Falar da magia folclórica de origem europeia no Brasil às vezes parece ser uma frequente cirurgia para remover corpos estranhos de um paciente que respira por aparelhos.
Quem herdou esses conhecimentos
da geração de nossos pais para frente foi colocado diante de um desafio que as
gerações anteriores não tiveram de enfrentar, ao menos não na mesma
intensidade. Esse desafio é compreender os limites que separam a forma antiga
de fazer as coisas, tal como eram feitas pelos mais velhos, e as inovações que
podem tanto somar quanto subtrair valor de nossas experiências espirituais, a
depender do quão maduros e criteriosos estamos para entrar em contato com tais
inovações.
O congresso com os seres
espirituais, sejam antepassados, santos ou demônios (no sentido de espíritos não-humanos),
sempre foi uma via de aprendizado e um mecanismo pelo qual até mesmo elementos
perdidos das tradições orais poderiam ser reconstituídos. Não invento mitos nem
tomo crendices como fatos quando faço essa afirmação, pois eu já testemunhei
isso acontecendo e já participei de tais congressos frutificantes várias vezes.
Recentemente, por exemplo, obtive uma confirmação material da ascendência de um
dos meus antepassados longínquos, que me foi sugerida pelo dito cujo através
dos sonhos após as minhas preces nesse sentido.
Minha avó que considero como mãe de criação
recorreu a esse mecanismo pela primeira vez quando ficou órfã, ainda
pré-adolescente, e assumiu as obrigações de dona da casa. Na ocasião, seu irmão
mais velho estava para se casar e a responsabilidade de preparar um dos pratos
da festa de casamento foi atribuída a ela, mas a receita da família havia ido
para o túmulo com sua mãe, minha bisnonna. Ela então rezou o rosário da
forma que fazia nossa matriarca e pediu aos antepassados que a instruíssem na
receita do prato que ela devia preparar. Naquela noite ela foi visitada em
sonho pelo espírito da mãe, que a ensinou todos os passos da receita de família,
permitindo que ela desse conta de preparar a comida da forma correta no dia
seguinte.
Isso foi praticado outras
vezes, por outros motivos, e ocorreu espontaneamente outras tantas vezes, por
outros tantos motivos. Mas o que eu percebo com o coletivo de experiências que ouvi
e vivi até hoje é que, no tempo em que vivemos, com as influências religiosas,
esotéricas e exotéricas que sofremos diariamente, esse processo é
consideravelmente mais complexo hoje do que era no passado.
Certa vez um dos antigos me
disse, em um sonho, que quanto mais complexa é a mente de um ser vivo, mais
chances ele tem de desviar-se do seu propósito divino (aquilo que chamamos missão).
Assim, da mesma forma, quanto mais agregamos conhecimento oculto sem distinguir
e entender a essência das coisas que praticamos, mais arriscamos perdê-la,
soterrando-a num mar de futilidades e compreensões errôneas sobre nós mesmos e
sobre o mundo ao nosso redor.
Isso leva ao questionamento
sobre os processos de gnose pessoal buscados através das práticas do ocultismo
moderno e pelo exercício de práticas meditativas diversas. Elas podem, sem
dúvida, trazer resultados, mas iguais chances de autoengano para uma mente
incauta e pouco reflexiva. Isso porque recebemos uma quantidade tão grande de
informações e influências, que dificilmente elas deixarão de ter um impacto em
nossas percepções psíquicas sobre a realidade ao nosso redor. Nesse processo de
buscar um contato com o mundo espiritual, essas percepções influenciadas por
uma grande sobrecarga de dados podem deturpar aquilo que vemos, aquilo que
ouvimos, e mesmo as conclusões que tiramos de uma experiência do gênero. É
assim que surgem aquelas grandes revelações cósmicas que não são nada além de
uma regurgitação dos estudos pretéritos do indivíduo disfarçadas de mensagem do
astral, dos quais a “cena ocultista” está cheia.
Pessoas sem instrução em uma
realidade agrária do século passado tinham um contato muito mais puro e lúcido
com os seres espirituais do que a maioria dos magistas contemporâneos,
letrados, residentes em apartamentos, entupidos de conceitos da teosofia, do
kardecismo, das ordens esotéricas e de pseudociência que convergem para criar
uma série de pré-concepções e ideologias nas quais os fenômenos espirituais
precisam ser encaixados para que os universos pessoais dos praticantes possam
continuar fazendo sentido. Não se trata de dizer que agregar novas informações
e conceitos seja ruim, mas sim de reconhecer o imenso problema que temos em mãos
quando esses novos conceitos se sobrepõem à habilidade de escutar o mundo
espiritual com clareza e distorcem a voz dos espíritos para que nós possamos
confirmar nossos achismos e massagear o nosso ego.
Somos muito frágeis em nossa
pretensa sabedoria, pois ela frequentemente é incapaz de distinguir entre a
verdade e a ilusão.
Uma dessas ilusões mais
gritantes é o quanto a ancestralidade é vista por alguns praticantes de magia
modernos como um poço de acolhimento e compreensão. Não há reprimendas, não há
castigos, nem comportamentos autoritários por parte da ancestralidade. Não há
jogo de interesses ou questões controvertidas. Só bençãos e uma aceitação
incondicional de todas as escolhas e tendências do indivíduo, coisa que nem
mesmo a família viva mais progressista e acolhedora é capaz de proporcionar.
Outra dessas ilusões é o quanto
todas as forças espirituais existentes estão sempre disponíveis, e orientadas a
algo que o indivíduo crê ser o seu propósito maior – constantemente indissociável
das suas vontades ordinárias ou da sua vaidade. Zeus, Jesus Cristo, Buda,
Krishna, Iemanjá, todos estão sempre acessíveis e interessados no seu
bem-estar. E, curiosamente, todos tem alguma grande contribuição a fazer para
sua jornada rumo a alguma coisa que você deseja ou rumo àquilo que em tese você
deve aprender sobre si mesmo (mesmo que não aprenda nada além de senso comum,
no frigir dos ovos).
Essas ideias são uma visão
romântica do mundo espiritual, cuja contraparte em relação ao mundo material
seria facilmente vista como um problema de ordem psiquiátrica. Desconstruí-las para que nosso caminho seja mais seguro e saudável é, portanto, um dever de todos que se aventuram a trabalhar com a espiritualidade de forma séria. É algo que deve ser um esforço constante e reiterado, permeado de constante autocrítica, seja qual for o caminho que se está trilhando.
No que tange a minha caminhada,
já sofri alguns castigos – inclusive físicos – dos antigos por negligenciar
seus conselhos que iam de encontro ao que eu desejava fazer, e por insistir em
buscar a expansão do pouco que eles me transmitiram através de concepções
fantasiosas que eu mesmo retroalimentei (em grande parte por não saber
diferenciar o nosso caminho do caminho alheio, e as nossas verdades das
verdades alheias, muitas vezes sendo ambas válidas, mas cada uma em seu próprio contexto). Posso
colocar a mão no fogo pela veracidade da presença ancestral em minha casa, mas
não o faço tão imediatamente em relação ao meu entendimento dos seus desígnios,
pois a experiência me mostrou que é necessário cuidado para não sobrepor sobre
a voz dos ancestrais aquilo que nós queremos ouvir, e que, muitas vezes, nós
precisamos que os oráculos mais confiáveis e a realidade mundana nos prove o
real sentido da fala dos espíritos, muitas vezes contrário às nossas presunções
vaidosas.
Uma comunicação mediúnica
límpida requer – nos tempos de “poluição cognitiva” em que vivemos – um
constante esforço para impedir que nossas ideias e expectativas nos enganem, e
nesse sentido muito mais pode ser dito, mas talvez num outro momento, em novas partes deste mesmo texto. Por hora
acredito que o que eu gostaria de expressar já foi posto para fora de maneira
assertiva, ao menos com relação ao cuidado que eu venho aprendendo que devemos
ter para conservar um caminho tradicional como... Bem, tradicional de verdade,
ao menos em sua essência e naquilo que o define como tal, independente do
quanto possamos agregar em volta desta mesma essência.
Espero que o leitor, na medida do possível, assimile algo de bom destes pensamentos.
Pintura de Mihaly Zichy (1827-1906), retratando a ação de um anjo sussurrante. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário