quinta-feira, 2 de novembro de 2023

CULTO ANCESTRAL – Parte 1: Teoria

Por Draco Stellamare



Vanitas Still Life (ca 1665-1670) - Jan Van Kessel


Uma árvore separada de suas raízes seca e morre. Ela se tornará matéria orgânica para enriquecer o solo onde outras árvores podem um dia surgir, mas aquilo que ela foi um dia será esquecido neste mundo. Não é por acaso que pensamos em linhagem familiar como uma árvore. Tendemos a organizar a genealogia dessa forma, mas frequentemente o fazemos como se o indivíduo no tempo presente fosse o “tronco”, do qual seus antepassados brotam como ramos, e na realidade é justamente o oposto: eles são nossas raízes, adentrando o mundo ctônico dos seres que estão mortos, enquanto a nossa descendência sanguínea e espiritual são os ramos que se erguem a partir de nós. Um não pode existir sem o outro: raízes, tronco e ramos superiores formam uma árvore completa. Por sua vez, as árvores interagem umas com as outras, tanto acima da terra quanto embaixo, formando uma rede de trocas e amálgamas da qual conhecemos muito pouco a respeito.

As ancestralidades se comportam à exata maneira das árvores em nosso mundo. Algumas são vistosas, floridas, e produzem bons frutos, outras são carregadas de espinhos. Cada uma possui uma natureza própria. Algumas crescem muito e perduram por séculos, e outras minguam e morrem com facilidade. Algumas precisam de sol e outras só crescem à sombra de árvores maiores. Algumas sobrevivem razoavelmente bem isoladas, e outras precisam de semelhantes ao seu redor para atravessar a existência.

Penso que o culto à ancestralidade – sob diversas óticas, mas especialmente através das lentes da bruxaria – requer um entendimento dessa natureza ancestral. Mais do que simples oferendas aos mortos pelos mortos (o que já é grande coisa quando é corretamente executado) precisamos entender o nosso papel no organismo vivo que formamos com os nossos antepassados e os nossos futuros descendentes, diretos ou não. É entendendo que somos mais do que uma coincidência cósmica, mais do que um grupo de almas que calhou de encarnar em sequência, que podemos esperar usufruir das coisas boas que nossa ancestralidade carrega, e vislumbrar alguma perspectiva de solucionar as suas mazelas.

Como muitos dos que procuram o caminho da bruxaria pouco sabem a respeito de um culto à ancestralidade, pretendo abordar nesse texto alguns de seus aspectos básicos. O que são os ancestrais e como comungar com eles? Quais práticas são adequadas para reverenciá-los? Quais seres espirituais intervêm mais incisivamente em questões familiares? Essas são algumas das perguntas que eu espero responder segundo a posição da minha tradição de bruxaria, acompanhada dos insights que eu recebi de outras tradições das quais comungo. Não será uma tarefa simples, e não acredito que ela seja incontroversa entre os leitores, dado o quanto se fala no assunto nos últimos tempos e a diversidade de correntes de pensamento envolvidas... Pensando especificamente em dar alguma luz a quem pouco ou nada sabe e se afiniza com o meu caminho e sua forma de ver as coisas, vou dividir essa apresentação em uma parte teórica e uma parte prática, que juntas fornecerão algumas boas diretrizes para um leitor leigo e interessado começar a entender o universo ancestral e suas possibilidades através das lentes que possuo.

Sugiro aos interessados que mantenham a mente aberta na leitura da parte teórica, buscando desconstruir alguns preconceitos e conceber o tempo de uma forma não-linear, mais orgânica e cíclica do que a que foi incutida em nosso pensamento por movimentos esotéricos da modernidade e pelo kardecismo. E sugiro que na parte prática observem à risca alguns dos alertas e recomendações que serão feitos, sem perder a compreensão de que tudo que foi escrito por mim reflete a minha realidade, e como tal deve ser adaptado às necessidades e características da sua própria ancestralidade e prática espiritual, sempre com bom senso.

Tendo feito essa introdução, podemos começar com o básico...

 

O que é um ancestral?

O destino dos mortos é sempre uma questão delicada. Algumas doutrinas falam em reencarnação e outras na vida eterna, mas nenhuma resposta “simples” parece satisfatória quando nos deparamos com a realidade como ela é. E nenhuma resposta simples pode ser dada sobre essa questão, porque nossa constituição espiritual também não é simples. Toda explicação sobre esse assunto é parcial e toma como viés um ponto de vista dentre inúmeros que são possíveis para observá-lo. A formação disso que somos enquanto “seres humanos vivos” envolve o amálgama de muitas partes, e a depender de qual delas você considerar que é você de verdade o ponto de referência sobre questões como reencarnação, transmigração do espírito ou a continuidade da existência da consciência sob uma forma “etérica” pode mudar drasticamente.

Concebemos de modo resumido que o ser humano é um corpo físico habitado por uma alma – usualmente delineada por um corpo espiritual –, e ambos, tanto a alma quanto o corpo físico, são animados por um espírito imortal. Esse espírito imortal é simbolizado pelo sagrado coração, cuja chama ardente é a quintessência, a essência divina pura que habita em todas as coisas. Ele pode ser pensado como um fragmento da primeira consciência, o universo experimentando a si mesmo, entre outras definições... Se o espírito imortal é tido como a parte de nós que existe na eternidade, o mesmo não se pode dizer da alma e do corpo. Quando uma pessoa morre, e a alma conserva consigo o seu sagrado coração, é isso – essa alma ainda dotada da singularidade divina – que na maioria das vezes nós consideramos como o “espírito de um ancestral” propriamente dito. Ele é autoconsciente, autônomo e num certo sentido completo como um ser humano encarnado – e usando alguns dos conceitos de um autor que eu gosto muito, Jason Miller, posso dizer que neste caso é apenas uma consciência que não é mais orientada para a matéria, mas sim para o espiritual. Nesta situação, é como se a vida apenas continuasse numa nova realidade, regida por outras leis naturais. Ocorre que muitas almas não conservam este estado de união com o espírito imortal por muito tempo após a morte. Diversos fatores podem fazer com que a sobrevivência da ligação entre a alma e o sagrado coração seja mais provável ou menos provável, e outros tantos fatores podem fazer com que essa ligação dure menos ou mais.



Sagrado Coração em vitral. Fonte desconhecida.


De uma forma geral, concebemos que a maior parte dos mortos permanece numa zona intermediária onde as suas almas conservam o espírito imortal por algum tempo, durante um período no qual grande parte delas reside nas muitas moradas no mundo inferior – a Mansão dos Mortos ou Inferno, se preferir. Há lugares bons e ruins no mundo dos mortos, lugares onde as almas usufruem de uma pós vida serena, lugares inóspitos onde as mentes dos falecidos definham lentamente, e lugares onde as almas são atormentadas por outros seres da exata maneira que mostram as ilustrações cristãs do purgatório. A crença sustentada durante a vida costuma direcionar as almas ao “submundo” ao qual melhor se encaixem. Mas este é um assunto delicado e complexo. O que nos cumpre abordar neste texto, é que a maior parte dos mortos eventualmente encontra, mais cedo ou mais tarde, o desfazimento da ligação entre a alma e o espírito imortal. Depois que essa ligação é desfeita, o espírito imortal segue um rumo ditado por forças que não compreendemos totalmente, podendo animar outras possibilidades de existência de si mesmo neste ou em outros mundos. A alma, despossuída do espírito divino, eventualmente perece. Isso é chamado de segunda morte, e pode ocorrer de inúmeras formas. É o fim da personalidade construída durante a existência física do ser humano. As memórias e a identidade que essa personalidade possuía ainda existirão no seu espírito imortal, mas não serão mais do que uma dentre outras tantas experiências que nele se acumulam. Na segunda morte a força espiritual da alma se dissipa, sendo reciclada pelo Cosmos, e a sua consciência adormece para sempre no vazio.



Virgem do Carmo Salvando as Almas do Purgatório - Séc. XVII, Autor desconhecido.
A ação dos anjos que recolhem as almas é uma referência ao papel de Miguel como psicopompo.


Disso você pode concluir que não existe esperança e que nada além de uma sobrevida escassa nos aguarda após a morte, mas isso não é verdade. Uma parcela dos mortos é capaz de manter a ligação da alma com o espírito imortal indefinidamente, enquanto buscam a apoteose que alguns caminhos chamam de deificação, outros de iluminação, e que nós chamamos de coroa da vida eterna, surrupiando o conceito de união perene com Deus, essencial ao catolicismo hegemônico. Ao atingir essa apoteose, a alma torna-se integralmente parte do espírito divino, divinizando-se, e se tornando capaz de se manifestar na existência de qualquer maneira desejada, em qualquer tempo ou local, e sob qualquer forma. A alma divinizada pode também seguir além da criação, para a eternidade desconhecida, sem limitações.

Os mortos que possuem poder espiritual suficiente para conservar de forma constante a ligação entre sua alma e seu espírito imortal, obtendo também o poder de livre trânsito entre o mundo dos mortos e o nosso mundo, são os que na nossa bruxaria chamamos de Antigos, e que outras vertentes denominam “mortos poderosos”. Enquanto as almas comuns que continuam suas vidas no mundo inferior podem ou não atingir um dia a deificação, os Antigos costumam caminhar de forma feroz e determinada rumo a esse objetivo, e não raro auxiliam seus descendentes vivos (em especial os que pertencem à mesma linhagem bruxa que eles) a fazer o mesmo.

Essa compreensão que expliquei acima nos deixa com três categorias principais de seres espirituais para levar em consideração:

1.       Almas comuns de nossos antepassados, que ainda possuem seu sagrado coração e podem tanto passar pela segunda morte quanto adentrar (no além) um caminho que leve à vida eterna.

2.       Almas dos Antigos, que detém poder suficiente para continuar existindo de forma autônoma e transitar livremente ao menos entre o mundo inferior e o nosso mundo, e cujo objetivo final é a apoteose.

3.       As possibilidades que restam: (I) Almas despossuídas de seu espírito imortal, tornadas meras cascas mentais e etéricas, vazias de essência, cuja consciência perdura por um tempo e depois se desfaz se não passar por processos de transformação muito específicos. (II) Memórias dos antepassados preservadas de forma atávica, e, também preservadas em locais específicos do mundo espiritual. (III) Memórias dos antepassados preservadas em locais, objetos e situações, às quais muitos hoje em dia chamam de formas-pensamento, espectros ou simplesmente assombrações.

Estas três categorias de seres do amplo espectro da ancestralidade são impactadas por um culto ancestral, e por isso vou abordá-los nos próximos itens deste texto com um pouco mais de atenção. Além deles, existem outras figuras que se enquadram como ancestrais, entre elas estão os gênios familiares – espíritos tutelares de uma linhagem ou de um núcleo familiar específico – e os seres espirituais não-humanos que por questões iniciáticas ou de parentesco espiritual, pertencem à linhagem familiar de uma pessoa. Tentarei explanar um pouco sobre estes também, embora sua presença seja mais incomum e diversificada do que os primeiros que comentei.

 

Os Antepassados e a Árvore de Sangue e Espírito

Acredito que a melhor palavra para designar os ancestrais comuns que residem na Mansão dos Mortos seja simplesmente “antepassados”. É o que eles são: entes que passaram por este mundo antes de você. Quando falamos de antepassados de linha vertical ou linha direta, falamos dos que possibilitaram a sua existência carnal doando uma parte de si mesmos: pais, avós, bisavós, trisavós e assim por diante, até o primeiro ser humano de sua linhagem. Quando falamos de antepassados de linha horizontal ou indireta, falamos dos muitos que representam ramificações da sua própria linhagem: tias e tios, primos e primas... Embora todos estejam interligados, o impacto da influência ancestral é maior na linha vertical ou direta do que na horizontal ou indireta. Os filhos são a continuidade física dos pais, e daqueles que vieram antes dos pais, e não há como descrever de forma suficientemente assertiva o peso desse fato. Basta observar quantas coisas – boas e ruins – nossos corpos carregam como herança daqueles que nos precederam.



Pintura que relaciono aos antepassados.
Autoria não encontrada.


Quando deixamos o modelo de tempo linear para trás, e observamos o tempo e o espaço como um círculo espiralado, uma roda que gira em sucessivos ciclos naturais, vemos que a linhagem familiar se espalha pelo tempo-espaço como uma árvore, como um único organismo vivo, formado por muitas células que são os corpos de incontáveis gerações de seus membros. Eu sou um ser individual no presente, porém, de uma perspectiva mais ampla, eu sou um com todos os antepassados que vieram antes de mim. Sob essa perspectiva, em última instância, a humanidade é como uma única planta, dividida em muitos ramos interligados que são as linhagens familiares. A essa conexão física, que faz com que os corpos dos membros de uma linhagem sejam vistos como um mesmo organismo vivo espalhado através do tempo e do espaço, damos o nome de Árvore de Sangue.

Ocorre que, como o título dessa parte do texto já indicou, não somos feitos somente de matéria, mas também de alma e espírito. Tal como o corpo físico possui um “duplo” que define a forma da alma e carrega o espírito imortal, o mesmo ocorre com a Árvore de Sangue, que possui um duplo espiritual próprio. Esse duplo é o que muitos chamarão de ancestralidade primordial ou comunidade espiritual, e para nós é a Árvore de Espírito. Enquanto a Árvore de Sangue é a união de toda a matéria que forma você, seus ancestrais e seus descendentes, a Árvore de Espírito é a união de todas as almas que fazem parte de sua linhagem, e o vínculo de afinidade que existe entre os espíritos imortais de todos os seus membros. Ambas as árvores estão vinculadas numa única estrutura, pois tal como um espírito imortal pode habitar em diversas almas encarnadas em diversos corpos, uma família espiritual pode se “encarnar” em diversas linhagens de sangue. Em síntese, você possui uma família espiritual, formada ao menos por uma parte da sua família de sangue. Essa família espiritual encarna em diferentes linhagens sanguíneas mundo a fora, às quais ela tenha acesso pela história de sua ancestralidade. Assim como os corpos possuem parentesco, também as almas e o espírito imortal possuem parentesco entre si. E geralmente esses parentescos se sobrepõem. Daí as frequentes compreensões de que a reencarnação ou renascimento (para alguns uma mera metempsicose e metemsomatose – um renascimento de características da alma ou do corpo, respectivamente) se dão sempre dentro da mesma linha familiar.


Tentativa de simbolizar de forma simplificada a relação entre as árvores
 de sangue e a árvore de espírito de uma mesma ancestralidade.


É através da Árvore de Sangue e Espírito, a continuidade física e espiritual formada entre nós que estamos vivos e os nossos ancestrais, que os antepassados comuns, residentes no mundo dos mortos, podem nos abençoar ou amaldiçoar, influenciando em nossas vidas para o bem ou para o mal, tal como nossas ações e palavras também os influenciam no túmulo. O processo de comunhão com estes antepassados trata-se de um processo de ressonância espiritual, como o que ocorre ao pronunciar nomes divinos da maneira apropriada, e além dessa ressonância, ocorre de forma paralela um processo de ligação simpática (ou magia simpática) entre mortos e vivos conectados pela via ancestral. Os filhos são testemunhos de seus pais e avós através do sangue e da força espiritual hereditária que compartilham entre si. Tanto na ressonância quanto na ligação simpática, a presença do antepassado em nosso mundo não é necessária. Ela pode ocorrer, mas isso normalmente é uma dentre duas alternativas: pode ser uma benesse concedida por seres espirituais capazes de levar e trazer os mortos de volta ao mundo dos vivos, por quaisquer razões que eles entendam necessário fazê-lo; ou pode ser o fruto de um ato de necromancia. Por necromancia, como ficará claro num próximo item deste mesmo texto, não consideramos “qualquer prática devocional ligada aos mortos” como se tornou usual, mas sim, segundo uma definição mais precisa, os atos de magia que visam erguer as almas dos mortos do túmulo ou conjurar forçosamente a presença de um morto (não somente a ressonância) para finalidades objetivas.




Tendo explicado essas questões, é justo dizer que os antepassados comuns nos afetam através da coletividade que formamos com eles. A reverência que a eles é dedicada, portanto, deve também passar por essa coletividade. Essa é a razão pela qual é mais significativo e útil direcionar suas devoções ancestrais à coletividade de seus antepassados do que a cada um dos mortos individualmente. Isso não significa que a veneração dos antepassados importantes não seja digna e necessária, mas em primeiro lugar, é necessário voltar suas atenções ao corpo coletivo que vocês habitam em conjunto. Na parte prática, veremos como manter uma rotina de oferendas e orações que honre de forma apropriada essa coletividade, além dos próprios antepassados que por quaisquer motivos você deseje cultuar.

 

Os Antigos, ou “mortos poderosos”

O uso do termo “Antigos” faz referência ao fato de que muitos desses ancestrais conseguiram conquistar um estado de autonomia que os permitiu intervir diretamente nos assuntos dos vivos por décadas, séculos, às vezes milênios. Mas, é claro, isso não significa que todos eles morreram há muito tempo. Temos conhecimento de pessoas que se tornaram ancestrais poderosos capazes de intervir para ajudar os vivos na mesma semana de seu falecimento.

O poder espiritual é necessário para que uma alma se consolide como um ancestral poderoso e seja capaz de transitar entre os planos de existência, e de afetar diretamente as questões do mundo material, e esse poder se consolida de diversas formas. Uma dessas formas é a relevância político-social do morto, à qual tenha sido atribuída pela sua comunidade uma dimensão espiritual – esse costuma ser o caso de ancestrais veneráveis de diversas comunidades tradicionais pelo mundo a fora, que não raras vezes realizam rituais para divinizar seus mortos relevantes. Outra possibilidade é que esse empoderamento se dê pelo desenvolvimento espiritual, seja de forma espontânea – através de processos orgânicos de comunhão com o mundo espiritual ao longo da trajetória do morto quando era vivo – seja de forma iniciática e determinada, como costuma ser no caso dos Antigos da bruxaria e de outros caminhos que possuam um viés esotérico.



Vanitas Still Life (1667-1726) - Herman Henstenburgh.


Falando especialmente de um caminho de bruxaria, os Antigos constituem os ancestrais da tradição que obtiveram êxito em aprender a magia e angariar poder através das muitas relações estabelecidas com as potências naturais e os seres espirituais ligados àquele caminho. Eles formam uma corrente iniciática, uma verdadeira sociedade no mundo espiritual, a stregonesca società – conceito que algumas tradições denominariam de forma genérica como A Companhia Oculta. A ordem de relação que se deve estabelecer com eles – e em minha opinião com todos os demais ancestrais poderosos – é a de reverência pela sabedoria e pela força que eles conquistaram. Muito do aprendizado que se busca sobre a espiritualidade vem destes espíritos, que costumam ter interesse em iluminar o caminho para que os seus descendentes (seja por linha familiar ou iniciática) encontrem as mesmas vias de empoderamento que eles. Quanto mais membros de uma Árvore de Sangue e Espírito se empoderam, mais forte, como um todo, essa árvore se torna. Deste modo, os Antigos podem ser os maiores mestres e os maiores iniciadores dentro da senda bruxa. Infelizmente, contudo, as pessoas tendem a esquecer que eles também são (ou pelo menos foram) seres humanos como nós, que embora estejam num patamar deveras mais elevado de capacidade espiritual ainda têm suas próprias convicções, suas qualidades e seus defeitos. A relação com eles não deveria ser vista como uma relação distinta daquela que estabelecemos com nossos familiares e nossos iniciadores vivos, pois ela pode usufruir dos mesmos tipos de benefício e padecer dos mesmos males.

Quando falamos de ancestrais poderosos de uma linhagem que não envolve bruxaria, as coisas ainda assim são de certo modo similares, mas envolvidas por outros valores, crenças e costumes. Excetuando os casos em que as “ovelhas negras” da família pavimentam um caminho individual totalmente diferenciado, os Antigos de uma linhagem “ortodoxamente” cristã serão em geral pessoas que obtiveram um desenvolvimento espiritual muito grande através da fé que professavam. Não convém chamá-los de bruxos só porque eles possuem poder espiritual elevado. O mesmo se aplica a ancestrais poderosos que foram umbandistas, muçulmanos, budistas etc. O poder nunca foi exclusividade de uma única tradição, ou de uma única forma de viver.

A intervenção que os Antigos podem realizar no nosso plano de existência é ampla. Eles são capazes de nos proteger, nos orientar, nos ajudar com curas, com demandas contra forças hostis e com a própria prática de magia, e são igualmente capazes de nos castigar conforme entendam devido. Tal como pessoas vivas de grande poder, seus atos podem ser nobres ou infames. Muitas vezes, a manifestação dos Antigos é espontânea. Eles nos avisam sobre problemas que podemos encontrar em nosso caminho, sobre ataques espirituais e questões que eles considerem relevantes. Tal como acontece com os seres chamados de “mentores” ou “guias” em outras vertentes da espiritualidade, os Antigos podem exercer um papel de centralidade na prática espiritual de uma pessoa, fazendo sua presença notável, e seus ensinamentos um centro precioso de orientação.



Macbeth vê o Fantasma de Banquo - Théodore Chassériau (1819-1856)


Nem sempre os Antigos conservam a aparência que tinham quando faleceram, o que os distingue da maioria dos outros mortos. Com o poder espiritual vem a capacidade de refletir uma imagem mais condizente com as suas faculdades e preferências. Não raro os mortos poderosos que morreram com idade avançada passam a se apresentar como eram na juventude, em pleno vigor físico e mental... Isso obviamente não é uma regra, e depende de visão de mundo e valores estéticos mais do que de uma norma universal. Em alguns casos, é possível que um ancestral poderoso tenha passado por processos de comunhão com outras forças espirituais que o tornam algo semelhante a um demônio, a um espírito não-humano. Nestes casos o ancestral passa a apresentar características destes seres, traços que consideramos como animalescos, ctônicos ou até mesmo traços que consideramos angelicais. É o caso de algumas pessoas que morrem em rios e poços sagrados, e são empoderadas pelos seres espirituais do local. Algumas dentre as aganis (as ninfas da região friulana) são mulheres que encontraram a morte em locais sagrados aos espíritos da água. Importante frisar que esse tipo de “encantamento” do ancestral poderoso que se transforma num ser não-humano não é a mesma coisa que o nascimento de seres espirituais distintos a partir da alma despossuída de espírito imortal. Neste segundo caso, há somente uma reminiscência do ser humano que foi aproveitada por outra consciência, alheia e muitas vezes hostil à humanidade.

Como as metas mais usuais dos Antigos envolvem algum tipo de trajeto até a apoteose, é possível que alguns desses ancestrais sejam percebidos como seres que estão adentrando num patamar semidivino, próximo à ideia que temos dos santos, e outros ainda (mais raramente) compreendidos como seres plenamente divinizados. Sendo este um assunto muito complexo, meu único comentário a respeito é uma simples constatação: se algum ancestral de sua linhagem – familiar ou iniciática – tiver obtido a deificação plena, isso será óbvio e indiscutível. No mais, evite supor que sabe onde eles estão indo, ou o quão “evoluídos” rumo a este objetivo eles estão. Nossa percepção da realidade é bem mais estreita que a deles... E não é difícil que nossas conjecturas sejam vistas como insolência.

 

Os Gênios Familiares

Após falar dos antepassados e dos Antigos, e antes de adentrarmos figuras mais complicadas, é importante falar dos espíritos tutelares da ancestralidade. Em diversas tradições, estas figuras têm um relevante papel de zelar pela proteção da casa e da família, mediando, por vezes, o contato com a comunidade dos antepassados. No universo romano antigo este papel – segundo se acredita – passava pelos Lares, pelos Penates e outros genii domésticos que representavam potências necessárias à soberania e ao bem-estar da família – tida como uma unidade religiosa no Cultus Deorum. No mundo eslavo, sobrevive ainda hoje a figura do Domovoi ou Domovyk, conhecido como pequeno-avô. Esse ser com as características de um pequeno duende cumpre as vezes de protetor da lareira e guardião da casa, motivo pelo qual é convidado para se mudar junto da família quando é necessária uma mudança de casa. Nas tradições mágicas da região de Napoli o principal ser que assume o papel de guardião da casa é uma fada denominada La Bella Mbrianna, excessivamente preocupada com o estado de organização e limpeza do ambiente. Figuras semelhantes a estas, com outros nomes e características singulares são encontrados em tradições por toda a Itália e em outras partes do mundo.



Lararium romano antigo. Fonte site Ostia Antica.



Domovoi. Autoria não encontrada.


Em minha tradição e em diversas outras cujo eixo central está enraizado no extremo nordeste italiano – seja nas montanhas Dolomitas ou na planície litoral da área vêneto-friulana – há uma presença preponderante do próprio focolar (termo traduzido como lareira ou fogo do lar) e de duas entidades conhecidas como Mari e Pari, Mare e Pare, ou ainda Mater e Pater, significando “mãe” e “pai”. Enquanto o Focolar – o fogo sagrado da cozinha – é tido como a materialização da centelha divina que anima a árvore familiar, uma divindade familiar por excelência, o “pai” e a “mãe” são vistos como anjos ou gênios que se vinculam ao patriarca e à matriarca de cada família, regendo a fertilidade e zelando pelas funções esperadas de cada um dentro da lógica cultural da região. Estes anjos do pai e da mãe são seres que são herdados quando um novo homem e uma nova mulher assumem as figuras de maior responsabilidade na casa.

A percepção que eu e alguns outros membros dessas tradições possuímos é de que tais seres – o Focolar, também chamado lar familiar, a Mari e o Pari – possuem uma natureza fluida e mutável, semelhante à dos gênios locais, de seres que personificam na forma de uma entidade espiritual a força presente num local, num grupo de pessoas ou em um objeto. Tais consciências formam amálgamas e se ramificam de forma natural conforme os objetos que representam são divididos ou unidos a outros. Dessa forma, quando duas famílias se unem através do matrimônio, o focolar da casa dos recém-casados é o amálgama do focolar das famílias onde cada um dos noivos nasceu. A Mari (que alguns afeitos ao reconstrucionismo romano relacionam à juno da mater familias) sempre está amalgamada ao “gênio pessoal” ou “anjo da guarda” que acompanha a matriarca da vez. O mesmo se aplica ao Pari. Trata-se de seres cuja existência está atrelada ao fenômeno familiar, e cujo culto visa purificar a família de desequilíbrios e garantir a soberania e a prosperidade necessárias para que os seus membros possam ter uma boa vida.



Ânforas da casa da "última strega" da cidade de Triora, mostradas de relance durante
documentário que a entrevista sobre a sabedoria popular e os mitos das bruxas na cidade.
Ânforas como estas são usadas em algumas tradições para cultuar os gênios familiares, os
ancestrais mais importantes e outros espíritos. 


Em outros contextos, os gênios familiares também existem e estão atrelados de forma mais ou menos visível às figuras de devoção de uma família. O hábito de oferecer pão e café a São Benedito e a Santo Antônio em inúmeros lares brasileiros carrega consigo – senão de forma autoconsciente ao menos de forma intuitiva – a relação com os seres domésticos que nos auxiliam e velam por nossas necessidades familiares. O culto ancestral bem realizado não pode esquecer tais seres, pois são eles que fortalecem ainda mais a ligação entre as partes da árvore familiar. Cultuando aqueles que guardam a casa, a fonte de vida do lar e as potencialidades familiares, qualquer pessoa terá pontos positivos com os antepassados e os antigos de sua linhagem.

 

Os Não-Humanos

Além dos seres tutelares da linhagem, é possível que uma árvore ancestral tenha a presença de seres espirituais da natureza que nunca foram humanos. Nossas tradições os reconhecem como demônios, mas eles podem ser denominados de incontáveis outras formas e podem ser classificados por meio de suas naturezas e comportamento. Aqui se encontram os espíritos da água, chamadas aganis ou anguane na zona friulana e rusalky no leste europeu. Aqui também se encontram as fadas, que nas tradições da zona liventina são ligadas à luz do luar, e a própria bruxa mitológica stria ou striga. A condição de não-humanidade envolve todos os espíritos folcloricamente denominados como dragões e basiliscos, ogros e duendes, entre outros. Em alguns locais do Brasil, estes seres seriam denominados como encantados.



Gravura mostrando uma bruxa e um demônio.
Fonte não encontrada.

A participação destes seres da natureza numa linhagem humana se dá a partir de trocas que são estabelecidas e que alguns compreendem como transmissões iniciáticas e outros acreditam se tratar de uma miscigenação real. De toda forma, é usual que em tais linhagens a presença destes seres ao redor da família seja sempre comentada através de histórias e relatos, não raro existindo mitos internos sobre um parente longínquo ter sido gerado a partir do cruzamento com um destes seres ou agraciado com uma bênção ou maldição transformadora por um deles.  As características conferidas por estes seres acompanham a linhagem familiar e manifestam dons, marcas, tendências de comportamento e por vezes deficiências.

Para aqueles que possuem tais seres em sua ancestralidade, pode chegar a ser difícil separá-los dos Antigos e dos antepassados como um todo. As devoções aos ancestrais não raro chamam a atenção destes seres não-humanos para o seu “descendente” e a partir disso contatos significativos podem ocorrer. Contudo, embora sejam frequentemente benfazejos à descendência humana, eles não necessariamente compreendem nossos valores e podem ser perigosos se tratados com imprudência.

 

Memórias, larvas e outros restos

Aquilo que resta após a morte do corpo físico também é impactado pelo que se faz num culto ancestral. Os ossos – quando são enterrados – permanecem como uma ligação da alma do falecido com o mundo físico, um “ponto de ancoragem” por assim dizer, cuja extensão simbólica é o túmulo. Daí a relevância da utilização de pó e terra de certas sepulturas em determinados atos de magia. Daí também a importância de conservar dignamente os restos mortais de seus antepassados conhecidos. Quando os restos mortais se perdem, ou quando o morto é cremado, o tipo de contato que seria favorecido por meio dos ossos e da visitação ao túmulo deixa de ser possível da mesma maneira. No caso dos Antigos e dos santos, os túmulos são pontos de concentração de sua força espiritual.



Pintura retratando cemitério. Autoria não encontrada.

Enquanto os ossos permanecem como uma âncora – ou uma raiz – que liga os mortos ao mundo físico, a alma permanece como uma âncora ou raiz que liga o espírito imortal ao mundo espiritual. Quando a ligação entre o espírito e a alma é desfeita, a alma se torna um organismo semiconsciente que terá uma sobrevida fadada a um encerramento. Neste estágio ela ainda preserva e em muitos casos revive de forma cíclica as memórias e sentimentos que a pessoa teve enquanto viva. À medida que esse resquício de consciência vai se desfazendo, essas memórias e sentimentos vão se tornando cada vez mais imprecisos até desaparecerem. Uma alma vazia é frequentemente consumida por outros seres da mesma maneira que a carne do corpo físico é comida pelos vermes. O culto ancestral e a manutenção das memórias ligadas à pessoa falecida perpetuam a sobrevida das almas que já foram abandonadas pelo espírito imortal, fazendo com que elas permaneçam por mais tempo no uníssono formado pelas vozes dos membros da Árvore de Sangue. Isso também serve para atenuar sentimentos de angústia e desespero que podem se acometer a esses seres próximo do fim de suas existências. Quando a segunda morte chega, a individualidade daquela alma deixa de existir de forma independente, sendo encontrada somente na memória do espírito imortal e em outras memórias dispersas das quais falaremos em breve.

Existem, contudo, formas pelas quais uma alma abandonada por seu espírito imortal pode sobreviver. Em algumas tradições, processos de magia são realizados para vivificar e divinizar essa “alma-resquício”, de modo que ela se torne um ser autônomo e independente do espírito que a abandonou, mas que continua a agir em benefício de sua comunidade e a preservar os traços que tinha quando estava entre os vivos. Diferente desse tipo de processo, há a criação daquilo que alguns denominam larva, a inserção de uma criatura espiritual (feita artificialmente) na alma vazia para que ela a anime e a transforme em um serviçal – seja de outros seres espirituais, seja de um praticante de necromancia muito habilidoso. Embora essas larvas conservem traços da pessoa que um dia animou aquela alma, elas são outro ser em essência, e costumam assumir uma aparência e um comportamento apático, robótico, ou pouco convencional, seguindo comandos daqueles que as forjaram antes de agir por conta própria.

Nos dois casos citados um novo ser é criado intencionalmente por alguém, a partir de uma alma esvaziada daquilo que conferia sua essência divina no passado. Existe, entretanto, a possibilidade de que um processo similar ocorra de forma não intencional. Quando uma alma se encontra abandonada de seu espírito, vagando em sua sepultura ou em algum outro local para o qual tenha sido atraída, ela pode se tornar o hospedeiro de seres espirituais que utilizarão esse “corpo etérico” como um crustáceo utiliza uma concha vazia. A partir da entrada do ser parasitário, a alma se transforma numa extensão dessa outra consciência, podendo se tornar aquilo que muitas histórias referenciam como criaturas hostis que vivem em covas ou caixões e saem durante a noite para vampirizar os vivos. Uma das muitas razões para o culto ancestral e a realização de ritos fúnebres apropriados é dificultar este tipo de situação, através da constante ressonância entre a alma, a Árvore de Sangue e Espírito, e os poderes divinos ligados à tradição mágico-religiosa do morto.




Além dos ossos e da alma abandonada, o falecido deixa para trás memórias de diversos tipos. As memórias são algo difícil de explicar, mas podem ser vistas como registros que nossas ações, palavras e sentimentos deixam no mundo ao nosso redor. Quanto mais carregada de força espiritual ou de carga emocional é um acontecimento, mais força terá a memória originada dele. Essas memórias se apegam a lugares do mundo físico, muitas das vezes se tornando aquilo que as pessoas chamam de assombrações ou formas-pensamento. A suicida que é frequentemente vista pendurada na árvore onde se enforcou pode não ser uma alma atormentada repetindo a cena da própria morte, mas apenas uma memória gravada na madeira e no solo. Apesar do exemplo macabro, boas memórias também existem e podem abençoar um local e um objeto da mesma maneira que memórias ruins os amaldiçoam. Os objetos importantes do morto, as roupas que ele usava, os lugares onde mais passava seu tempo ou onde eventos importantes de sua vida transcorreram são todos pontos focais que podem conservar memórias boas ou ruins.

A manutenção das memórias boas dentro do culto ancestral se dá através da lembrança e do compartilhamento das histórias familiares dentro da linhagem, ou com pessoas de confiança. Através destes atos, e do próprio culto devocional em si, as memórias ressoam com as almas dos falecidos e aqueles que precisam ser lembrados para continuar sua existência na Mansão dos Mortos se sentem aliviados. Quando as memórias não são reforçadas pela lembrança e esvanecem com o tempo, as chances dos antepassados vinculados a elas passarem pela segunda morte aumentam significativamente.

Além de habitar objetos e lugares as memórias fazem morada no sangue e na herança psíquica dos descendentes do falecido. Isso ocorre através de um mecanismo similar ao dos atavismos, e vincula-se de forma muito próxima ao fenômeno do renascimento de aspectos da mente de um ancestral em um descendente direto. Se todas as possibilidades de contato com um ancestral estiverem perdidas, a última e inescapável forma de acessar uma parte dele é o seu próprio sangue. A magia feita com o próprio sangue utiliza, dentre outros fatores, da presença das memórias de toda sua ancestralidade passada, e das projeções de sua descendência futura. Esse tipo de magia, embora simples e poderosa, é delicada e perigosa, porque guarda um potencial muito grande de comprometer não somente a pessoa que comete uma falha, mas todos os que estão ligados a ela pelo sangue em um certo número de gerações que, a depender do caso, pode ser maior ou menor.

Por fim, é possível dizer – embora não eu não possa aprofundar muito este tópico em específico – que as memórias são preservadas também no mundo espiritual e não somente no mundo físico. Há um local no mundo espiritual onde tudo que diz respeito às árvores de sangue e espírito fica armazenado, tal como há uma lembrança de tudo que um espírito imortal viveu em suas incontáveis existências. Para aqueles que sabem utilizar esse mistério, muito pode ser aprendido.

 

Reencarnação e Ancestralidade

Além da natureza dos ancestrais, de gênios familiares de outras figuras presentes no que se considera culto ancestral, uma dúvida frequente das pessoas é a compatibilidade de um culto aos antepassados com a noção de reencarnação, muito popular no Brasil pelo menos desde a chegada do kardecismo. Em primeiro lugar precisamos entender, como já mencionei no início do texto, que o fenômeno da morte e da existência no além é complexo, multifacetado e capaz de interpretações divergentes a partir do ponto de vista que se analisa a questão, e das terminologias empregadas nessa análise.

Nossa constituição é múltipla. Para o olhar da tradição, o sagrado coração é o espírito imortal de cada ser vivo e ele é o verdadeiro “eu”. A alma é um corpo para o sagrado coração, uma forma por meio da qual ele pode experimentar da existência manifesta. Para o espírito imortal não existe tempo e não existe espaço, pois ele vive na eternidade. A sua manifestação, ocupando a alma que o recebe, pode acontecer em mais de um lugar e em mais de um tempo paralelamente. Isso implica reconhecer que numa perspectiva de tempo cíclico, todas as encarnações de um mesmo espírito imortal estão acontecendo de uma vez só, como raios distintos saindo do centro de uma circunferência e atingindo os seus limites exteriores em pontos diferentes da sua extensão.

Em contraposição ao fenômeno da encarnação do espírito imortal, existem possibilidades de renascimento da alma que o contém. Esse renascimento pode se dar com o mesmo espírito ou com outro espírito de uma mesma árvore familiar. Autores ligados ao perenialismo como Evola e Guenón costumam afirmar que a única possibilidade daquilo que se cunhou como “reencarnação” após o kardecismo é em realidade esse renascimento de características físicas ou psicológicas do indivíduo, que em nada teriam ligação com o espírito verdadeiro.



O Erro Espírita, de René Guénon, é um dos principais livros utilizados para criticar
a noção moderna de reencarnação por parte dos tradicionalistas. Apesar de ter minhas
concordâncias com muito do que o autor escreveu em outras obras, a realidade me parece
visivelmente maior e mais complexa do que o recorte ao qual ele tinha acesso ao formular
suas ideias, especialmente sobre este ponto.


Dadas as infindáveis conversas que já tive sobre esse assunto com pessoas mais velhas e mais sábias, e com os próprios Antigos, tanto a visão que restringe a realidade do espírito imortal a uma experiência de uma única vida neste plano (como é a visão dos perenialistas) quanto a visão que entabula uma regra geral sobre uma reencarnação total do espírito e da alma numa linha de produção cósmica incessante (como é a visão proposta por Kardec e adotada de forma ridiculamente pouco crítica até mesmo por pretensos ocultistas da mão esquerda) são visões extremas e pouco assertivas de uma realidade que é – para repetir mais uma vez – complexa.

A reencarnação do espírito é uma realidade que ocorre, e que não significa a anulação de uma encarnação pretérita deste mesmo espírito. Do mesmo modo os renascimentos de aspectos da alma dentro da linha familiar ou iniciática são fenômenos que também acontecem, e que podem ser confundidos com outra coisa numa visão mais simplória de reencarnação que desconsidere a multiplicidade de partes do ser. Em nada estes dois fenômenos anulam ou invalidam a existência dos ancestrais, a relevância da ligação que existe entre todos os membros de uma linhagem e a importância – dado este contexto – de um culto ancestral bem-feito. Pelo contrário, a relevância da ancestralidade só deveria ser ressaltada pela compreensão de que, em sucessivas e múltiplas possibilidades de existência – neste mundo ou no próprio mundo espiritual –, nós estamos ainda amarrados uns aos outros pela nossa própria natureza.

 

Fechamento da Parte 1 – A importância de tentar ultrapassar dificuldades

No decorrer dessa primeira parte do texto procurei esmiuçar – a partir das lentes de minha tradição – a relevância do culto ancestral, quais são os seres espirituais que dele fazem parte ou por ele são impactados. Esse é o começo de um entendimento um pouco mais profundo sobre ancestralidade, e sobre a relevância que ela carrega consigo para vários aspectos de nossas vidas, e da existência daqueles que nos precederam. Resta, porém um questionamento que muitas pessoas são obrigadas a fazer: E se eu simplesmente odeio meus familiares, ou não tenho nenhuma proximidade com eles por qualquer motivo? O que se pode dizer sobre culto aos ancestrais para quem foi machucado pela família na qual nasceu, ou para quem nunca pode conhecer a própria família biológica?

São muitas nuances, porque ancestralidade não é um tema simples. Algumas coisas de cunho mais prático ficarão para a segunda parte deste texto, mas posso externar agora alguns pontos sobre tais dilemas na relação com a ancestralidade:

O primeiro deles é que uma árvore familiar, por mais tóxica que seja, não é isenta de bons membros, ainda que distantes, e estes bons membros podem sempre oferecer algum nível de apoio e suporte. Mas a questão se espraia para além dos bons e dos maus antepassados. Cultuar a ancestralidade como um todo tem mais a ver com o seu local no espaço-tempo, e com quem você é, de onde veio e para onde vai, do que com antepassados específicos que tem consigo as suas mazelas. Certamente é difícil lidar com as pessoas, estejam vivas ou mortas, e casos extremos justificam a punição com o esquecimento de alguns nomes da linhagem. Mas nada pode mudar o pertencimento de um indivíduo à teia de vida e morte que o originou. Se há vontade em aprofundar o caminho espiritual, e o caminho espiritual pressupor um mínimo respeito à ancestralidade, será inevitável encarar de frente os problemas de ordem relacional e sentimental que estiverem intrínsecos a esse complexo. Com a terapia em dia, e a cautela para não avançar além de seus limites, a devoção aos gênios familiares e à coletividade inominada dos ancestrais pode ser um bom lugar para começar, e a busca por amparo de ancestrais de valor – escondidos no meio de uma genealogia aparentemente desgraçada – pode ser um segundo passo a considerar.

Em segundo lugar, pessoas que cresceram longe de sua família biológica podem sentir dificuldade ou incompatibilidade com esse tópico, mas como foi dito acima, a árvore ancestral é composta não somente de sangue, mas também de espírito. Uma criança adotada por uma nova família passa a criar vínculos espirituais profundos com a família adotiva, fazendo parte da ancestralidade que a ela pertence como se esta fosse uma linhagem iniciática. Em paralelo, ela continua vinculada à linhagem familiar de sua origem sanguínea. Um culto ancestral realizado por uma pessoa nessa condição, impactará não apenas uma, mas ambas as linhagens das quais ela faz parte. O mesmo pode ser dito quando o culto ancestral se volta a linhagens iniciáticas fidedignas.

Muitas vezes, somos chamados a cuidar de assuntos que não nos parecem dizer respeito. Muitas vezes temos conflitos graves com nossos familiares, e nem sempre uma boa relação é possível. Mas há na possibilidade de um culto ancestral a chance de ultrapassar as pessoas e suas virtudes e defeitos, mirando em um todo maior e muito mais complexo. Podemos nos sentir minúsculos diante da vida em várias situações, mas quando estamos alinhados ao todo do qual viemos, somos maiores do que qualquer desafio.

Espero que essa primeira parte do texto tenha sido útil para aproximar vocês, leitores interessados, de uma maior comunhão com as suas próprias ancestralidades. Acompanhem nos próximos dias a postagem da parte prática deste texto, para algumas dicas e orientações sobre como manter um culto ancestral domiciliar, como fazer as visitações aos túmulos de seus antepassados e alguns outros detalhes que podem ser úteis a quem busca os meios de trilhar este caminho.

Que a Morte, a senhora que a todos abraça, permita que a reunião com os seus antepassados seja próspera e feliz!

 


Memento Mori - Jozef Hanula (1901)

 

 

Recomendações

Este texto baseia-se quase que totalmente na tradição e nas experiências da oralidade, mas algumas recomendações para os interessados em estudar existem. Conforme novas surgirem, vou inseri-las aqui e também na página “Recomendações”.

Italian Folk Magic – Mary Grace Fahrun : Um livro voltado à magia folclórica italiana na diáspora para os Estados Unidos, oferece um lampejo significativo de como este universo encara a espiritualidade doméstica e alguns aspectos da relação com a ancestralidade.

Cidade Antiga – Fustel de Coulanges : Livro que me foi recomendado pelo Vinícius Pimentel, por abordar o culto aos mortos na antiguidade, uma das raízes do culto ancestral nas práticas tradicionais que ainda sobrevivem na nossa sociedade.

Slavic Witchcraft: Old World Conjuring Spells and Folklore – Natasha Helvin : Um livro voltado às práticas mágicas de origem eslava, escrito por uma filha da diáspora para os Estados Unidos. Oferece um olhar sobre diversas práticas e superstições russas sobre os mortos que em parte são muito semelhantes à cosmovisão apontada por mim neste texto.

Consorting With Spirits – Jason Miller : Não é um livro sobre ancestralidade, mas na minha opinião é o melhor livro já escrito sobre o trabalho com espíritos por um praticante de magia. O autor destrincha assuntos complexos de forma objetiva, direta e inteligível, e desconstrói muitos equívocos (tanto de pretensos tradicionalistas puristas quanto de ecléticos modernos sem juízo), fornecendo uma abordagem para a relação com os seres espirituais que é equilibrada, responsável e eficaz, abrangendo desde uma cosmovisão politeísta até a cosmovisão cristã-herética e diabolista. Não exagero ao dizer que foram este autor e suas obras que fizeram renascer algum entusiasmo em mim para ler obras escritas por autores do meio esotérico novamente.


4 comentários:

  1. Na minha tradição familiar o fogo do Sagrado Coração provém da Pombinha do Divino que reabastece ele sempre que cumprimos com nossas obrigações espirituais. Uma parada bem "Veni Creator" só que envolvendo criaturas não-humanas também ❤️‍🔥🕊️

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    1. Isso é muito similar ao nosso entendimento. Quem é vc? Hahaha

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  2. Excelente texto. Você deveria lançar um livro.

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  3. Aprendendo muito com suas postagens! Gratidão 💚

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