Pintura de Hyeronimus Bosch (1453 - ) |
Se uma das principais dificuldades no contato com o mundo espiritual é discernir a mensagem transmitida das expectativas do receptor, um outro problema tão grave quanto este é reconhecer quem é esse emissor, e quais são as suas reais intenções.
Certa vez ouvi de um praticante
de magia muito admirável que o mundo espiritual é uma verdadeira selva, e que
não havia muita diferença entre realizar um ritual para contatar seres
espirituais sem ter o preparo adequado, achando que eles serão amistosos e
prestativos graças a uma visualização de proteção qualquer, e perambular pela
Cracolândia buscando fazer amizades construtivas confiando que as suas
vibrações positivas o manterão a salvo. Na época lembro de ter pensado que o
meu colega estava exagerando e que, por mais que a cena da magia tivesse seus
riscos e seus praticantes incautos, uma parte considerável da comunidade sabia
o que estava fazendo.
Eu estava errado.
Muito errado.
A experiência antropológica
– como meu marido se refere aos contatos eventuais que temos com as práticas
espirituais alheias – me mostrou que muita gente efetivamente mete os pés pelas
mãos por ter uma visão romântica demais acerca do mundo espiritual e de como os
caminhos mágicos funcionam. E o pior é testemunhar em retrospecto que – não
fosse a interferência incisiva da ancestralidade e das potências espirituais
que cultuamos em nossa casa – eu poderia muito bem ter me enredado no mesmo
tipo de problema em caráter irremediável, por pura inocência.
A partir da minha consagração a
São Miguel Arcanjo e da sequência de casos de desobsessão que bateram à minha
porta, o emprego das técnicas tradicionais de benzimento e de exorcismo que
recebi me descortinou, pouco a pouco, que a realidade é consideravelmente mais
tenebrosa do que aparenta a quem pisa pela primeira vez na comunidade de
interessados em magia e bruxaria.
Você pode estar pensando que eu
estou exagerando também, então vou contar duas histórias adaptadas a partir de
casos reais que já vi se repetirem aos montes, e peço que reflita com cuidado
sobre cada uma dessas situações.
(Situação 1) Uma moça,
desejando um relacionamento, entra em contato com uma “divindade” de um povo
com o qual ela nunca teve nenhuma relação além de estudos em sites como
Wikipedia e afins, e solicita uma ajuda a esse ser para conseguir aquilo que
ela deseja. Magicamente, a moça começa a ver imagens da tal divindade nas redes
sociais, em grafites na rua, e até mesmo uma pessoa conhecida vem falar dessa
divindade para ela. Todos os sinais indicam que o contato foi bem-sucedido e
que ela obterá o que pediu. Ela está tão feliz que já prepara as oferendas que
prometeu dar à “divindade” caso conseguisse o relacionamento. Dias depois ela
está namorando, sucesso!
Mas, com o passar dos meses, o
relacionamento que parecia atender a todas as características determinadas pela
moça ao realizar o seu feitiço começa a dar sinais de que está se desenvolvendo
numa relação tóxica e problemática. No fim das contas, a moça descobre que
estava sendo traída durante todo o tempo de relação e que o namorado ainda
roubou dinheiro de sua carteira em mais de uma ocasião. O relacionamento acaba.
Ela procura a “divindade” aos prantos, e descobre então que a deusa havia
trazido aquele homem para sua vida “porque ela precisava aprender a se impor
numa relação”, ou “porque ela precisava aprender a amar a si mesma antes de
amar outra pessoa”, ou qualquer outra justificativa que poderia muito bem ter
saído de um livro de autoajuda para divorciados.
Assim a moça prossegue, de
relacionamento em relacionamento, colecionando mágoas, traições, traumas e
sofrimentos diversos, mas sempre se sentindo justificada ao final do processo
pois obteve um “grande autoconhecimento” e “tudo fazia parte de um propósito
maior”. E enquanto isso, a tal divindade que a empurrou para esses processos
recebeu uma centena de velas, algumas flores, muitas libações alcóolicas e
muitas outras comidinhas, bebidinhas e quinquilharias que supostamente
carregavam um profundo significado dentro daquele culto pessoal.
Giudizio Universale - Fra Angelico (c. 1431) - Museo Nazionale di San Marco a Firenze |
(Situação 2) Um jovem
entusiasmado com os livros sobre bruxaria tradicional decide começar a
praticar. Em sua justificativa pessoal, a bruxaria é uma prática livre e cada
buscador deve construir a sua própria caminhada. Se os antigos se iniciavam
muitas vezes diretamente com os espíritos ele certamente também seria capaz de
fazê-lo, não é?
Assim começa uma longa jornada
onde os escritos sobre bruxaria tradicional inglesa de linhagens diferentes
entre si convergem e se misturam ao ocultismo da mão esquerda, ao vodu e ao
hoodoo (que estão na moda), um pouco de quimbanda pra dar aquele tempero de
brasilidade e voilá. Não se sabe se o capeta que é invocado no stang
é Lúcifer, Pan, Dionísio ou Exu. Talvez seja Papa Legba ou Met Kalfou. Ou
talvez uma mistura de tudo isso, justificada com uma mistura igualmente eclética
de escolas de pensamento que vão desde o luciferianismo oitocentista até uma
releitura sombria e pessoal da umbanda sagrada do Saraceni.
Depois de um tempo, o rapaz
começa a perceber que em estudos mais compromissados com as tradições de magia
popular existe uma forte presença do catolicismo herético, e então a sua
tradição self-made começa a incluir também a devoção a alguns santos,
geralmente aqueles que já são notoriamente associados às bruxas, tipo São
Cipriano e Santa Marta. Mas nada de Jesus Cristo, afinal a bruxaria dele é
anticósmica, diabuda e inimiga do Demiurgo que criou esse mundo de ilusões!
As olheiras são a primeira
coisa que aparece, depois a queda de cabelo, os transtornos psiquiátricos que
pioram. Estes e outros problemas, geralmente acompanhados de uma falta crônica
de dinheiro e de vida afetiva saudável, levam o rapaz a uma visita eventual a
um terreiro pra dar uma estabilizada no processo de “iniciação vertical” que
ele está enfrentando. Curiosamente, os espíritos que atendem nestes locais alertam
que o dito cujo está fazendo merda, mas ele interpreta estes avisos como uma
tentativa do Demiurgo e seus asseclas de impedir o seu poderoso processo de
gnose satânico-sabática, e continua tocando o barco com extrema autoconfiança.
Afinal, a bruxaria é uma forja de almas e ele está sendo malhado como o ferro para
sair dessa mais forte, não é mesmo?
O abençoado Guillaume de Tolouse atormentado por demônios - Ambroise Fredeau (1589 - 1673).
As
duas histórias narradas acima ocorrem aos montes. São duas narrativas gerais
que eu vi mais frequentemente em casos de praticantes de magia que acabam
precisando passar por tratamentos de desobsessão – isto é, quando reconhecem
que precisam desse tratamento.
Assim
como a mensagem dos seres espirituais pode ser nublada pelas expectativas e
anseios do indivíduo que a recebe, a identidade desses seres pode ser
confundida de forma acidental ou proposital, e levar o praticante de magia a
realizar trocas e processos de comunhão extremamente prejudiciais e nocivos,
mesmo que não o pareçam num primeiro momento. Mesmo quando os seres em questão
atendem ao chamado com boas intenções existe a possibilidade de que a troca
seja danosa para quem os conjurou, pois, a mentalidade de alguns seres
espirituais, por mais bem intencionados que sejam (o que nem sempre é o caso), é
incapaz de entender a perspectiva de um ser humano da realidade, suas
necessidades e o que é benéfico ou prejudicial a ele de forma holística. Um
contato espiritual indevido pode desencadear desequilíbrios na mente
inconsciente, no corpo espiritual e no próprio destino, que podem só ser
identificados depois de alguns anos, conforme partes mais visíveis da
personalidade e da vida como um todo começam a ser afetadas.
Estes
problemas acontecem em grande parte porque, em desconexão com o conhecimento
tradicional da espiritualidade que há muito se preocupa com questões dessa
ordem, os praticantes confiam que basta sua boa intenção e um conjunto de técnicas
coringa para fazer contato com qualquer entidade espiritual. A realidade é,
contudo, mais sombria.
Devemos
pensar no conjunto de ritos e mitos legados pela tradição como um endereço de
e-mail ou um número de telefone. A combinação correta de atos cria uma conexão
com a “corrente de poder” na qual se espera obter a resposta dos seres que
usualmente participam de uma determinada tradição religiosa ou mágica. O erro
na execução dos ritos é como a discagem para um número errado: pode não
funcionar, mas pode colocar o praticante em contato com outra pessoa que não
aquela para quem ele imaginava estar ligando.
Outro
aspecto fundamental é a iniciação. Embora existam pessoas que atendem
desconhecidos ao telefone sem problemas, existem muitas pessoas que não
desperdiçam seu tempo com aqueles que desconhecem ou que não possuem uma boa
justificativa para entrar em contato. O mesmo ocorre com os seres espirituais.
As diversas formas de iniciação funcionam como meios de apresentação do
indivíduo ao mundo espiritual, aos ancestrais e aos seres espirituais que escutam
e participam ativamente de uma linhagem mágica. A execução de certos ritos sem
a iniciação apropriada pode resultar não apenas na falha em fazer contato com o
mundo espiritual, mas também no enredamento em relações torpes com seres
oportunistas que – tal como o praticante – não pertencem àquela tradição.
Witches Initiation - David Teniers II (c. 1640).
Obviamente, novos contatos
podem acontecer e acontecem. Novas chaves de acesso para as potências
espirituais podem ser criadas, e de tempos em tempos o são. Mas a criação de um
caminho espiritual tradicional depende de um contato fidedigno com a
espiritualidade – através do qual se poderá receber aquilo que pavimentará essa
nova estrada –, e a sua expansão ou reconstrução só é possível através do
amparo de outros caminhos tradicionais, oriundos de uma ancestralidade
igualmente agraciada com o influxo direto do sagrado. Se uma prática não possui
história ou ancestralidade que foram agraciadas com a entrega pelo mundo
espiritual, pouco se pode esperar que ela contribua para o amadurecimento de
uma outra prática que possui essas qualidades.
Principalmente para aqueles que
optam por trilhar um caminho solitário e/ou eclético, a preocupação com estes
temas deve estar sempre na ordem do dia. Como realmente garantir a sua
segurança em processos mágicos? Como constituir uma devoção na qual você realmente
será ouvido pelos seres que deseja contatar? Talvez aderir a uma espiritualidade
tradicional que, ainda que não seja dedicada à magia per se, te ofereça
as primeiras bases para lidar com essas questões e começar a construir um
entendimento mais coeso e mais seguro sobre elas. Talvez esse seja o princípio
de uma resposta.
Dentro dos caminhos
tradicionais, a forma e a memória contida nos atos, nas palavras, nas premissas
e nos propósitos são importantes – dentre vários outros motivos – para garantir
que enganos e prejuízos do gênero abordado neste texto ocorram com a menor
frequência possível. Compreender isso é uma das lições mais fundamentais para
que o processo de troca com os seres espirituais não seja desnecessariamente
inseguro e potencialmente trágico.
Espero que as considerações
dessa segunda parte do texto ajudem quem precisar (e desejar) endireitar os
rumos de sua trajetória, ou ao menos aparar as arestas como eu mesmo já o fiz várias
vezes.
Prudenza - Piero del Pollaiolo (1470), Galleria degli Uffizi a Firenze.
Oi Draco muito obrigado por compartilhar esse texto. Me ajudou bastante! Você Acha que rezar o Terço Mariano ou a coroa angelica de são Miguel Arcanjo pode ser tão arriscado? Claro que sempre devemos ter cuidado e prudência. Grato!
ResponderExcluirObrigado pelo feedback! Quanto às orações, entendo que não há problema algum em usá-las, pois são práticas devocionais consolidadas há séculos. Talvez seja necessário só ter cuidado com relação a misturas ou modificações sem fundamento, especialmente quando se pensa em práticas heréticas ou sincréticas. Espero ter ajudado :)
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