesmo erro.
Considerando
essas premissas, a blasfêmia pela blasfêmia, como reação emocional à opressão
cristã sofrida na infância e na adolescência, não é algo característico da
essência bruxa, mas sim algo que funciona como um grito por liberdade. Uma
expressão subjetiva de reafirmação da liberdade individual. Não uma liberdade
sadia, mas a ideia de liberdade que pauta-se na transgressão dos limites do
outro, tal como a frase que meu professor de história costumava me dizer no
ensino médio, e que mencionei no início deste texto.
Se
essa ideia de liberdade que busca transgredir a moral de um meio social abusivo
para se autoafirmar é certa ou errada pouco importa. Ela parece-me falha, já
que induz um padrão de vida, de estética e até de pensamento que não se basta
por si mesmo, e que depende da eterna contraposição a um outro padrão
dominante, como se o indivíduo fosse um eterno pária de uma sociedade homogênea
na qual ele não tem lugar de ser. Mas também é verdade que um ramo dobrado numa
direção tende a chicotear a direção oposta quando é solto, ao menos
temporariamente.
O
fundamental é perceber que, para além da blasfêmia pela blasfêmia, subjetiva e
emocionada reação dos marginalizados, o ato de blasfemar guarda, no contexto da
bruxaria, conotações de uma profundidade muito maiores do que aquelas que à
primeira vista são admitidas pelo observador leigo.
Tenho esperanças de que com o passar do tempo
mais pessoas possam entender a diferença.
Fotografia retratando a bruxaria e a religião cristã - William Montensen, 1926.
AVISO:
Este texto não busca encorajar nenhum ato de ofensa aos símbolos sagrados de
qualquer crença, muito menos instigar a utilização ritualística de tais atos,
que podem ser danosos a nível psicológico e espiritual se conduzidos de maneira
inexperiente.
AGRADECIMENTOS: Ao meu tio Johnny, que me recomendou documentários interessantíssimos sobre os Aghori, e ao meu amigo Aiko, por ter me proporcionado aprendizados interessantes com os conceitos de um tantra menos extremo, e também pela sua presença insuportável e considerações desnecessárias (quase) sempre fora de hora.
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