sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Sobre o processo de aprender com os espíritos (Parte 2): as armadilhas e os perigos de uma conexão improvisada



Pintura de Hyeronimus Bosch (1453 - )

Se uma das principais dificuldades no contato com o mundo espiritual é discernir a mensagem transmitida das expectativas do receptor, um outro problema tão grave quanto este é reconhecer quem é esse emissor, e quais são as suas reais intenções.

Certa vez ouvi de um praticante de magia muito admirável que o mundo espiritual é uma verdadeira selva, e que não havia muita diferença entre realizar um ritual para contatar seres espirituais sem ter o preparo adequado, achando que eles serão amistosos e prestativos graças a uma visualização de proteção qualquer, e perambular pela Cracolândia buscando fazer amizades construtivas confiando que as suas vibrações positivas o manterão a salvo. Na época lembro de ter pensado que o meu colega estava exagerando e que, por mais que a cena da magia tivesse seus riscos e seus praticantes incautos, uma parte considerável da comunidade sabia o que estava fazendo.

Eu estava errado.

Muito errado.

A experiência antropológica – como meu marido se refere aos contatos eventuais que temos com as práticas espirituais alheias – me mostrou que muita gente efetivamente mete os pés pelas mãos por ter uma visão romântica demais acerca do mundo espiritual e de como os caminhos mágicos funcionam. E o pior é testemunhar em retrospecto que – não fosse a interferência incisiva da ancestralidade e das potências espirituais que cultuamos em nossa casa – eu poderia muito bem ter me enredado no mesmo tipo de problema em caráter irremediável, por pura inocência.

A partir da minha consagração a São Miguel Arcanjo e da sequência de casos de desobsessão que bateram à minha porta, o emprego das técnicas tradicionais de benzimento e de exorcismo que recebi me descortinou, pouco a pouco, que a realidade é consideravelmente mais tenebrosa do que aparenta a quem pisa pela primeira vez na comunidade de interessados em magia e bruxaria.

Você pode estar pensando que eu estou exagerando também, então vou contar duas histórias adaptadas a partir de casos reais que já vi se repetirem aos montes, e peço que reflita com cuidado sobre cada uma dessas situações.

(Situação 1) Uma moça, desejando um relacionamento, entra em contato com uma “divindade” de um povo com o qual ela nunca teve nenhuma relação além de estudos em sites como Wikipedia e afins, e solicita uma ajuda a esse ser para conseguir aquilo que ela deseja. Magicamente, a moça começa a ver imagens da tal divindade nas redes sociais, em grafites na rua, e até mesmo uma pessoa conhecida vem falar dessa divindade para ela. Todos os sinais indicam que o contato foi bem-sucedido e que ela obterá o que pediu. Ela está tão feliz que já prepara as oferendas que prometeu dar à “divindade” caso conseguisse o relacionamento. Dias depois ela está namorando, sucesso!

Mas, com o passar dos meses, o relacionamento que parecia atender a todas as características determinadas pela moça ao realizar o seu feitiço começa a dar sinais de que está se desenvolvendo numa relação tóxica e problemática. No fim das contas, a moça descobre que estava sendo traída durante todo o tempo de relação e que o namorado ainda roubou dinheiro de sua carteira em mais de uma ocasião. O relacionamento acaba. Ela procura a “divindade” aos prantos, e descobre então que a deusa havia trazido aquele homem para sua vida “porque ela precisava aprender a se impor numa relação”, ou “porque ela precisava aprender a amar a si mesma antes de amar outra pessoa”, ou qualquer outra justificativa que poderia muito bem ter saído de um livro de autoajuda para divorciados.

Assim a moça prossegue, de relacionamento em relacionamento, colecionando mágoas, traições, traumas e sofrimentos diversos, mas sempre se sentindo justificada ao final do processo pois obteve um “grande autoconhecimento” e “tudo fazia parte de um propósito maior”. E enquanto isso, a tal divindade que a empurrou para esses processos recebeu uma centena de velas, algumas flores, muitas libações alcóolicas e muitas outras comidinhas, bebidinhas e quinquilharias que supostamente carregavam um profundo significado dentro daquele culto pessoal.



Giudizio Universale - Fra Angelico (c. 1431) - Museo Nazionale di San Marco a Firenze


(Situação 2) Um jovem entusiasmado com os livros sobre bruxaria tradicional decide começar a praticar. Em sua justificativa pessoal, a bruxaria é uma prática livre e cada buscador deve construir a sua própria caminhada. Se os antigos se iniciavam muitas vezes diretamente com os espíritos ele certamente também seria capaz de fazê-lo, não é?

Assim começa uma longa jornada onde os escritos sobre bruxaria tradicional inglesa de linhagens diferentes entre si convergem e se misturam ao ocultismo da mão esquerda, ao vodu e ao hoodoo (que estão na moda), um pouco de quimbanda pra dar aquele tempero de brasilidade e voilá. Não se sabe se o capeta que é invocado no stang é Lúcifer, Pan, Dionísio ou Exu. Talvez seja Papa Legba ou Met Kalfou. Ou talvez uma mistura de tudo isso, justificada com uma mistura igualmente eclética de escolas de pensamento que vão desde o luciferianismo oitocentista até uma releitura sombria e pessoal da umbanda sagrada do Saraceni.

Depois de um tempo, o rapaz começa a perceber que em estudos mais compromissados com as tradições de magia popular existe uma forte presença do catolicismo herético, e então a sua tradição self-made começa a incluir também a devoção a alguns santos, geralmente aqueles que já são notoriamente associados às bruxas, tipo São Cipriano e Santa Marta. Mas nada de Jesus Cristo, afinal a bruxaria dele é anticósmica, diabuda e inimiga do Demiurgo que criou esse mundo de ilusões!

As olheiras são a primeira coisa que aparece, depois a queda de cabelo, os transtornos psiquiátricos que pioram. Estes e outros problemas, geralmente acompanhados de uma falta crônica de dinheiro e de vida afetiva saudável, levam o rapaz a uma visita eventual a um terreiro pra dar uma estabilizada no processo de “iniciação vertical” que ele está enfrentando. Curiosamente, os espíritos que atendem nestes locais alertam que o dito cujo está fazendo merda, mas ele interpreta estes avisos como uma tentativa do Demiurgo e seus asseclas de impedir o seu poderoso processo de gnose satânico-sabática, e continua tocando o barco com extrema autoconfiança. Afinal, a bruxaria é uma forja de almas e ele está sendo malhado como o ferro para sair dessa mais forte, não é mesmo?



O abençoado Guillaume de Tolouse atormentado por demônios - Ambroise Fredeau (1589 - 1673).

              As duas histórias narradas acima ocorrem aos montes. São duas narrativas gerais que eu vi mais frequentemente em casos de praticantes de magia que acabam precisando passar por tratamentos de desobsessão – isto é, quando reconhecem que precisam desse tratamento.

              Assim como a mensagem dos seres espirituais pode ser nublada pelas expectativas e anseios do indivíduo que a recebe, a identidade desses seres pode ser confundida de forma acidental ou proposital, e levar o praticante de magia a realizar trocas e processos de comunhão extremamente prejudiciais e nocivos, mesmo que não o pareçam num primeiro momento. Mesmo quando os seres em questão atendem ao chamado com boas intenções existe a possibilidade de que a troca seja danosa para quem os conjurou, pois, a mentalidade de alguns seres espirituais, por mais bem intencionados que sejam (o que nem sempre é o caso), é incapaz de entender a perspectiva de um ser humano da realidade, suas necessidades e o que é benéfico ou prejudicial a ele de forma holística. Um contato espiritual indevido pode desencadear desequilíbrios na mente inconsciente, no corpo espiritual e no próprio destino, que podem só ser identificados depois de alguns anos, conforme partes mais visíveis da personalidade e da vida como um todo começam a ser afetadas.

              Estes problemas acontecem em grande parte porque, em desconexão com o conhecimento tradicional da espiritualidade que há muito se preocupa com questões dessa ordem, os praticantes confiam que basta sua boa intenção e um conjunto de técnicas coringa para fazer contato com qualquer entidade espiritual. A realidade é, contudo, mais sombria.

              Devemos pensar no conjunto de ritos e mitos legados pela tradição como um endereço de e-mail ou um número de telefone. A combinação correta de atos cria uma conexão com a “corrente de poder” na qual se espera obter a resposta dos seres que usualmente participam de uma determinada tradição religiosa ou mágica. O erro na execução dos ritos é como a discagem para um número errado: pode não funcionar, mas pode colocar o praticante em contato com outra pessoa que não aquela para quem ele imaginava estar ligando.

              Outro aspecto fundamental é a iniciação. Embora existam pessoas que atendem desconhecidos ao telefone sem problemas, existem muitas pessoas que não desperdiçam seu tempo com aqueles que desconhecem ou que não possuem uma boa justificativa para entrar em contato. O mesmo ocorre com os seres espirituais. As diversas formas de iniciação funcionam como meios de apresentação do indivíduo ao mundo espiritual, aos ancestrais e aos seres espirituais que escutam e participam ativamente de uma linhagem mágica. A execução de certos ritos sem a iniciação apropriada pode resultar não apenas na falha em fazer contato com o mundo espiritual, mas também no enredamento em relações torpes com seres oportunistas que – tal como o praticante – não pertencem àquela tradição.



Witches Initiation - David Teniers II (c. 1640).


Obviamente, novos contatos podem acontecer e acontecem. Novas chaves de acesso para as potências espirituais podem ser criadas, e de tempos em tempos o são. Mas a criação de um caminho espiritual tradicional depende de um contato fidedigno com a espiritualidade – através do qual se poderá receber aquilo que pavimentará essa nova estrada –, e a sua expansão ou reconstrução só é possível através do amparo de outros caminhos tradicionais, oriundos de uma ancestralidade igualmente agraciada com o influxo direto do sagrado. Se uma prática não possui história ou ancestralidade que foram agraciadas com a entrega pelo mundo espiritual, pouco se pode esperar que ela contribua para o amadurecimento de uma outra prática que possui essas qualidades.

Principalmente para aqueles que optam por trilhar um caminho solitário e/ou eclético, a preocupação com estes temas deve estar sempre na ordem do dia. Como realmente garantir a sua segurança em processos mágicos? Como constituir uma devoção na qual você realmente será ouvido pelos seres que deseja contatar?  Talvez aderir a uma espiritualidade tradicional que, ainda que não seja dedicada à magia per se, te ofereça as primeiras bases para lidar com essas questões e começar a construir um entendimento mais coeso e mais seguro sobre elas. Talvez esse seja o princípio de uma resposta.

Dentro dos caminhos tradicionais, a forma e a memória contida nos atos, nas palavras, nas premissas e nos propósitos são importantes – dentre vários outros motivos – para garantir que enganos e prejuízos do gênero abordado neste texto ocorram com a menor frequência possível. Compreender isso é uma das lições mais fundamentais para que o processo de troca com os seres espirituais não seja desnecessariamente inseguro e potencialmente trágico.

Espero que as considerações dessa segunda parte do texto ajudem quem precisar (e desejar) endireitar os rumos de sua trajetória, ou ao menos aparar as arestas como eu mesmo já o fiz várias vezes.



Prudenza - Piero del Pollaiolo (1470), Galleria degli Uffizi a Firenze.


2 comentários:

  1. Oi Draco muito obrigado por compartilhar esse texto. Me ajudou bastante! Você Acha que rezar o Terço Mariano ou a coroa angelica de são Miguel Arcanjo pode ser tão arriscado? Claro que sempre devemos ter cuidado e prudência. Grato!

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  2. Obrigado pelo feedback! Quanto às orações, entendo que não há problema algum em usá-las, pois são práticas devocionais consolidadas há séculos. Talvez seja necessário só ter cuidado com relação a misturas ou modificações sem fundamento, especialmente quando se pensa em práticas heréticas ou sincréticas. Espero ter ajudado :)

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