O nazar, ou olho grego. |
A preocupação com os efeitos do mau sentimento alheio sobre os bens pessoais, a saúde e a plenitude da vida é uma constante nas sociedades humanas. Desde muito cedo a humanidade aprendeu que os olhos funcionam como um maravilhoso veículo de significados e forças espirituais. O olhar é a forma pela qual a maioria dos seres humanos coloca significado nas coisas, assimila o mundo ao seu redor e se comunica. A sinceridade é muitas vezes relacionada ao olhar direto de olho para olho, assim como a vergonha muitas vezes causa a reação de desviar o olhar da face do interlocutor.
É fato, há qualquer coisa na expressividade dos olhos que pode atingir firmemente o outro, senão de forma física e direta ao menos psicologicamente através da emoção que ele transmite.
Dentro da cultura italiana, em
especial durante gerações passadas, o malocchio (mau-olhado) tornou-se
algo muito vívido e presente no dia a dia. Não somente o olhar maligno
proposital poderia ser o responsável pela desgraça e o infortúnio que recaiam
sobre a vida de alguém, como também as boas e gentis pessoas que encontramos em
nosso caminho também poderiam ser as emissoras inconscientes deste mal.
O “olho-mau” foi assim
caracterizado por um impulso de morte, de decaimento e putrefação, um fenômeno
de transmissão de um desejo por infertilidade e esterilidade, que seria
inoculado para se manifestar em seu alvo através da visão com o auxílio da fala
e em alguns casos, dos gestos. Os alvos, por sua vez, não poderiam ser mais
diversificados: pessoas, relacionamentos, casas, colheitas, uma boa garrafa de
vinho, animais domésticos, uma carreira promissora, as vendas de um comércio...
O malocchio, a depender de seu nível de poder, seria capaz de destruir
ou ao menos perturbar a existência de todas essas coisas.
Devido a essas e outras
preocupações, uma série de remédios foram elaborados nas tradições mágicas para
neutralizar o malocchio e proteger e revigorar sua vítima. Os mais
importantes, por serem aqueles que viabilizam que o mau-olhado que aflige uma
vítima seja removido, são os rituais de corte e limpeza espiritual, os famosos
“benzimentos”.
Remoção do mau-olhado segundo a tradição sarda. |
O mais conhecido ritual de
corte do malocchio envolve o teste com três gotas de azeite num prato
branco cheio d’água, para determinar se o mal que atinge a vítima é espiritual
ou não, e se sim, qual a sua real intensidade. Gotas que se desfazem e se
misturam à água mostram um malocchio muito intenso. Gotas que se alargam
na superfície – por vezes formando a figura de um olho – demonstram que o malocchio
é de um nível mais intermediário, e se o tamanho é reduzido, pode indicar
apenas uma forte inveja agindo sobre a vítima. Se todas as gotas se comportam
normalmente, o alvo está limpo de más influências. Usualmente uma fórmula mágica
– um encantamento, muitas vezes secreto – é utilizada sobre o prato e sobre o
corpo da vítima, para cortar a influência maligna e neutralizá-la. Muitas vezes
estas receitas envolvem o uso de tesouras, facas, sal de cozinha, carvão aceso,
fósforos, e outros elementos domésticos. Em níveis mais alarmantes, uma vela pode
ser acesa para requisitar o auxílio mais incisivo dos santos e anjos invocados
durante o procedimento.
Tanto o encantamento utilizado
para a remoção do mau-olhado quanto os procedimentos exatos desse processo,
incluindo os gestos realizados com as mãos e quais pontos do corpo devem ser
tocados, constituem um conjunto legado adiante de maneira iniciática. No
costume de muitas linhagens, a transmissão desse laço iniciático que autoriza a
próxima geração a performar esse conhecimento só é possível durante a meia
noite de determinados dias festivos, sendo o mais usual a virada da véspera de
Natal para o dia de Natal propriamente dito. Contudo, algumas linhagens
realizam a passagem deste e de outros poderes também na véspera da Páscoa – na
chamada vigília pascal – ou na véspera de San Giovanni, a Festa de São João
Batista.
Outras formas também existem de
diagnosticar as vítimas do mau-olhado, e incluem a divinação com grãos, com a
cera de uma vela num copo d’água com linhas de costura, entre outras. Além
disto, o processo de combate ao malocchio também se realiza por meio de
conjurações feitas com os sinais das mãos acompanhados de um rosário ou outro
elemento protetor, e batidas com os pés no chão, lembrando vagamente como tais
procedimentos são realizados nas tradições ibéricas e brasileiras.
Além da limpeza do mau-olhado
que se abateu sobre uma vítima, também se desenvolveram técnicas para a
proteção contra este fenômeno hostil, sendo as mais importantes os amuletos que
evocam uma simbologia de fertilidade ou de defesa espiritual. Alguns deles são:
o corno, cornetto ou cornicello, um pequeno chifre vermelho
feito de coral ou de metais diversos, que simboliza o chifre do diabo arrancado
por São Miguel Arcanjo; a mano cornuta ou mão-chifruda, uma imitação de
chifres com os dedos indicador e mindinho, similares ao sinal do rock n’roll;
a mano figa, uma posição de mãos que imita o pênis adentrando a vagina; a
rama de alho; as cruzes de medalhas dos anjos e santos; dentre outros.
Ainda são destaques os amuletos
protetores criados especificamente para uma pessoa e que muito se assemelham
aos patuás brasileiros, tendo uma infinidade de nomes regionais – como sacchetto
santo, santucio e brevi – que acabaram sendo substituídos em
parte por termos de outras culturas como mojo bag e patuá entre
os descendentes de imigrantes italianos que vieram para as Américas.
Brevi colocado à mostra no Museu Etnográfico do Friuli, em Udine. |
O processo de confecção destes
amuletos costurados varia muito, mas usualmente gira em torno da cor e da forma
geométrica dos tecidos costurados, e inclui em seu interior medalhas de santos,
sal de cozinha, ervas de proteção e pequenos fragmentos de ouro e outros metais
cuja natureza se acredita ser protetiva contra o mau-olhado. Embora existam
estas linhas gerais, é possível encontrar sacchetti contendo insetos e
aracnídeos, papéis com orações e versículos bíblicos, fragmentos de hóstia
tomada na missa, dentes e unhas de humanos e animais, e toda uma sorte de
elementos mais inusitados.
Peça em gesso utilizada para imitar o coral vermelho na proteção contra o malocchio. Foto da seção de amuletos do Museu Etnográfico do Friuli em Udine. |
Não apenas os amuletos fornecem
a proteção contra o malocchio e outros males peculiares do universo
italiano, mas também gestos específicos podem ajudar a neutralizá-lo
instantaneamente ou mesmo revertê-lo de volta para quem o conjurou.
Um dos gestos mais comuns é quase
uma celebridade dentre os símbolos da bruxaria italiana, a mano cornuta,
que teria o poder de rebater o mau-olhado contra o seu emissor caso seja feita
enquanto ele estava sendo emitido (mesmo que não esteja no campo de visão do
emissor). Também é muito utilizada a mano figa, que poderia através de
seu simbolismo sexual anular a carga mortífera enviada pelos olhos mal-intencionados.
Em algumas tradições, a minha inclusa, é um preceito que os homens só podem
usar a mano cornuta na mão direita e a mano figa na mão esquerda,
e as mulheres ao inverso. Além destas duas mãos principais, são notáveis a mano
pantea, utilizada para bênçãos e consagrações, o sinal da mano pigna,
com a qual se fazem movimentos circulares em alguns conjuros, a mano della
promessa com a qual se faz o sinal da cruz em segredo para combater um
ataque espiritual em curso, e a forma de anel feita com o dedo
polegar e indicador em movimento específico de fechamento, cujo nome é melhor não dizer, e que é usada para capturar
influências (e também mandar alguém ir à merda).
Estes gestos manuais, junto de
uma série de outros gestos que possuem significados ligados à proteção, à
bênção, à ocultação e à maldição, fazem todos parte do conjunto de símbolos
empregados dentro das tradições mágicas italianas legítimas. Tal conjunto de
símbolos gestuais, presente de forma diversificada em toda a Itália, fez com
que as práticas de magia popular da região da Emilia Romagna fossem designadas
pelo nome de Segnature, termo que faz referência ao ato de sinalizar com
as mãos. Atualmente, com as redes sociais e a facilidade de locomoção pelo
território, muitos praticantes tradicionais de toda a península itálica
adotaram o termo segnature para designar suas tradições, uma vez que
este tende a ser mais universalista do que as inúmeras nomenclaturas regionais para
magia de cura e proteção e bem menos ofensivo e pejorativo do que o conceito
público do termo stregoneria (bruxaria).
Mas retornemos ao malocchio.
Em termos de origem e anatomia,
e segundo a nossa tradição, o malocchio é um verdadeiro impulso de morte
que se origina no coração e é projetado pela visão, muitas vezes
intencionalmente e de forma amplificada pelos dons mediúnicos, através da
capacidade que se denomina como “olhar de maldição”, chamado por algumas
pessoas de outras tradições como “olhar de fogo”.
Embora seja uma força nefasta, é
fato conhecido da tradição que muitas das pessoas que lançam o mau-olhado não
tem ciência de que o fazem. Em razão disto é que se tornou muito comum entre as
gerações passadas abençoar o objeto de todos os seus elogios conforme eles eram
proferidos. Quem nunca reparou como é quase automático para os antigos dizerem,
por exemplo, “que lindo que seu filho é, que Deus abençoe”?
Conchas de Santa Luzia, outro amuleto utilizado contra o malocchio na tradição friulana. |
Quando se profere uma bênção ao
elogiar alguém, entende-se que a força divina pode até certo ponto neutralizar
qualquer mau-olhado que esteja sendo lançado inconscientemente sobre a vítima. Com
isso em mente, algumas pessoas mais antigas ainda vão relutar muito em
agradecer um elogio que não venha acompanhado de uma bênção, pois caso o façam,
é sabido que o malocchio possivelmente presente no ato pode penetrar em
todas as suas proteções, aproveitando-se da brecha dada para o recebimento
receptivo e grato dos elogios.
Uma história ilustrativa me foi
contada sobre isso na infância.
Na cidade de origem de minha
família, antes da imigração para o Brasil, havia uma menina que era admirada
por todos que a conheciam graças aos seus olhos azuis, que eram de uma cor impressionantemente
viva. Um dia na saída da missa, ainda nas escadarias da igreja, uma das bruxas
da cidade acariciou o rosto dessa criança enquanto elogiava seus olhos. Os pais
da menina, por inocência ou ignorância, não perceberam as intenções malignas da
mulher e a orientaram a menina a agradecer o elogio, seguindo suas vidas
normalmente pelo restante do dia. Ao entardecer, os olhos da menina saltaram
para fora do crânio e ela veio a falecer. O diagnóstico: vitimada pelo malocchio,
que exercera seu poder total sobre ela graças à recepção de um elogio que veio
sem ser acompanhado por uma bênção.
Nos tempos em que vivemos, onde
a religiosidade para muitos se tornou algo segregado ou subsidiário à vida
social, o uso desse mecanismo de inoculação do mau-olhado é explorado com mais
sucesso do que nunca por quem detém a capacidade de amaldiçoar com os olhos, dificilmente
encontrando alguma resistência das proteções espirituais da vítima.
Quando o malocchio ou
algum outro tipo de força prejudicial ou aprisionante é intencionalmente
conjurado e lançado por uma bruxa por meio do olhar, tende-se a denominá-lo
como olhar de maldição (strigamento ou striament no Friuli, jettatura em Napoli
e l’affascinatura nas tradições típicas da Puglia). É recorrente ainda
hoje entre aqueles que possuem o dom para o olhar de maldição, ou que ao menos
conseguem instrumentalizar o lançamento do malocchio, conjugar esta
prática com uma série de elogios dissimulados e uma postura de amizade e
acolhimento em relação à vítima. Estes atos se tornam essencialmente letais em
um contexto social onde boa parte da população não possui mais uma
espiritualidade tão devota quanto a das gerações passadas, nem ao menos uma
preocupação com a sutil etiqueta utilizada como defesa contra a conjuração de
maldições disfarçadas de elogios.
As pedras naturalmente furadas, especialmente aquelas com muitos pequenos furos, são outro tipo de amuleto poderoso contra o malocchio. No dialeto, é chamada pietra di strigamento. |
É importante dizer também que existiu
um componente social da crença do mau-olhado, que foi a insatisfação de uma
população sofrida, acometida pela pobreza, pela fome, pela dificuldade de
diversas ordens, e que precisava, num contexto de repressão da religião
institucional e de negligência do Estado, encontrar algumas justificativas,
ainda que vagas, para os seus sofrimentos. Certamente tempos de dificuldade
podem favorecer a impressão de que os outros nos afetam magicamente de maneiras
prejudiciais. Entretanto, para além de todas as explicações sociológicas,
psicológicas e antropológicas que já tentaram tecer para a cultura em volta do malocchio
e seus equivalentes em outras etnias da raça humana, o mau-olhado ainda
permanece até os dias de hoje como um fenômeno real, palpável e plenamente
compreensível para aqueles que possuem algum esclarecimento espiritual ou que
detém, tradicionalmente, os meios para identificá-lo e anular os seus efeitos.
Isto nos lembra que muitas superstições e costumes entendidos pelas gerações
modernas e globalizadas como crendices ultrapassadas guardam em si um valioso
tesouro ancestral.
E o meu palpite é de que tais
conhecimentos são ainda mais necessários no tempo em que vivemos, cheio de
exibicionismo através das redes sociais e no qual a inveja e o descontentamento
com a felicidade – ou aparente felicidade – alheia nunca foi tão
presente em nossa sociedade.
Que saibamos rechaçar o olhar
de maldição para longe de nossas vidas!
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