quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Sobre o processo de aprender com os espíritos (Parte 1): um confronto entre o passado e o presente, entre o real e o ilusório.

 


Arnold Boecklin - Autorretrato, 1872.

Falar da magia folclórica de origem europeia no Brasil às vezes parece ser uma frequente cirurgia para remover corpos estranhos de um paciente que respira por aparelhos.

Quem herdou esses conhecimentos da geração de nossos pais para frente foi colocado diante de um desafio que as gerações anteriores não tiveram de enfrentar, ao menos não na mesma intensidade. Esse desafio é compreender os limites que separam a forma antiga de fazer as coisas, tal como eram feitas pelos mais velhos, e as inovações que podem tanto somar quanto subtrair valor de nossas experiências espirituais, a depender do quão maduros e criteriosos estamos para entrar em contato com tais inovações.

O congresso com os seres espirituais, sejam antepassados, santos ou demônios (no sentido de espíritos não-humanos), sempre foi uma via de aprendizado e um mecanismo pelo qual até mesmo elementos perdidos das tradições orais poderiam ser reconstituídos. Não invento mitos nem tomo crendices como fatos quando faço essa afirmação, pois eu já testemunhei isso acontecendo e já participei de tais congressos frutificantes várias vezes. Recentemente, por exemplo, obtive uma confirmação material da ascendência de um dos meus antepassados longínquos, que me foi sugerida pelo dito cujo através dos sonhos após as minhas preces nesse sentido.

Minha avó que considero como mãe de criação recorreu a esse mecanismo pela primeira vez quando ficou órfã, ainda pré-adolescente, e assumiu as obrigações de dona da casa. Na ocasião, seu irmão mais velho estava para se casar e a responsabilidade de preparar um dos pratos da festa de casamento foi atribuída a ela, mas a receita da família havia ido para o túmulo com sua mãe, minha bisnonna. Ela então rezou o rosário da forma que fazia nossa matriarca e pediu aos antepassados que a instruíssem na receita do prato que ela devia preparar. Naquela noite ela foi visitada em sonho pelo espírito da mãe, que a ensinou todos os passos da receita de família, permitindo que ela desse conta de preparar a comida da forma correta no dia seguinte.

Isso foi praticado outras vezes, por outros motivos, e ocorreu espontaneamente outras tantas vezes, por outros tantos motivos. Mas o que eu percebo com o coletivo de experiências que ouvi e vivi até hoje é que, no tempo em que vivemos, com as influências religiosas, esotéricas e exotéricas que sofremos diariamente, esse processo é consideravelmente mais complexo hoje do que era no passado.

Certa vez um dos antigos me disse, em um sonho, que quanto mais complexa é a mente de um ser vivo, mais chances ele tem de desviar-se do seu propósito divino (aquilo que chamamos missão). Assim, da mesma forma, quanto mais agregamos conhecimento oculto sem distinguir e entender a essência das coisas que praticamos, mais arriscamos perdê-la, soterrando-a num mar de futilidades e compreensões errôneas sobre nós mesmos e sobre o mundo ao nosso redor.

Isso leva ao questionamento sobre os processos de gnose pessoal buscados através das práticas do ocultismo moderno e pelo exercício de práticas meditativas diversas. Elas podem, sem dúvida, trazer resultados, mas iguais chances de autoengano para uma mente incauta e pouco reflexiva. Isso porque recebemos uma quantidade tão grande de informações e influências, que dificilmente elas deixarão de ter um impacto em nossas percepções psíquicas sobre a realidade ao nosso redor. Nesse processo de buscar um contato com o mundo espiritual, essas percepções influenciadas por uma grande sobrecarga de dados podem deturpar aquilo que vemos, aquilo que ouvimos, e mesmo as conclusões que tiramos de uma experiência do gênero. É assim que surgem aquelas grandes revelações cósmicas que não são nada além de uma regurgitação dos estudos pretéritos do indivíduo disfarçadas de mensagem do astral, dos quais a “cena ocultista” está cheia.

Pessoas sem instrução em uma realidade agrária do século passado tinham um contato muito mais puro e lúcido com os seres espirituais do que a maioria dos magistas contemporâneos, letrados, residentes em apartamentos, entupidos de conceitos da teosofia, do kardecismo, das ordens esotéricas e de pseudociência que convergem para criar uma série de pré-concepções e ideologias nas quais os fenômenos espirituais precisam ser encaixados para que os universos pessoais dos praticantes possam continuar fazendo sentido. Não se trata de dizer que agregar novas informações e conceitos seja ruim, mas sim de reconhecer o imenso problema que temos em mãos quando esses novos conceitos se sobrepõem à habilidade de escutar o mundo espiritual com clareza e distorcem a voz dos espíritos para que nós possamos confirmar nossos achismos e massagear o nosso ego.

Somos muito frágeis em nossa pretensa sabedoria, pois ela frequentemente é incapaz de distinguir entre a verdade e a ilusão.

Uma dessas ilusões mais gritantes é o quanto a ancestralidade é vista por alguns praticantes de magia modernos como um poço de acolhimento e compreensão. Não há reprimendas, não há castigos, nem comportamentos autoritários por parte da ancestralidade. Não há jogo de interesses ou questões controvertidas. Só bençãos e uma aceitação incondicional de todas as escolhas e tendências do indivíduo, coisa que nem mesmo a família viva mais progressista e acolhedora é capaz de proporcionar.

Outra dessas ilusões é o quanto todas as forças espirituais existentes estão sempre disponíveis, e orientadas a algo que o indivíduo crê ser o seu propósito maior – constantemente indissociável das suas vontades ordinárias ou da sua vaidade. Zeus, Jesus Cristo, Buda, Krishna, Iemanjá, todos estão sempre acessíveis e interessados no seu bem-estar. E, curiosamente, todos tem alguma grande contribuição a fazer para sua jornada rumo a alguma coisa que você deseja ou rumo àquilo que em tese você deve aprender sobre si mesmo (mesmo que não aprenda nada além de senso comum, no frigir dos ovos).

Essas ideias são uma visão romântica do mundo espiritual, cuja contraparte em relação ao mundo material seria facilmente vista como um problema de ordem psiquiátrica. Desconstruí-las para que nosso caminho seja mais seguro e saudável é, portanto, um dever de todos que se aventuram a trabalhar com a espiritualidade de forma séria. É algo que deve ser um esforço constante e reiterado, permeado de constante autocrítica, seja qual for o caminho que se está trilhando.

No que tange a minha caminhada, já sofri alguns castigos – inclusive físicos – dos antigos por negligenciar seus conselhos que iam de encontro ao que eu desejava fazer, e por insistir em buscar a expansão do pouco que eles me transmitiram através de concepções fantasiosas que eu mesmo retroalimentei (em grande parte por não saber diferenciar o nosso caminho do caminho alheio, e as nossas verdades das verdades alheias, muitas vezes sendo ambas válidas, mas cada uma em seu próprio contexto). Posso colocar a mão no fogo pela veracidade da presença ancestral em minha casa, mas não o faço tão imediatamente em relação ao meu entendimento dos seus desígnios, pois a experiência me mostrou que é necessário cuidado para não sobrepor sobre a voz dos ancestrais aquilo que nós queremos ouvir, e que, muitas vezes, nós precisamos que os oráculos mais confiáveis e a realidade mundana nos prove o real sentido da fala dos espíritos, muitas vezes contrário às nossas presunções vaidosas.

Uma comunicação mediúnica límpida requer – nos tempos de “poluição cognitiva” em que vivemos – um constante esforço para impedir que nossas ideias e expectativas nos enganem, e nesse sentido muito mais pode ser dito, mas talvez num outro momento, em novas partes deste mesmo texto. Por hora acredito que o que eu gostaria de expressar já foi posto para fora de maneira assertiva, ao menos com relação ao cuidado que eu venho aprendendo que devemos ter para conservar um caminho tradicional como... Bem, tradicional de verdade, ao menos em sua essência e naquilo que o define como tal, independente do quanto possamos agregar em volta desta mesma essência.

Espero que o leitor, na medida do possível, assimile algo de bom destes pensamentos.



Pintura de Mihaly Zichy (1827-1906), retratando a ação de um anjo sussurrante.

 

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