sexta-feira, 23 de setembro de 2022

IL MALOCCHIO: O Mau-Olhado



O nazar, ou olho grego.


A preocupação com os efeitos do mau sentimento alheio sobre os bens pessoais, a saúde e a plenitude da vida é uma constante nas sociedades humanas. Desde muito cedo a humanidade aprendeu que os olhos funcionam como um maravilhoso veículo de significados e forças espirituais. O olhar é a forma pela qual a maioria dos seres humanos coloca significado nas coisas, assimila o mundo ao seu redor e se comunica. A sinceridade é muitas vezes relacionada ao olhar direto de olho para olho, assim como a vergonha muitas vezes causa a reação de desviar o olhar da face do interlocutor.

É fato, há qualquer coisa na expressividade dos olhos que pode atingir firmemente o outro, senão de forma física e direta ao menos psicologicamente através da emoção que ele transmite.

Dentro da cultura italiana, em especial durante gerações passadas, o malocchio (mau-olhado) tornou-se algo muito vívido e presente no dia a dia. Não somente o olhar maligno proposital poderia ser o responsável pela desgraça e o infortúnio que recaiam sobre a vida de alguém, como também as boas e gentis pessoas que encontramos em nosso caminho também poderiam ser as emissoras inconscientes deste mal.

O “olho-mau” foi assim caracterizado por um impulso de morte, de decaimento e putrefação, um fenômeno de transmissão de um desejo por infertilidade e esterilidade, que seria inoculado para se manifestar em seu alvo através da visão com o auxílio da fala e em alguns casos, dos gestos. Os alvos, por sua vez, não poderiam ser mais diversificados: pessoas, relacionamentos, casas, colheitas, uma boa garrafa de vinho, animais domésticos, uma carreira promissora, as vendas de um comércio... O malocchio, a depender de seu nível de poder, seria capaz de destruir ou ao menos perturbar a existência de todas essas coisas.

Devido a essas e outras preocupações, uma série de remédios foram elaborados nas tradições mágicas para neutralizar o malocchio e proteger e revigorar sua vítima. Os mais importantes, por serem aqueles que viabilizam que o mau-olhado que aflige uma vítima seja removido, são os rituais de corte e limpeza espiritual, os famosos “benzimentos”.



Remoção do mau-olhado segundo a tradição sarda.

O mais conhecido ritual de corte do malocchio envolve o teste com três gotas de azeite num prato branco cheio d’água, para determinar se o mal que atinge a vítima é espiritual ou não, e se sim, qual a sua real intensidade. Gotas que se desfazem e se misturam à água mostram um malocchio muito intenso. Gotas que se alargam na superfície – por vezes formando a figura de um olho – demonstram que o malocchio é de um nível mais intermediário, e se o tamanho é reduzido, pode indicar apenas uma forte inveja agindo sobre a vítima. Se todas as gotas se comportam normalmente, o alvo está limpo de más influências. Usualmente uma fórmula mágica – um encantamento, muitas vezes secreto – é utilizada sobre o prato e sobre o corpo da vítima, para cortar a influência maligna e neutralizá-la. Muitas vezes estas receitas envolvem o uso de tesouras, facas, sal de cozinha, carvão aceso, fósforos, e outros elementos domésticos. Em níveis mais alarmantes, uma vela pode ser acesa para requisitar o auxílio mais incisivo dos santos e anjos invocados durante o procedimento.

Tanto o encantamento utilizado para a remoção do mau-olhado quanto os procedimentos exatos desse processo, incluindo os gestos realizados com as mãos e quais pontos do corpo devem ser tocados, constituem um conjunto legado adiante de maneira iniciática. No costume de muitas linhagens, a transmissão desse laço iniciático que autoriza a próxima geração a performar esse conhecimento só é possível durante a meia noite de determinados dias festivos, sendo o mais usual a virada da véspera de Natal para o dia de Natal propriamente dito. Contudo, algumas linhagens realizam a passagem deste e de outros poderes também na véspera da Páscoa – na chamada vigília pascal – ou na véspera de San Giovanni, a Festa de São João Batista.

Outras formas também existem de diagnosticar as vítimas do mau-olhado, e incluem a divinação com grãos, com a cera de uma vela num copo d’água com linhas de costura, entre outras. Além disto, o processo de combate ao malocchio também se realiza por meio de conjurações feitas com os sinais das mãos acompanhados de um rosário ou outro elemento protetor, e batidas com os pés no chão, lembrando vagamente como tais procedimentos são realizados nas tradições ibéricas e brasileiras.



Alguns dos cornetti - amuletos contra o mau-olhado - adquiridos por mim em locais distintos durante minha ida à Itália em julho deste ano. O do meio é encimado pelo Pulcinella, personagem característico da tradição napolitana. Os materiais nos quais os cornetti da foto são confeccionados são o plástico, a cerâmica e o metal, respectivamente. Além destes, possuo também versões em coral e osso de chifre.

Além da limpeza do mau-olhado que se abateu sobre uma vítima, também se desenvolveram técnicas para a proteção contra este fenômeno hostil, sendo as mais importantes os amuletos que evocam uma simbologia de fertilidade ou de defesa espiritual. Alguns deles são: o corno, cornetto ou cornicello, um pequeno chifre vermelho feito de coral ou de metais diversos, que simboliza o chifre do diabo arrancado por São Miguel Arcanjo; a mano cornuta ou mão-chifruda, uma imitação de chifres com os dedos indicador e mindinho, similares ao sinal do rock n’roll; a mano figa, uma posição de mãos que imita o pênis adentrando a vagina; a rama de alho; as cruzes de medalhas dos anjos e santos; dentre outros.

Ainda são destaques os amuletos protetores criados especificamente para uma pessoa e que muito se assemelham aos patuás brasileiros, tendo uma infinidade de nomes regionais – como sacchetto santo, santucio e brevi – que acabaram sendo substituídos em parte por termos de outras culturas como mojo bag e patuá entre os descendentes de imigrantes italianos que vieram para as Américas.



Brevi colocado à mostra no Museu Etnográfico do Friuli, em Udine.

O processo de confecção destes amuletos costurados varia muito, mas usualmente gira em torno da cor e da forma geométrica dos tecidos costurados, e inclui em seu interior medalhas de santos, sal de cozinha, ervas de proteção e pequenos fragmentos de ouro e outros metais cuja natureza se acredita ser protetiva contra o mau-olhado. Embora existam estas linhas gerais, é possível encontrar sacchetti contendo insetos e aracnídeos, papéis com orações e versículos bíblicos, fragmentos de hóstia tomada na missa, dentes e unhas de humanos e animais, e toda uma sorte de elementos mais inusitados.



Peça em gesso utilizada para imitar o coral vermelho na proteção contra o malocchio. Foto da seção de amuletos do Museu Etnográfico do Friuli em Udine.

Não apenas os amuletos fornecem a proteção contra o malocchio e outros males peculiares do universo italiano, mas também gestos específicos podem ajudar a neutralizá-lo instantaneamente ou mesmo revertê-lo de volta para quem o conjurou.

Um dos gestos mais comuns é quase uma celebridade dentre os símbolos da bruxaria italiana, a mano cornuta, que teria o poder de rebater o mau-olhado contra o seu emissor caso seja feita enquanto ele estava sendo emitido (mesmo que não esteja no campo de visão do emissor). Também é muito utilizada a mano figa, que poderia através de seu simbolismo sexual anular a carga mortífera enviada pelos olhos mal-intencionados. Em algumas tradições, a minha inclusa, é um preceito que os homens só podem usar a mano cornuta na mão direita e a mano figa na mão esquerda, e as mulheres ao inverso. Além destas duas mãos principais, são notáveis a mano pantea, utilizada para bênçãos e consagrações, o sinal da mano pigna, com a qual se fazem movimentos circulares em alguns conjuros, a mano della promessa com a qual se faz o sinal da cruz em segredo para combater um ataque espiritual em curso, e a forma de anel feita com o dedo polegar e indicador em movimento específico de fechamento, cujo nome é melhor não dizer, e que é usada para capturar influências (e também mandar alguém ir à merda).

Estes gestos manuais, junto de uma série de outros gestos que possuem significados ligados à proteção, à bênção, à ocultação e à maldição, fazem todos parte do conjunto de símbolos empregados dentro das tradições mágicas italianas legítimas. Tal conjunto de símbolos gestuais, presente de forma diversificada em toda a Itália, fez com que as práticas de magia popular da região da Emilia Romagna fossem designadas pelo nome de Segnature, termo que faz referência ao ato de sinalizar com as mãos. Atualmente, com as redes sociais e a facilidade de locomoção pelo território, muitos praticantes tradicionais de toda a península itálica adotaram o termo segnature para designar suas tradições, uma vez que este tende a ser mais universalista do que as inúmeras nomenclaturas regionais para magia de cura e proteção e bem menos ofensivo e pejorativo do que o conceito público do termo stregoneria (bruxaria).

Mas retornemos ao malocchio.

Em termos de origem e anatomia, e segundo a nossa tradição, o malocchio é um verdadeiro impulso de morte que se origina no coração e é projetado pela visão, muitas vezes intencionalmente e de forma amplificada pelos dons mediúnicos, através da capacidade que se denomina como “olhar de maldição”, chamado por algumas pessoas de outras tradições como “olhar de fogo”.

Embora seja uma força nefasta, é fato conhecido da tradição que muitas das pessoas que lançam o mau-olhado não tem ciência de que o fazem. Em razão disto é que se tornou muito comum entre as gerações passadas abençoar o objeto de todos os seus elogios conforme eles eram proferidos. Quem nunca reparou como é quase automático para os antigos dizerem, por exemplo, “que lindo que seu filho é, que Deus abençoe”?



Conchas de Santa Luzia, outro amuleto utilizado contra o malocchio na tradição friulana.

Quando se profere uma bênção ao elogiar alguém, entende-se que a força divina pode até certo ponto neutralizar qualquer mau-olhado que esteja sendo lançado inconscientemente sobre a vítima. Com isso em mente, algumas pessoas mais antigas ainda vão relutar muito em agradecer um elogio que não venha acompanhado de uma bênção, pois caso o façam, é sabido que o malocchio possivelmente presente no ato pode penetrar em todas as suas proteções, aproveitando-se da brecha dada para o recebimento receptivo e grato dos elogios.

Uma história ilustrativa me foi contada sobre isso na infância.

Na cidade de origem de minha família, antes da imigração para o Brasil, havia uma menina que era admirada por todos que a conheciam graças aos seus olhos azuis, que eram de uma cor impressionantemente viva. Um dia na saída da missa, ainda nas escadarias da igreja, uma das bruxas da cidade acariciou o rosto dessa criança enquanto elogiava seus olhos. Os pais da menina, por inocência ou ignorância, não perceberam as intenções malignas da mulher e a orientaram a menina a agradecer o elogio, seguindo suas vidas normalmente pelo restante do dia. Ao entardecer, os olhos da menina saltaram para fora do crânio e ela veio a falecer. O diagnóstico: vitimada pelo malocchio, que exercera seu poder total sobre ela graças à recepção de um elogio que veio sem ser acompanhado por uma bênção.

Nos tempos em que vivemos, onde a religiosidade para muitos se tornou algo segregado ou subsidiário à vida social, o uso desse mecanismo de inoculação do mau-olhado é explorado com mais sucesso do que nunca por quem detém a capacidade de amaldiçoar com os olhos, dificilmente encontrando alguma resistência das proteções espirituais da vítima.

Quando o malocchio ou algum outro tipo de força prejudicial ou aprisionante é intencionalmente conjurado e lançado por uma bruxa por meio do olhar, tende-se a denominá-lo como olhar de maldição (strigamento ou striament no Friuli, jettatura em Napoli e l’affascinatura nas tradições típicas da Puglia). É recorrente ainda hoje entre aqueles que possuem o dom para o olhar de maldição, ou que ao menos conseguem instrumentalizar o lançamento do malocchio, conjugar esta prática com uma série de elogios dissimulados e uma postura de amizade e acolhimento em relação à vítima. Estes atos se tornam essencialmente letais em um contexto social onde boa parte da população não possui mais uma espiritualidade tão devota quanto a das gerações passadas, nem ao menos uma preocupação com a sutil etiqueta utilizada como defesa contra a conjuração de maldições disfarçadas de elogios.



As pedras naturalmente furadas, especialmente aquelas com muitos pequenos furos, são outro tipo de amuleto poderoso contra o malocchio. No dialeto, é chamada pietra di strigamento.

É importante dizer também que existiu um componente social da crença do mau-olhado, que foi a insatisfação de uma população sofrida, acometida pela pobreza, pela fome, pela dificuldade de diversas ordens, e que precisava, num contexto de repressão da religião institucional e de negligência do Estado, encontrar algumas justificativas, ainda que vagas, para os seus sofrimentos. Certamente tempos de dificuldade podem favorecer a impressão de que os outros nos afetam magicamente de maneiras prejudiciais. Entretanto, para além de todas as explicações sociológicas, psicológicas e antropológicas que já tentaram tecer para a cultura em volta do malocchio e seus equivalentes em outras etnias da raça humana, o mau-olhado ainda permanece até os dias de hoje como um fenômeno real, palpável e plenamente compreensível para aqueles que possuem algum esclarecimento espiritual ou que detém, tradicionalmente, os meios para identificá-lo e anular os seus efeitos. Isto nos lembra que muitas superstições e costumes entendidos pelas gerações modernas e globalizadas como crendices ultrapassadas guardam em si um valioso tesouro ancestral.

E o meu palpite é de que tais conhecimentos são ainda mais necessários no tempo em que vivemos, cheio de exibicionismo através das redes sociais e no qual a inveja e o descontentamento com a felicidade – ou aparente felicidade – alheia nunca foi tão presente em nossa sociedade.

Que saibamos rechaçar o olhar de maldição para longe de nossas vidas!





Referências para maior estudo sobre o mau-olhado nas tradições italianas podem ser encontradas na maioria dos textos e livros na página "Recomendações".

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