sábado, 12 de junho de 2021

Pow-wow, Braucherei e Hexerei: A magia folclórica e a bruxaria alemã no norte dos Estados Unidos




Sophia Bailer, praticante de powwow, realiza cura do fogo-selvagem. Fonte: Don Yoder Collection, Pennsylvania German Cultural Heritage Center, Kutztown University.


"Hoje eu atravesso soleira da porta, Cristo é meu companheiro. A terra são meus sapatos, e os céus são meu chapéu. O santo anjo é minha espada. Só quem me ama e me valoriza vai me ver hoje. Caso contrário, meus inimigos devem ser cegos, para que em nenhum lugar eles me vejam ou me encontrem. Isso seja concedido a mim por Deus e Nossa Senhora, e a quem quer que eu encontre, eu deverei superar."

Tradução de uma conjuração de proteção de um braucher.

 

 Apesar da notória xenofobia existente entre setores da população estadunidense e da forma problemática que o governo dos Estados Unidos da América vem tratando os imigrantes em seu território na atualidade, a história daquele país foi em grande parte moldada pela imigração. Entre ingleses, italianos e irlandeses, uma das principais presenças migratórias vindas da Europa para a América do Norte foi a dos alemães, em especial a parcela populacional que se estabeleceu na região da Pennsylvania – entre os estados de Maryland e New York – durante os séculos XVIII e XIX, os chamados Pennsylvania Dutch ou Pennsylvania Germans.

 A designação dos imigrantes e descendentes de imigrantes alemães da Pennsylvania como dutch é com frequência traduzida erroneamente para o português como “holandeses”, mas em verdade a palavra dutch é simplesmente a equivalência de deutsche – alemães – no dialeto vindo do alemão antigo que era falado por uma grande parcela destes colonos. Muitos dos imigrantes germânicos vieram para o Novo Mundo fugindo de perseguições religiosas e de problemas sociais que assolavam as regiões que hoje constituem principalmente o sudoeste da Alemanha e a Suíça, e com os Pennsylvania Dutch não foi diferente. Vieram luteranos, calvinistas, católicos ligados a práticas ou doutrinas heréticas e toda uma sorte de minorias religiosas protestantes como os Amish.

 Além de aspectos culturais e religiosos próprios e muito diversificados entre si, os Pennsylvania Dutch levaram para os Estados Unidos um conjunto de tradições de magia folclórica voltadas à cura e à proteção, bem como à resolução de questões da vida rural e cotidiana de toda ordem. Tais tradições, quando voltadas exclusivamente ao bem-estar e à harmonia social e comunitária, atendiam pelo nome de Braucherei – termo cuja etimologia está ligada à noção de costume ou prática tradicional. O homem praticante destas artes mágicas é denominado braucher e a mulher braucherin.



Sophia Bailer performando ritual de cura. Fonte: Don Yoder Collection, Pennsylvania German Cultural Heritage Center, Kutztown University. 

 Com o contato dos recém-chegados alemães com os norte-americanos de origem inglesa já estabelecidos no país, o termo pow-wow, que em realidade é o nome de uma etnia indígena norte-americana, foi atribuído pejorativamente às práticas de magia dos colonos alemães. Isso se deu tanto pela equiparação infeliz da feitiçaria germânica ao xamanismo indígena quanto pela percepção xenófoba de que ambas as línguas – a nativa americana dos powwow e o dialeto alemão dos Pennsylvania Dutch – eram igualmente bárbaras e difíceis de compreender. Após a publicação de alguns livros a respeito do tema e com a popularização do termo, a Braucherei acabou sendo mais conhecida pelo termo Powwow, renomeando seus praticantes em muitas instâncias como powwow doctors ou powwowers, e a execução da prática em si como powwowing.

 Altamente cristãs, tendo como seus principais praticantes os imigrantes luteranos influenciados pela memória católica popular – infestada de reminiscências de um ethos pagão – e também os poucos imigrantes católicos de origem alemã que vieram para os E.U.A, estas tradições de magia incluem práticas em muitos aspectos semelhantes às dos benzedores luso-brasileiros, e às dos guaritori, segnatori ou maghi italianos. A maioria dos encantamentos conjuram a força de Deus, dos anjos e santos e da Virgem Maria. São recitadas passagens bíblicas, performadas passagens da mitologia folclórica do cristianismo popular, e construídos amuletos com elementos retirados de grimórios como o Sexto e o Sétimo Livro de Moisés e as Chaves de Salomão, dentre outros.

 Um exemplo de encantamento presente na tradição do powwow, para remoção de hematomas e dores musculares:

Bruise, thou shalt not heat;
Bruise, thou shalt not sweat;
Bruise, thou shalt not run,
No more than the Virgin Mary shall bring forth
another son.
+ + +

 Em tradução livre:

Ferida, tu não deve esquentar
Ferida, tu não deve suar
Ferida, tu não deve correr
Não mais do que a Virgem Maria um novo filho
deve trazer. +++

As fórmulas mágicas para cura, proteção, prosperidade e para uma série de outras finalidades são transmitidas em linhagem hereditária ou por afinidade, porém sempre de um homem para uma mulher e de uma mulher para um homem, observando sempre a alternância de sexo entre iniciador e iniciado. Entre algumas linhagens, elementos da magia cerimonial e da astrologia são mais presentes, mas o conjunto destas vertentes como um todo permanece até hoje como uma forma de magia mais doméstica e rústica em comparação ao ocultismo elitizado e às formas mais modernas de feitiçaria.

 Alguns dos principais instrumentos utilizados pelo braucher são o bastão ou a varinha de madeira, uma cadeira de madeira entalhada com motivos simbólicos da mitologia cristã onde os pacientes se sentam durante os procedimentos de cura, as facas e tesouras, a bíblia, os materiais usados para confecção de chás e preparados diversos com as ervas, raízes e outros insumos vegetais e animais, e alguns poucos livros de magia que foram publicados na Europa e na América, respectivamente nos contextos pré e pós imigração.

Cadeira utilizada nas práticas de cura dentro do Powwow, marcas entalhadas e o número de hastes no encosto e nos pés contém significados bíblicos. Fonte: Brendle Museum Historic Schaefferstown.


 
Um dos aspectos mais notórios do Powwow são os famosos hex signs, símbolos carregados de significado oculto que são tradicionalmente pintados nos celeiros e nas casas dos Pennsylvania Dutch, e que se tornaram símbolo desta ancestralidade. Os padrões mais suntuosos de hex signs ficaram mais conhecidos nas últimas gerações, mas a prática da sua confecção é documentada em livros de registro particulares de powwow doctors dos séculos passados e em amuletos que são preservados até hoje em museus dedicados à história da imigração alemã na Pennsylvania.

 Os hex signs são desenhados de modo meticuloso e programado para atrair fertilidade, abundância, sorte, proteção contra males mundanos ou espirituais como o mau-olhado e até mesmo para favorecer a concórdia familiar ou o amor conjugal. Em certo sentido, percebe-se que os hex signs atuam como verdadeiros pantáculos mágicos, atraindo, repelindo ou manifestando influências que são conjuradas por aqueles que os pintam.


Exemplos de hex signs. Fonte não encontrada.


Exemplo da pintura de hex signs em casas do interior da Pennsylvania. Fonte não encontrada.


Exemplo de manuscrito de uma braucherin contendo padrões mais antigos de hex signs, datado do ano 1893. Fonte: Heilman Collection of Patrick J. Donmoyer; formerly of the Lester P. Breininger Collection.


Padrões antigos e modernos para hex signs. Fonte não encontrada.

 Embora a parcela mais conhecida do Powwow seja sem sombra de dúvidas a magia de cura e de auxílio às necessidades da comunidade, existem também as práticas de malefício e de vingança, de amarração e de dominação, bem como uma série de outras finalidades destrutivas ou egoístas sob a ótica da moral cristã. A essas práticas sombrias, similares à concepção popular de bruxaria dos brasileiros e de stregoneria dos italianos, dá-se o nome de Hexerei, literalmente “bruxaria” na língua alemã. Pouco documentadas devido à repressão religiosa mais incisiva e ao estigma social, mas largamente conhecidas dos powwow doctors, estas práticas de bruxaria entre os Pennsylvania Dutch eram temidas e combatidas constantemente em gerações passadas, e continuam parte do folclore e das práticas secretas dos herdeiros atuais do legado cultural dos Pennsylvania Dutch. Entre os powwow doctors, a prática de combater os atos mágicos de malefício, quebrando maldições e reestabelecendo a harmonia nas vidas das vítimas da hexerei, motivou a nomenclatura de hexenmeister para designar alguns poucos praticantes de Powwow, existindo certa correspondência dessa denominação com a denominação de “bruxo” ou "feiticeiro" em outros ambientes culturais – isto é, um termo dotado de significados ambivalentes e potencialmente pejorativos.

 Em contrapartida a tais práticas de malefício movidas por uma moral questionável, a maioria dos powwow doctors trabalha em prol de sua comunidade e não cobra por seus serviços. Algumas técnicas, em determinados contextos, podem ser cobradas em função da finalidade materialista à qual se destinam, como encontrar um par amoroso ou aumentar as vendas de um negócio. Mas a maioria dos serviços costumeiramente oferecidos pelos praticantes, que se concentram em resoluções medicinais e na proteção espiritual, são prestados voluntariamente, com base na crença cristã – especificamente luterana ou católica – na caridade como aspecto fundamental da salvação humana.


Manuscrito do século XVIII utilizado para proteção, contendo símbolos da magia cerimonial e da fé luterana. Fonte: Heilman Collection of Patrick J. Donmoyer.


Manuscrito para proteção ou cura com quadrado mágico. Fonte não encontrada.


Rei Cigano do Egito, personagem folclórico da tradição do Powwow. Fonte: Verschiedene Sympathetische und Geheime Kunst-Stücke (Various Sympathetic and Secret Formulae), ca. 1800. PA German Cultural Heritage Center, Kutztown University.

 Sendo uma das tradições mais singulares de conhecimento mágico folclórico nos Estados Unidos, o Powwow gerou especulações pontuais da mídia norte-americana no decorrer do século XIX e na primeira metade do século XX. Embora muitas linhagens tradicionais de Powwow proíbam a passagem dos conhecimentos através da escrita – e algumas vezes até mesmo o seu registro por escrito para uso particular – com o objetivo de manter o costume de transmissão iniciática através da oralidade, alguns livros que compilavam técnicas e segredos do universo da Braucherei foram publicados por praticantes interessados em aumentar o seu próprio reconhecimento ou obter ganhos financeiros através do mercado editorial. Destes, o mais famoso foi o livro Der Lange Verborgene Freund, de 1820, posteriormente publicado em inglês como Long Lost Friend, da autoria de Johann George Hohman, também conhecido como John George Hohman.


  


Der Lange Verborgene Freund - Versão em alemão atualmente à venda na Amazon - e capa de versão antiga de Long Lost Friend.

 O Long Lost Friend foi um sucesso de vendas em âmbito nacional, que seguiu sendo republicado nos anos seguintes e influenciou práticas de magia de outros sistemas norte-americanos praticados em outras regiões do país, como o Hoodoo. Caracterizado por uma grande quantidade de encantamentos que originalmente eram rezados no dialeto dos Pennsylvania Dutch e depois foram traduzidos para o inglês, o livro foi constantemente explorado comercialmente por editores tardios como uma espécie de “cabala estadunidense” que portaria chaves de um conhecimento ocultista poderosíssimo. Algumas edições até mesmo estamparam símbolos maçônicos na capa, na esperança de passar uma aura de imponência ao público interessado. Em tempo e apesar dos percalços, o Long Lost Friend se tornou, ao lado da Bíblia, do Sexto e Sétimo Livros de Moisés e de alguns outros grimórios, um livro de cabeceira para muitos praticantes genuínos de Powwow que buscaram neles a ampliação de seus conhecimentos, e também serviu como um exemplo mais acessível ao público geral sobre o teor e as características gerais dessa tradição de magia.



Contracapa de exemplar de 1910 do Sexto e Sétimo Livro de Moisés. Foto particular.
 


Trecho do exemplar acima. Foto particular.



Trechos do exemplar acima. Foto particular.

 Uma aparição interessante do Powwow na cultura pop é a presença de alguns elementos romantizados da prática no filme A Lenda do Cavaleiro Sem-Cabeça, de Tim Burton. No filme, a cidade de Sleepy Hollow, assombrada pelo cavaleiro demoníaco, é constituída totalmente de descendentes de colonos alemães – os Pennsylvania Dutch – e dentre eles, as pessoas da família Van Tassel e Archer mantém os conhecimentos da prática de magia.



Cartaz do filme Sleepy Hollow, lançado no Brasil como A Lenda do Cavaleiro Sem-Cabeça.



Livro de feitiços fictício que é mostrado no filme.



Símbolo contra maus-espíritos desenhado no chão pela personagem Katrina Van Tassel na tentativa de proteger sua família do Cavaleiro Sem-Cabeça.

 Assim como outros sistemas de magia folclórica pelo mundo afora, o Powwow também se encontra em situação delicada, pois muito do conhecimento tradicional – único de cada linhagem – desaparece quando não é passado às gerações mais novas antes do falecimento das gerações mais velhas. No tempo em que vivemos, globalizado e imediatista, com preocupações bem diferentes das de antigamente, são poucos os jovens que aceitam ou mesmo tem condições de aprender estas tradições com os mais velhos para passarem o conhecimento adiante. Felizmente, tal como em outros ambientes culturais que estão mudando rápido, existem alguns bons estudos acerca do tema, documentando práticas na medida em que é ético fazê-lo, e bons praticantes jovens, aqui e ali, que manterão ao menos uma fração deste conhecimento vivo para a posteridade.

 Para encerrar este texto deixo a transcrição e a tradução livre para o português de uma oração de origem alemã que possui elementos da prática powwow e foi tradicionalmente usada entre os Pennsylvania Dutch:

 Today I rise and tend to the day which I have received, in thy name: The first is God the Father †, the other is God the Son †, the third is God the Holy Ghost † – Protect my body and soul, my flesh and my life, which Jesus, the Son of God himself, has given to me; whereupon shall I be blessed, as the Holy Bread of Heaven that our loving Lord Jesus, the Son of God, had given to his disciples. When I go out from the house over the threshold and into the streets, Jesus † Mary † Joseph †, the Holy Three Kings, Caspar †, Melchior † and Balthasar † are my travel companions – the Heavens are my hat and the Earth is my shoes. These six holy persons accompany me and all that are in my house, and when I am on the streets, so shall they protect my journey, from thieves, murderers, and malicious people. All those who meet me must have love and value for me. Therefore help me God the Father †, God the Son †, God the Holy Ghost †, Jesus, † Mary, † Joseph, † Caspar, Melchior, Balthasar, and the Four Evangelists be with me in all my doings, trade and commerce, going and coming, be it on water or land, before fire and inferno, they will protect me with their strong hand. To God the Father †, I reveal myself – to God the Son †, I commend myself – in God the Holy Ghost †, I immerse myself. The glorious Holy Trinity be above me, Jesus, Mary and Joseph before me, Caspar, Melchior and Balthasar be behind and beside me through all time, before I come into eternal joy and bliss, help me Jesus, Mary and Joseph. Caspar † Melchior † and Balthasar †, pray for us now, and in the hour of our death. Amen.

Tradução:

 Hoje eu me levanto e cuido do dia que recebi, em teu nome: o primeiro é Deus o Pai †, o outro é Deus o Filho †, e o terceiro é Deus o Espírito Santo † - Proteja meu corpo e minha alma, minha carne e minha vida, que Jesus, o Filho do próprio Deus, me deu; então seja eu abençoado, como o Pão Sagrado do Céu que nosso amado Senhor Jesus, o Filho de Deus, deu aos seus discípulos. Quando eu sair de minha casa, pela soleira da porta e nas ruas, Jesus † Maria † José †, os Três Reis, Gaspar † Melchior † e Balthasar † são meus companheiros de viagem – os Céus são meu chapéu e a Terra meus sapatos. Essas seis santas pessoas me acompanham e a tudo que está em minha casa, e quando eu estiver nas ruas, assim devem eles proteger minha jornada, dos ladrões, assassinos, e pessoas maliciosas. Todos os que me encontrarem devem ter amor e consideração por mim. Então me ajude Deus o Pai †, Deus o Filho †, Deus o Espírito Santo †, Jesus †, Maria †, José †, Gaspar †, Melchior †, Balthasar, e os Quatro Evangelistas estejam comigo em todos os meus afazeres, trocas e comércio, indo e vindo, seja por água ou por terra, diante do fogo e do inferno, eles irão me proteger com sua forte mão. A Deus o Pai †, eu me revelo – a Deus o Filho †, eu me encomendo – em Deus o Espírito Santo †, eu mergulho. A gloriosa Santíssima Trindade esteja sobre mim, Jesus, Maria e José diante de mim, Gaspar, Melchior e Balthasar atrás de mim e ao meu lado todo o tempo, até que eu chegue à eterna alegria e plenitude, ajudem-me Jesus, Maria e José, Gaspar † Melchior † e Balthasar †, rogai por nós, agora e na hora de nossa morte. Amém.

 


Manuscrito contendo hex sign. Fonte não encontrada.

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Referências:

Powwowing in Pennsylvania: Healing Rituals of the Dutch Country, A Collaborative Exhibition – Glencairn Museum, Bryn Athyn, Pennsylvania & Pennsylvania German Cultural Heritage Center, Kutztown University (February 2017 – October 2017). Disponível em: https://glencairnmuseum.org/newsletter/2017/3/2/powwowing-in-pennsylvania

Pow-Wows or Long Lost Friend: a Collection of Mysterious and Invaluable Arts and Remedies, for Man as well as Animals, With Many Proofs – John George Hohman, 1820.

Hex and Spellwork: The magical practices of the Pennsylvania Dutch – Karl Herr, 2002.





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