segunda-feira, 31 de julho de 2023

Dicas "intolerantes" para quem está começando



 

             O mundo da magia e da espiritualidade é uma selva perigosa, uma selva que constantemente é encarada com inocência e despreparo por quem está começando sua caminhada. Muitos coachs espiritualistas e tiktokers do ocultismo retroalimentam essa inocência e esse despreparo, dando força para tendências da espiritualidade moderna que não são lá muito saudáveis do ponto de vista dos caminhos tradicionais.

              Para ajudar você, fofo principiante, a NÃO FAZER MERDA (ou pelo menos fazer merdas menos graves e menos difíceis de reverter), bolamos esse texto com algumas dicas valiosas que podem impedir você de transformar sua vida espiritual num lixão ou numa fábrica de ilusões em poucos anos.

              Antes um DISCLAIMER: essas dicas foram pensadas para pessoas que queiram perseguir uma espiritualidade mais tradicional, levando em consideração os perigos, as responsabilidades e as preocupações gerais que caminhos tradicionais sempre tiveram e sempre terão, pois são preocupações ligadas à sua própria cosmovisão, à sua própria percepção de mundo. Muitas dessas recomendações se chocam frontalmente ao que é estimulado e celebrado por alguns caminhos modernos (ainda que não todos!). Se você não acredita que a sabedoria dos caminhos tradicionais seja válida, ou mereça consideração frente às inovações do ecletismo moderno, sugiro que nem leia. Agora, se você se encontra em dúvida sobre o que fazer, para onde ir, e quer pensar a respeito do que os caminhos tradicionais têm a dizer sobre algumas coisas, esse texto terá muitos pontos para sua reflexão! Também acredito que ele será útil se você for um praticante de caminhos modernos que “pecam pelo descuido” aos olhos dos caminhos tradicionais. Esses pontos podem ser ótimas reflexões para que você – de alguma maneira – torne seu caminho moderno mais seguro e mais apto a compreender cosmovisões ancestrais quando se deparar com elas.

              Agora vamos às dicas...

 

Dica #1 Estude a fundo antes de praticar!

 Serve para qualquer prática. Se você não souber com muita propriedade a respeito da tradição ou do caminho que você quer aprender e trilhar, facilmente vai cair na lábia de qualquer espertinho que vende fantasias na internet. Se você quer praticar bruxaria, por exemplo, comece estudando a história da bruxaria em materiais da área de história e antropologia, e só depois passe para autores tidos como referência do meio esotérico. Para esses últimos, uma boa recomendação é contextualizar de que ponto de vista o camarada escreve antes de tomar como verdades universais as ideias dele. E lembre-se: nem todo mundo que escreve livros se preocupa com a saúde espiritual dos leitores, e comerciantes de ilusões também sabem usar o rótulo de “tradicional” em seu benefício.

 Outro ponto é que através do estudo ficará cada vez mais claro o que te serve, o que tem a ver com você, e o que não tem. Com isso você economiza tempo, esforço e dinheiro, além de não começar com o pé esquerdo fazendo as coisas de maneira distorcida ou inapropriada por puro desconhecimento.

 Só que temos um problema logo no início dessa conversa... Conhecimento não é tudo. Isso nos leva à próxima dica...

 

Dica #2 Em muitos casos, só o estudo não garante porra nenhuma!

 Isso será objeto de lágrimas e chiliques por parte de alguns leitores, mas é necessário dizer: conhecer – mesmo que profundamente – uma tradição ou um grupo de tradições não te garante pertencimento nelas, salvo determinados casos excepcionais. A maioria das tradições esotéricas requer iniciação transmitida por alguém qualificado, ligado à cadeia de praticantes que transmitem aquela prática de forma fundamentada e reconhecida pelos seres espirituais que dela fazem parte. Quer um exemplo? Ninguém vira pai-de-santo de candomblé lendo livros e fazendo cursos pela internet, e isso é óbvio, mas por algum motivo não é óbvio quando o assunto são outras tradições (ex: umbanda popular, bruxarias tradicionais de lugares distantes cujo teor foi posto em livros, “xamanismos” nativos etc.), e muita gente acha que pode partilhar dos mistérios de um culto, acessar suas deidades e espíritos tutelares só estudando bastante e usando a “intenção”. É sempre necessário analisar tendo em mãos o conhecimento fidedigno sobre o caminho escolhido: o que você quer nele exige uma iniciação para que você o obtenha? Se sim, não adianta apelar para o modus operandi da bruxaria eclética e tampar o sol com a peneira – a depender do que você fizer, dos seres que tentar invocar ou dos rituais que tentar reproduzir sem autorização para tal, o rebote pode acabar com você. Nos casos mais brandos nada acontece, nos intermediários você assina um cheque em branco para potenciais estelionatários do mundo espiritual, e nos mais extremos você termina como um coitado que encontrei uma vez na internet reclamando que após fazer um ritual de autoiniciação na kimbanda ele começou a ver vultos e a sangrar pelo pênis.

 Mas tudo bem, pondo de lado a exigência de pertencimento tradicional para certas coisas, existem formas de iniciação vertical e existe a – sempre bom frisar, arriscada – possibilidade de um caminho solitário na bruxaria, caso essa seja a opção do freguês. Isso nos leva à próxima dica...

 

Dica #3 Ponha-se no seu lugar!

 Pode ser duro de ler algo assim, mas se você está começando sua caminhada espiritual agora muito provavelmente você não tem poder pessoal nenhum. Evite acreditar nessas revistas e livros que te ensinam a visualizar o poder emanando das suas mãos e operando maravilhas desde o primeiro dia de leitura. Não é assim que funciona. A maioria das pessoas não vem com “poder” de fábrica, elas o recebem por meios iniciáticos horizontais e verticais em vários momentos e contextos de suas jornadas. Existem também processos de cultivo e fomentação do poder espiritual, mas eles não envolvem única e exclusivamente a visualização de luzes coloridas e o foco mental, pois o poder é algo que se relaciona com o corpo físico e com a alma, e não somente com a mente consciente. Antes de se meter a criar coisas com a sua “energia” como recomenda a maioria dos livros de magia, preocupe-se em se fortalecer espiritualmente, em criar laços de comunhão com o divino e com sua ancestralidade. Essas são etapas essenciais para que alguma firmeza seja conferida aos seus primeiros passos mágicos, sejam eles quais forem.

 Com o tempo, um culto sério e embasado e uma comunhão real com a ancestralidade devem trazer algum empoderamento inicial que pode começar a ser usado com práticas mais simples.

Agora você se pergunta, ok, mas como eu me conecto ao divino e à ancestralidade de forma adequada?

 

Dica #4 Procure o divino numa tradição religiosa ou esotérica com raízes profundas

 Esse é um outro ponto muito complicado de abordar sem ferir os sentimentos das pessoas. Eu acredito e defendo que o sagrado de forma geral está ao alcance de todas as pessoas, independente de seu caminho, mas, quando pensamos na relação de comunhão com a divindade que é o tipo de relação que sustenta muitas das tradições de bruxaria, estamos pensando em algo mais denso e mais complexo do que só intenção e fé. Caminhos tradicionais, sejam eles religiosos ou esotéricos, possuem mecanismos estabelecidos há muito tempo para o contato com o divino e para o contato e intermédio com o mundo espiritual como um todo. Esses mecanismos baseiam-se na simbologia da própria tradição, que se comunica com as suas origens sobre-humanas e por isso são como chaves de acesso ou “números de telefone” para fazer contato com o mundo espiritual de uma determinada forma. Novas chaves podem surgir, mas esse é um processo complexo, que se torna perigoso e improvável de acontecer quando o interessado é alguém que está começando sua caminhada espiritual, ou quando ele é alguém que tenha trilhado por muitos anos uma caminhada fantasiosa e insalubre.

 A melhor forma de aumentar a certeza de que sua ligação com o divino é real, a meu ver, é buscar a relação devocional com ele através de uma tradição religiosa ou esotérica que seja bem consolidada, que tenha um lastro ancestral e uma doutrina passível de fornecer alguma segurança cosmológica aos devotos (aliás, voltaremos à questão cosmológica mais à frente). Isso é importante porque através dessa relação, elementos de uma cosmovisão coesa podem ser assimilados, e a relação com o divino e com outros elementos da tradição poderão enriquecer a caminhada pessoal, aumentando as possibilidades de que um futuro caminho solitário seja coeso e mantenha vínculos reais de comunhão com o sagrado.

 Mas, além do divino, a ancestralidade também é importante...

 

Dica #5 Faça um culto ancestral domiciliar e busque amparo de quem saiba fazê-lo bem-feito

 Nem todas as tradições religiosas prescrevem um culto ancestral ou uma veneração aos mortos, mas muitas o fazem. A comunhão com a sua ancestralidade é um primeiro passo na arte de lidar com o mundo espiritual. Ninguém é filho de chocadeira, o que significa que todas as pessoas têm seres em sua linhagem ancestral que se importam com a segurança e a saúde de seus membros. Uma linhagem familiar é como uma árvore de sangue e espírito, que se enxerta e se divide com outras árvores ao longo do tempo e do espaço. Nesta árvore estão contidas as almas das pessoas de sua ancestralidade passada e de sua futura descendência. Nela também estão os seres que regem a linhagem, que receberão nomes e cultos distintos em cada tradição. Mesmo as famílias mais desestruturadas possuem alguém apto a ajudar em sua ancestralidade e, por vezes, diversos problemas familiares ou mesmo pessoais são revelados como frutos de problemas da ancestralidade, que com um devido culto e uma devida reverência podem ser resolvidos ou ao menos atenuados.

 Os ancestrais mais poderosos de uma linhagem tornam-se com frequência aliados espirituais de um praticante sério de magia, enquanto os seres tutelares da ancestralidade e a coletividade dos antepassados reverenciados constituem uma linha de defesa e de aconselhamento espiritual preciosa. Para ter acesso a esses contatos de forma útil, contudo, você precisa tomar orientações corretas sobre como honrar sua ancestralidade e interagir com ela. Recomendo fortemente que busque por isso na tradição religiosa ou esotérica que escolheu para si mesmo, ou – se houver contexto para tal – na tradição religiosa de seus antepassados mais próximos (ou de 3 gerações antes de você, no máximo).

 A presença vivificada da ancestralidade em seu lar poderá proteger e orientar futuras práticas mágicas que você venha a executar, barrando intrusos, denunciando a necessidade de limpar ou consertar alguma coisa que está errada, alertando sobre presenças hostis, e até mesmo ajudando você a encontrar mais informações necessárias ao seu desenvolvimento por aí à fora. Mas, pelo lado contrário, um contato malconduzido, desrespeitoso ou pouco diplomático com a sua ancestralidade pode agravar seus problemas ao invés de resolvê-los. Outro problema possível é que, por não saber como cultuar seus ancestrais de forma correta, você termine reverenciando outras coisas que se passarão por ancestrais, raramente com boas intenções. Por isso dê preferência a um aprendizado seguro, ainda que mais lento e burocrático, do que a conhecimento rápido e raso da internet. Aliás, leva isso para a vida!

 E falando em vida, a próxima dica é necessária se você quer conservar a qualidade da sua!

 

Dica #6 Preocupe-se com sua segurança e com seu asseio espiritual!

 Você deixa sua casa repleta de lixo e juntando ratos? Aposto que não. Você sabe que isso pode afetar sua integridade física, além de comprometer muito a sua imagem perante as visitas. Por que seria diferente no campo espiritual?

 Muitas pessoas lidam com a magia e a espiritualidade como um mero conforto psicológico, algo que não apresenta riscos reais à saúde e à qualidade de vida. Ora, se você considera que o mundo espiritual e as divindades são reais, são seres objetivos e que causam impacto no mundo material, essa mesma compreensão deveria se estender aos perigos que o mundo espiritual e a magia apresentam. Seres parasitas, forças hostis, lugares amaldiçoados, mau-olhado, desequilíbrios da alma e relações conturbadas com outros seres são todos perigos reais que devem ser objeto de precaução. E lembre-se: você provavelmente não nasceu com “poder pessoal” suficiente para que só a sua intenção e a visualização de uma luz colorida te protejam de todos esses riscos.

 Busque aprender maneiras de comungar da proteção que os seres espirituais de seu caminho podem lhe oferecer. Se você segue uma tradição cristianizada a água benta, as medalhas de proteção e as orações direcionadas a São Miguel Arcanjo, São Jorge, São Bento, o anjo da guarda e outros protetores são uma forma de começar. Se você é umbandista peça proteção aos guias que se manifestam com firmeza, aprenda banhos e rezas de proteção etc. O mesmo vale para qualquer outro “paradigma” religioso: até os neopentecostais realizam práticas visando sua própria defesa.

 Um dos principais motivos para aprender a se proteger, a se purificar e a purificar o espaço em que você vive é também o motivo por trás da próxima dica...

 

Dica #7 Desconfie das suas experiências!

 Acredite em mim quando digo que você será testado!

 Pessoas que não mantêm práticas espirituais tendem a ser menos notadas pelo lado de lá do que as pessoas que as mantém. Isso tem um lado bom e um lado ruim. Vou usar uma analogia que já utilizaram comigo para explicar essa situação.

 Do ponto de vista da maior parte dos seres espirituais que interagem com nosso mundo, antes de você começar suas práticas espirituais, é como se você fosse uma pessoa andando no meio de outras tantas pessoas em um vasto campo cheio de neblina, durante a noite. Quando você começa a acender velas, fazer oferendas e invocações, seja em um caminho tradicional ou moderno, é como se alguma luz passasse a ser carregada por você, tornando-o mais visível aos seres que vagam ao redor. Se essa luz for acesa corretamente, ela será como um sinal para o divino, a ancestralidade e os amigos que você porventura tiver no mundo espiritual. Já se a luz for acesa de modo impreciso, será um sinal para qualquer coisa que esteja por perto. Em ambos os casos, criaturas nas proximidades terão interesse em se aproximar e entender o que está havendo. Algumas dessas criaturas podem satisfazer sua curiosidade e ir embora, outras mais raramente podem decidir que querem te acompanhar de modo construtivo em seu caminho, e muitas podem simplesmente vê-lo como comida! Se cada um desses seres vai conseguir o que busca dependerá inteiramente do seu preparo, do seu comportamento e de quem te auxilia nesse caminho. Se a luz foi “acesa corretamente” você já tem alguma vantagem, mas não está isento de problemas por isso.

 Indo mais precisamente à razão pela qual essa dica foi formulada, posso afirmar com certeza que em algum momento da sua caminhada algum ser tentará enganá-lo para se aproveitar da sua boa vontade, esteja você num caminho tradicional coeso ou não. Podem tentar se passar por uma deidade de seu culto, podem adentrar estátuas, ou propor negócios em seus sonhos, sugerir práticas, influenciá-lo de inúmeras formas. Portanto, questione as suas experiências, sobretudo aquelas que não forem amparadas por todo o aparato de segurança que as tradições podem conferir. Recorrer aos oráculos para confirmar a veracidade de uma experiência só vai funcionar se você ou quem te auxiliar for um oraculista muito bom e tiver meios de isolar de suas leituras as possíveis influências externas que buscarem manipulá-la. Recorrer a sinais e presságios vindos da deidade ou do espírito em questão sob a forma de “coincidências” e “sincronicidades” para confirmar a experiência também não é uma opção segura na maioria dos casos, pois qualquer ser espiritual minimamente competente poderá forjá-los, e você acreditará estar recebendo sinais verdadeiros.

 Neste ponto, preocupe-se também com o viés de confirmação e com o raciocínio motivado, duas maneiras excelentes de convencer a si mesmo de que tudo é como você gostaria que fosse. Aprender a conhecer a si mesmo, seus anseios e as muitas formas pelas quais você pode se iludir é essencial. A meditação para esvaziar a mente e conhecer seus padrões cumpre uma boa função nestes casos, mas eu diria que manter a análise/terapia em dia e proceder com cautela talvez seja até mais essencial do que ela... O que nos leva à próxima dica.

 

Dica #8 Avance com cautela e lentamente! É necessário construir uma cosmovisão coesa para que as coisas façam sentido.

 Apesar de minha aversão ao psicologismo da magia, reconheço que a mente cumpre um papel fundamental na nossa vida espiritual. Sabemos que o inconsciente adora a contradição e é responsável por muito do que ocorre em nosso dia a dia. Para Austin Osman Spare, que enraizou seu pensamento no budismo, na yoga e na bruxaria tradicional, dentre outras influências, o alinhamento da intenção consciente com a vontade (para ele subconsciente) é uma chave para a realização mágica. Apesar de ter severas discordâncias em relação ao rumo que esse pensamento tomou com a “magia do caos”, eu entendo que em origem ele tem o seu mérito, em especial quando compreendemos que – numa perspectiva da bruxaria tradicional vivenciada nos dias atuais – isso que chamamos de inconsciente não está dissociado da alma, tangenciando assim o espírito imortal e tendo conhecimento de suas vontades e escolhas.

 Da mesma maneira que é essencial algum alinhamento entre a “vontade” da mente consciente e a vontade da alma para que se faça magia, é necessário que a mente conceba a realidade de forma alinhada, superior aos paradoxos nos quais ela eventualmente se encontre. Vou dar um exemplo: não é possível ser um católico fundamentalista, ortodoxamente correto do ponto de vista da Igreja Católica, e ao mesmo tempo praticar bruxaria, umbanda ou qualquer outra prática espiritual não avalizada pelo Vaticano. Existe uma contradição de princípios e cosmovisões, onde a igreja argumenta que a magia não é cristã e opera por forças malignas, enquanto a bruxaria se julga capaz de transitar entre Deus e o Diabo sem maiores problemas, além de deter o poder de escolher ela mesma entre o bem e o mal. Essas cosmovisões opostas não se sustentam na mente de uma pessoa ao mesmo tempo sem provocar medo, insegurança e dúvida, a menos que elas sejam reconciliadas numa terceira cosmovisão, própria às tradições de bruxaria cristianizadas, que possui outra narrativa sobre a realidade, na qual a vivência com a igreja é orgânica e não exclusivista, e na qual a prática da bruxaria não é opositora à convivência com a religião hegemônica.

 Note que essa terceira cosmovisão não é um improviso. Trata-se de uma tradição em si mesma, com ideias sólidas a respeito de como o mundo surgiu, como ele funciona, como funciona o contato com os outros seres que nele vivem e quais outros seres são estes. Sem esse aparato coeso e coerente, não há como a mente se sentir segura a respeito do que está fazendo, de modo a não boicotar os próprios interesses e tornar-se vulnerável no processo. Qualquer prática espiritual ou mágica que se conduza, tem que ser JUSTIFICÁVEL sob o ponto de vista cosmológico e teológico adotados pelo praticante. Do contrário há o risco do rebote, da abertura para seres oportunistas, e de toda a sorte de crises existenciais que podem se abater sobre o indivíduo, pelo simples fato de ele estar fazendo algo de que, no íntimo, não lhe transmite confiança.

 É fundamental ter uma cosmovisão coesa, e a forma mais fácil de conseguir isso é aderir a uma tradição religiosa ou esotérica que contemple quem você é. Quando esse lugar de acolhimento não existe, tudo se torna mais difícil, mas não é impossível construir as bases de um entendimento cosmológico e teológico inteiriço e coerente, ainda que pessoal. O caminho para essa façanha passa pelo estudo exaustivo, e pela escolha de bons referenciais, mas mais importante do que tudo isso: a constância. Não dá certo tentar construir um “sistema mágico pessoal” estudando ora cabala judaica, ora luciferianismo, ora umbanda, ora bruxaria inglesa, ora paganismo eslavo, ora bruxaria italiana, ora xintoísmo e por aí vai. Com isso não estou condenando a múltipla pertença! É comum e a depender do caso até útil que buscadores da espiritualidade pertençam a mais de uma tradição. Mas a múltipla pertença não exime da necessidade de uma cosmovisão lógica, e justamente por isso ela funciona melhor quando quem adentra uma segunda ou terceira tradição já tem ampla vivência e sólida base de entendimento da primeira. Assim, o praticante pode reconhecer se a nova tradição que ele busca adentrar tem um simbolismo e um funcionamento compatível com o caminho que ele já está trilhando ou não.

 Normalmente é plenamente possível pertencer a mais de uma tradição de bruxaria com características rurais e folclóricas, mesmo quando elas são de lugares geograficamente muito distantes, pois elas têm uma linguagem e entendimentos usualmente congruentes entre si. É possível pertencer à umbanda e ao culto tradicional iorubá ao mesmo tempo, já que ambas as tradições de matriz africana possuem cosmo-percepções similares ou complementares. Mas não é possível pertencer, ao mesmo tempo, a um seguimento do hinduísmo em que não se possa consumir carne e ao candomblé, onde o abate religioso e o consumo de carne são parte fundamental da vivência da tradição.

 Retornando à constância, é esse cuidado que fará com que os conceitos de múltiplas tradições estudadas não se atropelem uns sobre os outros, construindo um megazord defeituoso ou um Frankenstein disfuncional ao invés de uma cosmovisão coesa. Mantenha-se centrado ao estudo e entendimento da visão de mundo de seu caminho, de sua tradição, ou dos bons referenciais que você optar por seguir, e foque nisso até que sua experiência tenha consolidado em você uma segurança razoável acerca de sua vida espiritual. Depois, aí sim, aventure-se a entender as demais tradições de seu interesse e você verá como o que é compatível torna-se quase que traduzível ao seu entendimento, e como o que não é compatível se evidencia enquanto tal desde o início.

 

Dica #9 Aceite que todo mundo erra!

 Com tantas recomendações complexas, que versam sobre tantos riscos e erros, não poderia faltar essa dica: todos nós somos falhos e estamos sujeitos a erros, e isso inclui os seus mestres, os seus iniciadores e os seus autores favoritos. Isso inclui eu que escrevi esse texto e você que está lendo, talvez me amando ou talvez me odiando por ele.

 É necessário desconstruir a imagem do mestre sempre sábio e imaculado que os filmes de Hollywood construíram em nós. Um mestre é somente alguém que tem mais tempo de caminhada, e por isso pode instruí-lo e guiá-lo no caminho. Essa posição não o torna isento de tropeçar (até mesmo em uma pedra pela qual ele já passou inúmeras vezes), de se perder no trajeto ou de tratar os seus alunos de forma inadequada algumas ou muitas vezes. Assim como um discípulo aprende, um mestre também permanece em constante aprendizado.

 A fantasia de perfeição que muitos grupos constroem ao redor de seus líderes/mestres é um dos maiores perigos da busca espiritual. Na hipótese mais branda, ela gera uma grande frustração quando os aprendizes são confrontados com as falhas que certamente o líder possui, levando à decepção, ao rompimento e ao conflito. Já na pior das hipóteses, esse tipo de fantasia de “guru iluminado” ou de “bruxa capaz de tudo” pode esconder fraudes, abuso psicológico e violências de toda ordem, típicas do “comportamento de seita” tão temido nas décadas de oitenta e noventa, mas que continua ocorrendo em igrejas, terreiros e covens por aí à fora.

 Não aceite figuras imaculadas e não confie em quem pareça correto demais, “santo” demais ou intangível demais o tempo todo. Se você quer aprender algo ou se inspirar em alguém, busque mestres que sejam honestos sobre suas próprias limitações, e éticos na hora de assumir e remediar as suas próprias falhas.

 E por falar em erro...

 

Dica #10 Aceite que algumas pessoas erram de propósito!

 Acreditei por um bom tempo de minha vida que o mal do ser humano era a ignorância, e que tendo acesso ao conhecimento sobre as coisas melhores decisões seriam tomadas pelas pessoas que antes agiam de modo perverso ou autodestrutivo, mas isso não é de todo verdade. Existem muitas pessoas por aí que sabem muito bem que não basta só visualizar luz colorida para se proteger de um ataque espiritual, mas elas venderão isso para os seus seguidores pelo retorno financeiro que a ideia fomenta.

 O mesmo pode ser dito – como já mencionei – de autores que escrevem qualquer coisa em livros de magia sem se importar com o efeito que as práticas propostas por eles terão em leitores leigos. Mas além do caso do farsante que sabe o que funciona e o que não funciona, mas promove para os outros o que não funciona (ou o que não é seguro) apenas pelo ganho pessoal, existe também o caso complicado da vítima que sabe que é vítima, mas permanece de livre e espontânea vontade na situação que a vitimou.

 Mais de uma vez nos deparamos com pessoas que são perturbadas por seres espirituais parasitários que elas mesmas trouxeram para suas vidas, mas que, após tomarem conhecimento da situação, optaram por não fazer nada a respeito. É algo como: “eu sei que esse espírito que se apresenta pra mim como LOKI não é de fato o deus Loki, mas eu me sinto tão bem fazendo esses rituais e sendo reconhecido por isso na internet que eu desejo continuar”. Às vezes isso vem acompanhado de cuidados paliativos, e às vezes não. Às vezes quem erra assume para si mesmo o erro, mesmo continuando com ele, e às vezes não. Em todo caso, é como alcoolismo, vício em drogas pesadas ou maus hábitos diversos: você sabe que te faz mal, mas prefere não pensar a respeito e continua fazendo, porque o conforto imediato é mais importante do que a saúde e a lucidez (sua e das pessoas próximas) no longo prazo.

 Pode ser extremamente difícil se desvencilhar desse tipo de situação, porque sem experiência, sem percepção espiritual aguçada, pode ser difícil perceber o erro e os perigos envolvidos num ritual ou num grupo que transmitem uma imagem simpática e “descolada”. Isso se torna mais complexo quando concebemos que muitos seres que se aproveitam de tal situação são capazes de criar ilusões muito convincentes.

 Como evitar se amalgamar a gente que erra de propósito? É simples, mas ao mesmo tempo difícil. Você deve evitar o apelo social e sentimental da vivência em grupo. O motivo mais importante e inegociável da sua participação num grupo de prática mágica ou religiosa deve ser necessariamente sua vida espiritual. Amizades e relacionamentos de outra ordem, se ocorrerem, são um bônus. Mas não se permita ficar num ambiente nocivo à sua saúde espiritual pela necessidade de afeto, de socialização, ou pelo bem-estar que as pessoas possam proporcionar a você.

 Pensando nisso eu acrescento uma última dica extra a esse rol que elaboramos.

 

Dica #Extra à Não permita que a miséria de outras pessoas se torne a sua.

 O ser humano é complexo.

 Ele é capaz de desejar praticamente qualquer coisa, boa ou ruim, com consciência ou não. Muitas pessoas não estão psiquicamente bem resolvidas ao nosso redor, seja no contexto da vida religiosa, familiar ou no trabalho. Se você deseja trilhar um caminho espiritual saudável, aprenda a reconhecer até que ponto se estende a sua responsabilidade sobre sua própria vida e sobre as coisas ao seu redor, e em que ponto começa a responsabilidade do outro. Por mais que seja triste dizer isso, haverá situações em que você desejará ajudar uma pessoa querida, mas verá que a raiz dos problemas dela são suas próprias escolhas. Nesse sentido, nada pode ser feito se quem precisa de ajuda não quiser ser ajudado.

 Na complexidade do que é ser humano, não permita que o emaranhado de problemas de outras pessoas te enrosque e te aprisione. Saiba estabelecer limites, mesmo que isso te custe uma amizade ou um relacionamento. Nem sempre é fácil reconhecer que uma pessoa está na bosta há anos por escolha própria. Muitas pessoas olharão em seus olhos chorando e dirão que querem melhorar, mas as atitudes delas – quando cuidadosamente examinadas – demonstrarão que há nelas a convicção (consciente ou não) de ficar estacionadas no mesmo lugar. Se você não soltá-las para seguir o seu caminho, quem ficará estacionado é você.

 A magia e a espiritualidade precisam te fornecer caminhos para melhorar sua vida, para aumentar sua prosperidade – no sentido de te dar meios para suprir suas necessidades essenciais e de atingir bem-estar –, e para te ajudar a superar os seus obstáculos e misérias. Todos passam por problemas (até os melhores magistas) e a prática da compaixão e do auxílio ao próximo são grandes virtudes a serem desenvolvidas, mas não permita que a miséria dos outros se torne a sua!

 


Mentira, tenho bastante...

 Essas foram as dicas mais relevantes que pudemos pensar para quem está começando na caminhada espiritual. Você talvez tenha discordâncias em relação a vários pontos aqui destacados, e se tiver isso é muito bom! É um sinal de que você não assume como verdade aquilo que te falam na internet sem reflexão e pesquisa posterior. O que eu gostaria de pedir com muito carinho é justamente isso: reflita sobre o que busquei transmitir através dessas dicas e pense em quais são seus objetivos na caminhada espiritual. Compare o que eu disse com o que é dito na maioria dos livros de magia, nos manuais de faça-você-mesmo e em vídeos do TikTok. Compare o que eu disse com o que dizem os sacerdotes e praticantes de tradições ancestrais a respeito de suas práticas. Assim você já estará apurando seu senso crítico de alguma forma, e sei que independentemente das conclusões que você tire de todo esse trabalho sua vida há de ficar um pouquinho mais fácil com essa habilidade do que seria sem ela.

 Há um provérbio latino que diz: “a sorte favorece os ousados”. Portanto, ouse questionar, ouse buscar para além do senso comum, e tomara que a sorte assim o favoreça!



Fortuna - Jean-françois Félix Armand Bernard (1829-1894).



6 comentários:

  1. 🔥Um portador do archote vc é digníssimo!! Abençoado seja!!! Mágicas palavras!!

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    1. Muito obrigado pelas palavras gentis! Que as bênçãos sejam mútuas :)

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  2. Bruno , vc tem razão em tudo que escreveu. Em boa hora foi divulgado. Conheço pessoas de todos os tipos e isso vai bem para todas elas.Agradeço sempre .

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  3. Oi Draco meu nome é Leandro a alguns anos comecei a jornada na magia tradicional ancestral Italiana, visto os vídeos da trilha folclórica cheguei aqui, gostei muito das suas dicas refletirei sobre elas e que elas me ajudem a fortalecer esse caminho

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    1. Fico feliz que o texto está sendo útil! Abraços e boa sorte no seu caminho :)

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