Interior with woman cooking over open fire - Julius Schrag. |
Texto originalmente publicado por Draco
Stellamare e Lucas Omíwálé na antiga página do Facebook em 01 de março de 2021.
Já mencionamos que a Ancestralidade existe em mais dimensões do que o culto aos antepassados propriamente dito, constituindo um conglomerado de forças ancestrais que atravessa gerações e inclui, junto aos mortos, os seres não-humanos e algumas forças divinizadas. Vamos então falar um pouquinho de uma dessas perspectivas?
Para a religião romana
politeísta, cujos pilares e ritos principais surgem com o rei Numa Pompilius
(715 a.C – 673 a.C), os Lares são as divindades de determinados lugares
relevantes para a vida pública ou privada dos romanos. O Lar Familiar, um
destes espíritos, fazia parte do Cultus Deorum (o culto dos deuses) na Sacra
Privata (dimensão privada do culto), da qual o sacerdote era o “pater
familias”, o patriarca de cada família. A opinião dos historiadores e dos
devotos é dividida entre a hipótese de que o Lar Familiar fosse um ancestral
divinizado e a de que, tal como outros Lares, ele fosse uma divindade
não-humana que guardava a linhagem familiar. De um modo ou de outro a eles é
conferida tanta importância quanto aos Di Penates, que traziam a abundância e
protegiam o patriarca e seu núcleo familiar, e aos gênios pessoais do pai e da
mãe da família, que sintetizavam o poder geracional do casal.
Não se contesta, porém, a
associação deste espírito à deusa Vesta.
Esta deusa é por sua vez
chamada de a Mãe dos Lares, pois é ela quem porta a Chama Sagrada que mantém os
clãs unidos, o amor e os demais laços que fazem um grupo de parentes ser de
fato uma família, e uma casa habitada por pessoas de fato um lar, no sentido
afetivo do termo. Esta divindade continuou sendo cultuada após a transição ao
catolicismo, agora com outros ritos e mitos, sob a roupagem da Madonna della
Luce (Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora da Candelária ou da Luz). O
mesmo processo de reminiscência do mundo pagão antigo nas entrelinhas do novo
mundo cristão ocorreu em alguns contextos com o Lar Familiar, que permaneceu
sendo mais ou menos importante no folclore de alguns locais da Europa, ainda
que sob diferentes perspectivas, nomes e significados.
Na região italiana da Emilia
Romagna, e em alguns outros lugares do norte da península, o Lar ficou
conhecido como Esta, ou Esteia, numa provável assimilação com a própria deusa
Vesta, na qual a característica da sua relação com o fogo da lareira - que deve
ser sempre nutrido - manteve-se como a parte mais importante de sua identidade.
A entidade Esta permanece como uma figura folclórica de certas comunidades e
linhagens familiares, que ainda a saúdam e dedicam a ela oferendas e pedidos de
proteção e prosperidade para a casa e a família. Não raro, o título de “anjo do
lar” substituiu o nome folclórico deste espírito, e o rosário mariano as
libações e ofertas de alimento.
Em Napoli, na Campania, e em
locais para onde os napolitanos imigraram em peso, um espírito com as mesmas
funções é ainda hoje conhecido como La Bella 'Mbrianna, uma boa fada que é a
própria essência da casa e da família. Quando a casa está bem arrumada e limpa,
ela ganha força e é capaz de dar bençãos aos moradores, mas quando a casa é mal
cuidada ou a harmonia familiar desrespeitada, ela se recolhe e um outro gênio
denominado o'Munaciello, maléfico ao bem-estar dos habitantes, passa a
predominar.
Na região autônoma do extremo
nordeste italiano, hoje conhecida como Friuli-Venezia Giulia, a sacralidade do Focolâr
(a lareira) ainda é um elemento marcante no misticismo popular, sobretudo em
regiões rurais, sendo possível encontrar descendentes de imigrantes desta
região da península que mantenham altares e imagens sacras na cozinha,
vinculadas a essa santidade do fogo doméstico. O costume de orar na cozinha,
nestas e em outras vertentes, arraigou-se e sobreviveu – com a ajuda dos
altares, velas e imagens devocionais – à substituição do fogão à lenha pelo
fogão à gás, que em certa medida retiraria a percepção do fogo sagrado como um
fogo real que precisava ser fisicamente alimentado e protegido.
Em algumas tradições de
bruxaria e magia popular de origem italiana, um altar do tipo costuma existir
na cozinha ou na sala central da casa com o mesmo propósito. Por vezes é um
altar de estética cristã sem um nome específico, mas pode acabar sendo
modificado e denominado “Lararium” dentre os praticantes que buscam retomar as
raízes politeístas de parte de suas práticas, em referência ao antigo altar de
culto dos Lares romanos.
Em nossa perspectiva, que
difere de outras que também são válidas*, o Lar Familiar é a divindade que
personifica a linhagem da família como um todo. Fazendo um exercício de
imaginação explicativa, ele seria a alma da árvore de sangue constituída por
cada um dos seres humanos e inumanos que compõem a história da família, no
presente, no passado e no futuro. A alma, portanto, da comunidade de espíritos
interligada por todas estas conexões.
Por estes e outros motivos, consideramos
que o culto ao Lar Familiar, sob qualquer uma das formas sincréticas em que ele
ainda sobreviva ou tenha sido reconstruído nos dias de hoje, é uma das formas
de culto à Ancestralidade nas tradições ocidentais que mais abrangem o seu
amplo significado: a pluralidade e comunidade.
Ancestralidade, concluímos, não
é somente quem foram seus pais ou seus avós e o que você sente por eles, mas
também e principalmente o que todos vocês e seus aliados espirituais foram
juntos, desde o primeiro ser humano existente até o último indivíduo da sua
descendência.
Para quem deseja cultuar sua ancestralidade dentro do prisma cultural de que estamos falando, o Lar Familiar talvez seja o primeiro e mais importante passo nesta caminhada.
~
Texto da autoria
de Draco Stellamare com colaboração de Lucas de Yemọjá (Omíwálé).
*Observação: existe uma categoria de lares
romanos chamada Lares Domestici, ou Lares Domésticos, que alguns grupos
identificam como outro nome para os Lares Familiaris, legando a estes um papel
de espírito guardião “fixo” na casa e do local onde a família reside, que não
acompanharia a família no caso de uma mudança, como fariam outros espíritos.
Esta perspectiva o aproxima muito do genius loci (o espírito do local) e é
coerente em seu contexto reconstrucionista da tradição romana, mas não é
compatível com a cosmovisão sincrética e historicamente posterior que foi
apresentada neste texto, própria de vertentes de stregoneria (bruxaria) tanto
tradicionais quanto modernas.
*Observação 2: especialmente sobre "La
Bella mBrianna", maiores detalhes podem ser encontrados no livro Italian
Folk Magic, de Mary-Grace Fahrun.
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