Há um vício contemporâneo horrível na lida com o caminho espiritual, que é a racionalização excessiva da prática sustentada pelo academicismo.
Sem dúvidas é bem melhor pautar o
desenvolvimento de suas práticas espirituais na pesquisa acadêmica e nas
teorias publicadas em livros ocultistas sérios do que viver em meio aos delírios
que surgem de uma gnose pessoal pouco criteriosa ou pouco amparada pelos limites
que se constroem a partir de uma cosmovisão consolidada pelo tempo e de uma
teologia tradicional. Longe de mim afastar a importância de um estudo sóbrio sobre
o caminho mágico, um que passe pela história, pela filosofia ou pela
antropologia.
Mas é fato que algumas coisas só podem ser minimamente
compreendidas após uma experiência vivencial. De nada adianta teorizar verdadeiros
monólogos sobre como é a experiência de fazer sexo se você nunca transou. Sendo
virgem, você pode inventar as razões que quiser para explicar o fenômeno biológico
e psicológico do sexo, e serão apenas justificativas racionais sobre algo de
que você não tem conhecimento de causa. Acumular toda a bagagem teórica possível
de sexologia não faz ninguém ficar bom de cama se a pessoa não for lá e partir
para o rala e rola. E partir para o rala e rola várias vezes, trabalhando suas
inseguranças, explorando seus pontos fortes etc. E isso não é apenas uma
questão de aplicação prática do conhecimento teórico. É uma questão de submeter-se
a um nível muito mais sutil e profundo de aprendizado, que envolve muito pouco –
ou quase nada – da mente racional. Dá para argumentar (de forma leiga e rasa, fazendo
já um mea culpa à psicologia e à psicanálise) que muita coisa se trata
de conduzir um aprendizado que é “mais inconsciente do que consciente”, se
assim preferirem. O corpo animal que habitamos tem memória e instintos, carrega
atavismos, heranças comportamentais, vulnerabilidades e potencialidades que nem
sequer somos capazes de imaginar a nível consciente. E muitas experiências que
atravessamos ao longo da vida dialogam mais com todo esse conjunto de coisas ocultas
que nos constituem do que com a compreensão analítica e racional da nossa mente
– aquela que toma decisões supostamente lúcidas no dia a dia.
De um modo análogo, certas experiências
espirituais são relevantes a um nível de profundidade que escapa a nossa vã
filosofia, e ensinam muito mais a própria alma imortal do que a nossa
consciência racional e mundana.
O Sabá das Bruxas é um dos exemplos mais
vilipendiados nesse sentido, ao menos dentro da parcela da comunidade bruxa com
a qual eu tenho contato diariamente. Muito se teoriza e muito se discute,
principalmente a partir dos escritos e falas alheios, mas pouco se vivencia do
que de fato seja essa experiência. Quem a vivencia, sob qualquer uma de suas
infinitas possibilidades, parece guardar um resoluto silêncio frente aos ecos balbuciantes
do restante do mundo. Um silêncio que muito comunica nas entrelinhas. E penso
que isso tem a ver com a percepção do quanto essas duas realidades, a de especulador
externo e a de experimentador interno, são diametralmente distintas, justamente
porque existe qualquer coisa de nível mais subliminar e profundo que dá algum entrosamento
aos discursos e ações daqueles que passaram pelas mesmas experiências, ainda
que o perpétuo caos de intrigas e desavenças no qual a comunidade chafurda
tornem essa percepção um pouco difícil de captar em um primeiro momento.
Tomo por parâmetro a forma como alguns
textos do falecido Andrew Chumbley, que sempre me soaram absurdamente complexos
e ininteligíveis, subitamente passaram a fazer total sentido e converteram-se
numa leitura fluida depois de eu ter passado por experiências sabáticas oriundas
do folclore de minha própria tradição. Superficialmente, a mitologia concisa e
diminuta de minha família nada tem em comum com a complexa e rebuscada cadeia
de rituais e simbologias ocultas contida nos grimórios publicados pela Cultus
Sabbati. Mas inegavelmente, se a experiência de uma coisa viabiliza o
entendimento de outra coisa que antes parecia inacessível à razão, é porque o
aprendizado que abre as chaves daquele conhecimento é antes de tudo vivencial,
e não teórico.
Muito pode ser expandido em reflexão sobre
isso, mas talvez o mais relevante seja a dedução (por falta de uma palavra
melhor para o insight) de que se existem procedimentos rígidos e
específicos no mundo espiritual que legam um aprendizado profundo à alma ou ao
inconsciente, de forma sucessiva, gradual e edificante quanto ao florescimento
do pleno potencial individual (aquilo que alguns chamam deificação, vida eterna
ou iluminação), então é igualmente plausível que muitas práticas mal
estruturadas – ou estruturadas por uma vontade perversa qualquer – façam
justamente o oposto. Ou seja, são práticas e vivências que não trazem nenhum aprendizado
à alma ou os trazem de forma torta e possivelmente nociva.
E
muitos fatores me levam a crer que o simples resultado material bem-sucedido de
atos mágicos não é um critério de medição aplicável a essa dimensão da prática
espiritual, pois a feitiçaria pode ser bem executada segundo uma série de técnicas
e aptidões, e não necessariamente seus resultados são espiritualmente
edificantes dentro ou fora do próprio feiticeiro. Pelo contrário, não é difícil
encontrar exemplos de praticantes de magia completamente desequilibrados, hiper-reativos
ou carentes de uma quantidade mínima de integridade pessoal ou valores éticos, que
turbam mais a sua própria realidade e a de outras pessoas através da
espiritualidade do que constroem alguma coisa útil. Embora para algumas pessoas
o sucesso em praticar magia funcional e a falta de interesse em comungar com o
sagrado possam coexistir em uma vida tranquila e na retidão de caráter, o mesmo
não acontece quando o comungar com o sagrado acontece de forma torta ou
ilusória.
Parece inocente, sob este prisma, assegurar
a si mesmo que simplesmente porque os feitiços funcionam a dimensão espiritual
da vida como um todo vai bem, e que as vivências espirituais que se têm são todas
agregadoras e engrandecedoras à alma. A realidade de uma caminhada
mágico-religiosa é muito mais complexa do que isso. E não acho válido tampouco
usar esse raciocínio crítico como desculpa para afirmar – sem muitas vezes
saber de fato – que o caminho do outro é um desserviço ao progresso espiritual
dele, por mais “sem pé nem cabeça” que ele pareça ser aos seus olhos. Essa é
antes de tudo uma reflexão que serve de autocrítica. Afinal, você é responsável
apenas pelo seu próprio caminho, ou quando muito, por orientar os primeiros
estágios do caminho de alguém que esteja sob sua responsabilidade.
Essa é uma questão que demorei a
compreender, mesmo tendo convivido desde muito cedo com pessoas que guardam
para si ideias semelhantes em suas respectivas sendas, e tendo começado a
compreender, percebo o quanto é importante voltar essa reflexão com frequência
ao próprio caminho, e às escolhas que mais cedo ou mais tarde as bifurcações nele
contidas nos obrigarão a fazer...
“Eu
estou trilhando uma sina que engrandece meu espírito ou chafurdando na lama
espiritual sem perceber?”
“O
sucesso de minha magia vem acompanhado de uma comunhão verdadeira e benéfica
com o sagrado?”
“Em
que medida a teoria que eu assimilo se traduz em uma vivência real e
edificante?”
E reunir
as condições para ser capaz de responder cada uma dessas questões de forma
honesta e útil é um desafio à parte, talvez o mais importante para que se tenha
êxito naquilo que se busca na jornada... Boa sorte àqueles que tentam, já que é
dito que a Fortuna favorece os ousados.
Lindíssima reflexão. Lembra muito a passagem de ICor 1, 17-31. Também tenho pensado muito acerca disso ultimamente e essa passagem tem me trazido conforto. ��
ResponderExcluirMuito obrigado! Passagem profunda e reflexiva...
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