quarta-feira, 24 de março de 2021

ÉKDYSIS: a Troca de Pele nos Filhos do Dragão



The Tree of Knowledge - de Sebastian Münster, Cosmographia (1544).

 O processo de troca de pele das serpentes é chamado de ecdise, palavra derivada do grego ἔκδυσις. O termo também é utilizado para alguns seres que perdem seu exoesqueleto de tempos em tempos, como crustáceos e insetos. 

 As serpentes, assim como outros animais que perdem a pele ou o exoesqueleto, abandonam essa parte exterior do corpo de tempos em tempos porque ela impede o seu crescimento, graças à sua dureza ou inelasticidade. No decorrer do processo de ecdise, a membrana dos olhos da serpente também resseca para ser abandonada e dar lugar a uma nova membrana, e neste intervalo o animal fica temporariamente cego. Não é à toa que a ecdise, quando interpretada de maneira simbólica, sintetiza de maneira quase literal determinados processos cíclicos que encontramos na vivência espiritual da bruxaria.

 No decorrer do caminho acumulamos muito lixo. Percepções equivocadas que reconhecemos como válidas graças à nossa imaturidade para lidar com o que estamos vivenciando naquele momento. Erros de entendimento que são perpetuados de uma geração para a outra por inocência ou ausência de senso crítico dos praticantes, ou até graças a propósitos ideológicos perversos consentidos por eles. Assimilações de conceitos e práticas de outros caminhos que num primeiro momento parecem somar, mas que, com o aumento na complexidade e exigência da senda trilhada sem um aumento equivalente na plenitude da experiência mágica, tendem na realidade a diminuir. Enfim, é grande a quantidade de asneira que o meio social nos oferece ou nos empurra goela abaixo todos os dias, assim como também é grande a quantidade de erros e perpetuação de erros à qual todo bruxo ou bruxa está sujeito em sua caminhada. Com todo esse lixo se acumulando progressivamente ao nosso redor é natural que tenhamos a tendência de crescer nas direções erradas, ou até mesmo de estacionar esse crescimento, atrofiando aquilo que poderíamos desenvolver a partir de nosso potencial.

 É importantíssima, portanto, a purificação do entendimento e da prática de tempos em tempos, visando livrar-se daquilo que não agrega e que não condiz com o que se busca, assim como daquilo que, por mais que um dia tenha sido útil, já não tem local em sua jornada. Esse processo também requer a reavaliação periódica de sua própria mentalidade, de sua própria interpretação dos segredos, da veracidade de sua vivência dos mistérios, de seu próprio comprometimento com as tradições e com a ancestralidade. E esse processo, a nível espiritual, é a troca de pele do dragão, tomando aqui o dragão como o daemon que reúne em si os significados últimos da bruxaria como uma corrente de poder latente e inerente em certos indivíduos. O smaj eslavo e o drâc friulano, que não são apenas símbolos folclóricos, mas a tradução simbólica do mistério da origem do sangue bruxo por excelência. Os bruxos e bruxas são as crias humanas destes dragões, e assim sendo, a troca de pele é o processo de purgação das falhas, inspirado por estes espíritos que, se por um lado caíram da esfera angelical, por outro inocularam a magia e os dons mais diversos entre a raça dos homens.



Gravura de Antonio Tempesta, 1600.

 Não se pode dizer que esse processo é agradável, ou mesmo indolor.

 Entre limpar os armários da cozinha no sábado de manhã e demolir as partes bambas da casa para reconstruir uma estrutura mais firme existe uma grande diferença. Da mesma forma, a ecdise espiritual não se resolve com alguns banhos de descarrego e o abandono de uma ou duas quinquilharias que estão sobrando em seu espaço sagrado. Reexaminar as bases nas quais você constrói sua caminhada é um processo agressivo e doloroso de autoquestionamento, que pode fazer ruir anos de esforço devotados a alguma dimensão dessa caminhada, mudando seus rumos e suas convicções da água para o vinho, e fazendo com que a imagem que você tinha de si mesmo baseado nessas convicções superadas mude igualmente.



Gravura retratando dragão de três cabeças com símbolos alquímicos - Autoria não encontrada.


 
Semanas atrás tive uma das experiências mais singulares da minha vida ao me consultar com um bàbáláwo, um sacerdote de Ifá, que (acredito eu) está entre um dos sistemas de adivinhação mais antigos do mundo, baseado na geomancia e nos prognósticos da sabedoria de
Ọ̀rúnmìlà, o deus iorubá do destino. Na abertura da consulta, que preconiza as linhas gerais do conselho que a divindade pessoal do consulente deseja transmitir, surgiu uma referência clara e direta ao mito da bifurcação existente em minha linhagem de bruxaria. Este mito, que não posso relatar por completo tal como me foi ensinado fora de circunstâncias muito específicas, possui equivalentes muito semelhantes em outras linhagens de conhecimento mágico popular que dividem as mesmas raízes ancestrais, sobretudo as que são parcialmente pautadas em heresia cristã do meio rural europeu e das Américas. Contudo, tal como outras histórias que são muito mais do que histórias, cada versão do conto é única, e carrega algo próprio e indissociável de cada linha sucessória que o transmitiu.

 Em minha casa, o mito em questão fala sobre um garoto que deixa seu lar e parte pelo mundo em busca de Deus. Em certa altura da estrada, o menino encontra uma bifurcação, uma encruzilhada em Y, que o conduzirá pela direita a um caminho suave, onde ele encontra contemplações abstratas e locais que estimulam a conformidade com a vontade da comunidade, e pela esquerda a um caminho acidentado, solitário e perigoso, onde ele enfrenta seres hostis e a intempérie da natureza. Em nenhum dos dois caminhos o garoto encontra Deus, e termina retornando à bifurcação uma terceira vez, e ali ele encontra aquilo que procurava, mas não da forma que imaginava.



Gravura retratando uma bruxa portando um forcado dentro de um círculo mágico. O forcado é uma representação instrumental da bifurcação ou encruzilhada em Y, além de possuir outros significados - Autoria não encontrada.

 Nas camadas mais superficiais de significado, a bifurcação (ou encruzilhada) é um momento que sempre chega na vida de todas as pessoas, e a escolha feita, entre duas ou mais possibilidades de ação fará com que o aprendizado final, que só é plenamente compreendido quando o retorno à bifurcação ocorre novamente, seja mais sutil e superficial ou mais sofrido e profundo (o que não necessariamente corresponde às noções do esoterismo moderno de direita e esquerda). Entretanto, a verdadeira divindade, nossa mãe assunta, é vista em plenitude apenas na encruzilhada. É na bifurcação onde abandonamos uma estrada em favor de outra, e contemplamos todas as possibilidades como se estivéssemos fora do próprio caminho. E é aqui que as coisas ficam interessantes.

 A troca de pele é uma das manifestações mais importantes dessa encruzilhada.

 Quando o jogo de Ifá apontou que minha divindade pessoal falava sobre essa metáfora, a percepção foi clara e imediata: em minha busca por autorrealização eu estava escolhendo caminhos diferentes a cada vez que retornava à bifurcação, sem efetivamente vivenciar o sacrifício e a autodeterminação que essa escolha impõe àqueles que se dizem bruxos. A serpente cega, transita entre a esquerda e a direita procurando por respostas, sem enxergar a resposta que está no meio. Para enxergá-la, era necessário trocar de pele, abandonando a membrana ressecada que cobria meus olhos, e então recomeçar. Mais uma vez. No fim das contas a receita para a transformação é muito simples, mas a simplicidade nos assusta, e evitamos a todo custo abraçá-la. Não somente é comum fugirmos da simplicidade, como também é comum abraçar a complexidade e quantidade como se elas se traduzissem, necessariamente, em algo de maior valor e melhor qualidade.

 Cansei de observar os outros conduzindo (e também conduzir eu mesmo!) buscas intermináveis por novos conhecimentos ocultos, novos sistemas, técnicas e iniciações, elocubrações complexas que explicassem uma grande verdade esotérica ancestral, teorias escalafobéticas sobre a espiritualidade e experiências que pudessem transformar a realidade mais num conto de fadas surreal do que numa experiência religiosa coerente, e enquanto essa busca acontecia a criança era jogada fora junto com a água do banho, como os antigos costumam dizer. Claro que tal como a complexidade não está atrelada à qualidade ela também não está atrelada à falta dela. Encontrei em minha vida bons exemplos de praticantes de magia que são iniciados em vários caminhos mágicos, conhecem uma infinidade de sistemas de feitiçaria e possuem vasta experiência espiritual para passar a diante, e a eles rendo toda a minha admiração e o meu respeito.

 Mas fica a reflexão se essa postura é a mais saudável e a mais honesta para todos os interessados na espiritualidade. Para mim, definitivamente, não é, e foram precisas várias experiências em tradições diversas, e em empreitadas solitárias diversas, para que eu entendesse esse fato sobre mim mesmo. No meu caso, como vejo ser no de outros tantos praticantes da Arte Bruxa, a necessidade maior acaba sendo a de vivenciar, bem vivenciado, aquilo que já se tem, em detrimento de buscar o que vem de fora, por mais bonito e reluzente que seja. E para vivenciar adequadamente o pouco que se tem de valor, é preciso se desfazer daquilo que não mais te serve.

 As pessoas ignoram o quão preciosas são as histórias tradicionais da bruxaria. Como se centenas de anos nos quais elas foram contadas ao redor da mesa da cozinha em tons fantasiosos fossem um demérito que as afastasse do olhar de estudiosos do assunto, que as tomam por mero folclore em nada relacionado à “sabedoria esotérica” que procuram. Ledo engano.

 Ao guiar-se pelo caminho da magia, a atenção e a preocupação com pressupostos arcaicos como estes – a troca de pele e a bifurcação – podem vir a ser a diferença entre crescer e se desenvolver, sempre transformando-se para aproximar-se cada vez mais de sua essência, ou paralisar, atrofiar e morrer para a verdadeira vivência da espiritualidade bruxa.

 Se a nossa busca enquanto bruxos e bruxas é pela nossa verdade pessoal, saibamos que ela só existe em nossa essência, tal como diz o mito, e para encontrar a nossa essência, é necessário se despir gradualmente de tudo aquilo que não seja essencial. Esse despir só é possível com o desconforto, que nos mostra qual é a pele seca que precisa ser arrancada e abandonada para que possamos continuar crescendo.

 Sintetizando a reflexão sobre a necessidade desta ecdise espiritual e aproveitando para adaptar uma outra metáfora tradicional da stregoneria, podemos dizer: ande pela direita e pela esquerda no caminho, mas carregue somente o que for necessário.

 Que a utilidade desse arcano encontre quem merecê-lo.

 


Gravura eslava retratando dragão, início do séc. XV.

 

 

 

~ Agradecimentos Oportunos ~

Estas reflexões não teriam existido se não fosse pela contribuição de algumas pessoas, a quem agradeço enormemente.

Ao meu mestre no caminho do tarô, Agathos, pela sua explanação divertida e esclarecedora sobre outras formas de interpretar os impasses e as horas da verdade que encontramos pela vida. Ao Eldric, sacerdote que anos atrás serviu de canal para a mensagem do loa Damballah sobre a pele seca nos olhos da serpente, metáfora que se uniu de modo perfeito e simbiótico à narrativa deste texto. Ao bàbáláwo Mario Filho que me mostrou na prática a sabedoria de Ifá e me ajudou a ver o ponto sem nó que há meses eu estava procurando. À minha avó-mãe, Assunta, por ter me ensinado as histórias preciosas que me ajudam, me acalentam e me iluminam no caminho. A Maria, Dimitrae, Angelo, e todos os demais professores e mestres que já tive em minha vida, por fazerem parte de minha história e terem ajudado a construí-la cada um ao seu modo.

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