Por Draco Stellamare
Vanitas Still Life (ca 1665-1670) - Jan Van Kessel |
Uma árvore separada de suas raízes seca e morre. Ela se tornará matéria orgânica para enriquecer o solo onde outras árvores podem um dia surgir, mas aquilo que ela foi um dia será esquecido neste mundo. Não é por acaso que pensamos em linhagem familiar como uma árvore. Tendemos a organizar a genealogia dessa forma, mas frequentemente o fazemos como se o indivíduo no tempo presente fosse o “tronco”, do qual seus antepassados brotam como ramos, e na realidade é justamente o oposto: eles são nossas raízes, adentrando o mundo ctônico dos seres que estão mortos, enquanto a nossa descendência sanguínea e espiritual são os ramos que se erguem a partir de nós. Um não pode existir sem o outro: raízes, tronco e ramos superiores formam uma árvore completa. Por sua vez, as árvores interagem umas com as outras, tanto acima da terra quanto embaixo, formando uma rede de trocas e amálgamas da qual conhecemos muito pouco a respeito.
As ancestralidades se comportam
à exata maneira das árvores em nosso mundo. Algumas são vistosas, floridas, e
produzem bons frutos, outras são carregadas de espinhos. Cada uma possui uma
natureza própria. Algumas crescem muito e perduram por séculos, e outras minguam
e morrem com facilidade. Algumas precisam de sol e outras só crescem à sombra
de árvores maiores. Algumas sobrevivem razoavelmente bem isoladas, e outras
precisam de semelhantes ao seu redor para atravessar a existência.
Penso que o culto à
ancestralidade – sob diversas óticas, mas especialmente através das lentes da
bruxaria – requer um entendimento dessa natureza ancestral. Mais do que simples
oferendas aos mortos pelos mortos (o que já é grande coisa quando é
corretamente executado) precisamos entender o nosso papel no organismo vivo que
formamos com os nossos antepassados e os nossos futuros descendentes, diretos
ou não. É entendendo que somos mais do que uma coincidência cósmica, mais do
que um grupo de almas que calhou de encarnar em sequência, que podemos esperar usufruir
das coisas boas que nossa ancestralidade carrega, e vislumbrar alguma
perspectiva de solucionar as suas mazelas.
Como muitos dos que procuram o
caminho da bruxaria pouco sabem a respeito de um culto à ancestralidade,
pretendo abordar nesse texto alguns de seus aspectos básicos. O que são os
ancestrais e como comungar com eles? Quais práticas são adequadas para
reverenciá-los? Quais seres espirituais intervêm mais incisivamente em questões
familiares? Essas são algumas das perguntas que eu espero responder segundo a
posição da minha tradição de bruxaria, acompanhada dos insights que eu
recebi de outras tradições das quais comungo. Não será uma tarefa simples, e
não acredito que ela seja incontroversa entre os leitores, dado o quanto se
fala no assunto nos últimos tempos e a diversidade de correntes de pensamento envolvidas...
Pensando especificamente em dar alguma luz a quem pouco ou nada sabe e se
afiniza com o meu caminho e sua forma de ver as coisas, vou dividir essa
apresentação em uma parte teórica e uma parte prática, que juntas fornecerão
algumas boas diretrizes para um leitor leigo e interessado começar a entender o
universo ancestral e suas possibilidades através das lentes que possuo.
Sugiro aos interessados que
mantenham a mente aberta na leitura da parte teórica, buscando desconstruir
alguns preconceitos e conceber o tempo de uma forma não-linear, mais orgânica e
cíclica do que a que foi incutida em nosso pensamento por movimentos esotéricos
da modernidade e pelo kardecismo. E sugiro que na parte prática observem à
risca alguns dos alertas e recomendações que serão feitos, sem perder a
compreensão de que tudo que foi escrito por mim reflete a minha
realidade, e como tal deve ser adaptado às necessidades e características da
sua própria ancestralidade e prática espiritual, sempre com bom senso.
Tendo feito essa introdução, podemos
começar com o básico...
O que é um ancestral?
O destino dos mortos é sempre uma
questão delicada. Algumas doutrinas falam em reencarnação e outras na vida
eterna, mas nenhuma resposta “simples” parece satisfatória quando nos deparamos
com a realidade como ela é. E nenhuma resposta simples pode ser dada sobre essa
questão, porque nossa constituição espiritual também não é simples. Toda
explicação sobre esse assunto é parcial e toma como viés um ponto de vista
dentre inúmeros que são possíveis para observá-lo. A formação disso que somos
enquanto “seres humanos vivos” envolve o amálgama de muitas partes, e a
depender de qual delas você considerar que é você de verdade o ponto de
referência sobre questões como reencarnação, transmigração do espírito ou a
continuidade da existência da consciência sob uma forma “etérica” pode mudar
drasticamente.
Concebemos de modo resumido que
o ser humano é um corpo físico habitado por uma alma – usualmente delineada por
um corpo espiritual –, e ambos, tanto a alma quanto o corpo físico, são
animados por um espírito imortal. Esse espírito imortal é simbolizado pelo
sagrado coração, cuja chama ardente é a quintessência, a essência divina pura
que habita em todas as coisas. Ele pode ser pensado como um fragmento da
primeira consciência, o universo experimentando a si mesmo, entre outras
definições... Se o espírito imortal é tido como a parte de nós que existe na
eternidade, o mesmo não se pode dizer da alma e do corpo. Quando uma pessoa
morre, e a alma conserva consigo o seu sagrado coração, é isso – essa alma
ainda dotada da singularidade divina – que na maioria das vezes nós consideramos
como o “espírito de um ancestral” propriamente dito. Ele é autoconsciente,
autônomo e num certo sentido completo como um ser humano encarnado – e usando
alguns dos conceitos de um autor que eu gosto muito, Jason Miller, posso dizer
que neste caso é apenas uma consciência que não é mais orientada para a matéria,
mas sim para o espiritual. Nesta situação, é como se a vida apenas continuasse
numa nova realidade, regida por outras leis naturais. Ocorre que muitas almas
não conservam este estado de união com o espírito imortal por muito tempo após
a morte. Diversos fatores podem fazer com que a sobrevivência da ligação entre
a alma e o sagrado coração seja mais provável ou menos provável, e outros tantos
fatores podem fazer com que essa ligação dure menos ou mais.
Sagrado Coração em vitral. Fonte desconhecida. |
De uma forma geral, concebemos
que a maior parte dos mortos permanece numa zona intermediária onde as suas
almas conservam o espírito imortal por algum tempo, durante um período no qual grande
parte delas reside nas muitas moradas no mundo inferior – a Mansão dos Mortos
ou Inferno, se preferir. Há lugares bons e ruins no mundo dos mortos,
lugares onde as almas usufruem de uma pós vida serena, lugares inóspitos onde
as mentes dos falecidos definham lentamente, e lugares onde as almas são
atormentadas por outros seres da exata maneira que mostram as ilustrações cristãs
do purgatório. A crença sustentada durante a vida costuma direcionar as almas
ao “submundo” ao qual melhor se encaixem. Mas este é um assunto delicado e
complexo. O que nos cumpre abordar neste texto, é que a maior parte dos mortos
eventualmente encontra, mais cedo ou mais tarde, o desfazimento da ligação
entre a alma e o espírito imortal. Depois que essa ligação é desfeita, o
espírito imortal segue um rumo ditado por forças que não compreendemos
totalmente, podendo animar outras possibilidades de existência de si mesmo
neste ou em outros mundos. A alma, despossuída do espírito divino,
eventualmente perece. Isso é chamado de segunda morte, e pode ocorrer de
inúmeras formas. É o fim da personalidade construída durante a existência
física do ser humano. As memórias e a identidade que essa personalidade possuía
ainda existirão no seu espírito imortal, mas não serão mais do que uma dentre
outras tantas experiências que nele se acumulam. Na segunda morte a força
espiritual da alma se dissipa, sendo reciclada pelo Cosmos, e a sua consciência
adormece para sempre no vazio.
Virgem do Carmo Salvando as Almas do Purgatório - Séc. XVII, Autor desconhecido. A ação dos anjos que recolhem as almas é uma referência ao papel de Miguel como psicopompo. |
Disso você pode concluir que
não existe esperança e que nada além de uma sobrevida escassa nos aguarda após
a morte, mas isso não é verdade. Uma parcela dos mortos é capaz de manter a
ligação da alma com o espírito imortal indefinidamente, enquanto buscam a apoteose
que alguns caminhos chamam de deificação, outros de iluminação, e que nós
chamamos de coroa da vida eterna, surrupiando o conceito de união perene
com Deus, essencial ao catolicismo hegemônico. Ao atingir essa apoteose, a alma
torna-se integralmente parte do espírito divino, divinizando-se, e se tornando
capaz de se manifestar na existência de qualquer maneira desejada, em qualquer
tempo ou local, e sob qualquer forma. A alma divinizada pode também seguir além
da criação, para a eternidade desconhecida, sem limitações.
Os mortos que possuem poder
espiritual suficiente para conservar de forma constante a ligação entre sua
alma e seu espírito imortal, obtendo também o poder de livre trânsito entre o
mundo dos mortos e o nosso mundo, são os que na nossa bruxaria chamamos de Antigos,
e que outras vertentes denominam “mortos poderosos”. Enquanto as almas comuns
que continuam suas vidas no mundo inferior podem ou não atingir um dia a
deificação, os Antigos costumam caminhar de forma feroz e determinada rumo a
esse objetivo, e não raro auxiliam seus descendentes vivos (em especial os que
pertencem à mesma linhagem bruxa que eles) a fazer o mesmo.
Essa compreensão que expliquei
acima nos deixa com três categorias principais de seres espirituais para levar
em consideração:
1.
Almas
comuns de nossos antepassados, que ainda possuem seu sagrado coração e podem
tanto passar pela segunda morte quanto adentrar (no além) um caminho que
leve à vida eterna.
2.
Almas
dos Antigos, que detém poder suficiente para continuar existindo de forma
autônoma e transitar livremente ao menos entre o mundo inferior e o nosso mundo,
e cujo objetivo final é a apoteose.
3.
As
possibilidades que restam: (I) Almas despossuídas de seu espírito imortal,
tornadas meras cascas mentais e etéricas, vazias de essência, cuja consciência
perdura por um tempo e depois se desfaz se não passar por processos de
transformação muito específicos. (II) Memórias dos antepassados preservadas de
forma atávica, e, também preservadas em locais específicos do mundo espiritual.
(III) Memórias dos antepassados preservadas em locais, objetos e situações, às
quais muitos hoje em dia chamam de formas-pensamento, espectros ou simplesmente
assombrações.
Estas três categorias de seres
do amplo espectro da ancestralidade são impactadas por um culto ancestral, e
por isso vou abordá-los nos próximos itens deste texto com um pouco mais de
atenção. Além deles, existem outras figuras que se enquadram como ancestrais,
entre elas estão os gênios familiares – espíritos tutelares de uma linhagem ou
de um núcleo familiar específico – e os seres espirituais não-humanos que por
questões iniciáticas ou de parentesco espiritual, pertencem à linhagem familiar
de uma pessoa. Tentarei explanar um pouco sobre estes também, embora sua
presença seja mais incomum e diversificada do que os primeiros que comentei.
Os Antepassados e a Árvore de Sangue e
Espírito
Acredito que a melhor palavra
para designar os ancestrais comuns que residem na Mansão dos Mortos seja
simplesmente “antepassados”. É o que eles são: entes que passaram por este
mundo antes de você. Quando falamos de antepassados de linha vertical ou linha
direta, falamos dos que possibilitaram a sua existência carnal doando uma parte
de si mesmos: pais, avós, bisavós, trisavós e assim por diante, até o primeiro
ser humano de sua linhagem. Quando falamos de antepassados de linha horizontal
ou indireta, falamos dos muitos que representam ramificações da sua própria
linhagem: tias e tios, primos e primas... Embora todos estejam interligados, o
impacto da influência ancestral é maior na linha vertical ou direta do que na
horizontal ou indireta. Os filhos são a continuidade física dos pais, e
daqueles que vieram antes dos pais, e não há como descrever de forma suficientemente
assertiva o peso desse fato. Basta observar quantas coisas – boas e ruins –
nossos corpos carregam como herança daqueles que nos precederam.
Pintura que relaciono aos antepassados. Autoria não encontrada. |
Quando deixamos o modelo de tempo linear para trás, e observamos o tempo e o espaço como um círculo espiralado, uma roda que gira em sucessivos ciclos naturais, vemos que a linhagem familiar se espalha pelo tempo-espaço como uma árvore, como um único organismo vivo, formado por muitas células que são os corpos de incontáveis gerações de seus membros. Eu sou um ser individual no presente, porém, de uma perspectiva mais ampla, eu sou um com todos os antepassados que vieram antes de mim. Sob essa perspectiva, em última instância, a humanidade é como uma única planta, dividida em muitos ramos interligados que são as linhagens familiares. A essa conexão física, que faz com que os corpos dos membros de uma linhagem sejam vistos como um mesmo organismo vivo espalhado através do tempo e do espaço, damos o nome de Árvore de Sangue.
Ocorre que, como o título dessa
parte do texto já indicou, não somos feitos somente de matéria, mas também de
alma e espírito. Tal como o corpo físico possui um “duplo” que define a forma
da alma e carrega o espírito imortal, o mesmo ocorre com a Árvore de Sangue,
que possui um duplo espiritual próprio. Esse duplo é o que muitos chamarão de
ancestralidade primordial ou comunidade espiritual, e para nós é a Árvore de
Espírito. Enquanto a Árvore de Sangue é a união de toda a matéria que forma
você, seus ancestrais e seus descendentes, a Árvore de Espírito é a união de
todas as almas que fazem parte de sua linhagem, e o vínculo de afinidade que
existe entre os espíritos imortais de todos os seus membros. Ambas as árvores estão
vinculadas numa única estrutura, pois tal como um espírito imortal pode habitar
em diversas almas encarnadas em diversos corpos, uma família espiritual pode se
“encarnar” em diversas linhagens de sangue. Em síntese, você possui uma família
espiritual, formada ao menos por uma parte da sua família de sangue. Essa
família espiritual encarna em diferentes linhagens sanguíneas mundo a fora, às
quais ela tenha acesso pela história de sua ancestralidade. Assim como os
corpos possuem parentesco, também as almas e o espírito imortal possuem
parentesco entre si. E geralmente esses parentescos se sobrepõem. Daí as
frequentes compreensões de que a reencarnação ou renascimento (para alguns uma
mera metempsicose e metemsomatose – um renascimento de
características da alma ou do corpo, respectivamente) se dão sempre dentro da
mesma linha familiar.
Tentativa de simbolizar de forma simplificada a relação entre as árvores de sangue e a árvore de espírito de uma mesma ancestralidade. |
É através da Árvore de
Sangue e Espírito, a continuidade física e espiritual formada entre nós que
estamos vivos e os nossos ancestrais, que os antepassados comuns, residentes no
mundo dos mortos, podem nos abençoar ou amaldiçoar, influenciando em nossas
vidas para o bem ou para o mal, tal como nossas ações e palavras também os
influenciam no túmulo. O processo de comunhão com estes antepassados trata-se
de um processo de ressonância espiritual, como o que ocorre ao pronunciar nomes
divinos da maneira apropriada, e além dessa ressonância, ocorre de forma
paralela um processo de ligação simpática (ou magia simpática) entre mortos e
vivos conectados pela via ancestral. Os filhos são testemunhos de seus pais e
avós através do sangue e da força espiritual hereditária que compartilham entre
si. Tanto na ressonância quanto na ligação simpática, a presença do antepassado
em nosso mundo não é necessária. Ela pode ocorrer, mas isso normalmente é uma
dentre duas alternativas: pode ser uma benesse concedida por seres espirituais capazes
de levar e trazer os mortos de volta ao mundo dos vivos, por quaisquer razões
que eles entendam necessário fazê-lo; ou pode ser o fruto de um ato de
necromancia. Por necromancia, como ficará claro num próximo item deste mesmo
texto, não consideramos “qualquer prática devocional ligada aos mortos” como se
tornou usual, mas sim, segundo uma definição mais precisa, os atos de magia que
visam erguer as almas dos mortos do túmulo ou conjurar forçosamente a presença
de um morto (não somente a ressonância) para finalidades objetivas.
Tendo explicado essas questões,
é justo dizer que os antepassados comuns nos afetam através da coletividade que
formamos com eles. A reverência que a eles é dedicada, portanto, deve também
passar por essa coletividade. Essa é a razão pela qual é mais significativo e
útil direcionar suas devoções ancestrais à coletividade de seus antepassados do
que a cada um dos mortos individualmente. Isso não significa que a veneração
dos antepassados importantes não seja digna e necessária, mas em primeiro
lugar, é necessário voltar suas atenções ao corpo coletivo que vocês habitam em
conjunto. Na parte prática, veremos como manter uma rotina de oferendas e
orações que honre de forma apropriada essa coletividade, além dos próprios
antepassados que por quaisquer motivos você deseje cultuar.
Os Antigos, ou “mortos poderosos”
O uso do termo “Antigos” faz
referência ao fato de que muitos desses ancestrais conseguiram conquistar um
estado de autonomia que os permitiu intervir diretamente nos assuntos dos vivos
por décadas, séculos, às vezes milênios. Mas, é claro, isso não significa que
todos eles morreram há muito tempo. Temos conhecimento de pessoas que se
tornaram ancestrais poderosos capazes de intervir para ajudar os vivos na mesma
semana de seu falecimento.
O poder espiritual é necessário
para que uma alma se consolide como um ancestral poderoso e seja capaz de
transitar entre os planos de existência, e de afetar diretamente as questões do
mundo material, e esse poder se consolida de diversas formas. Uma dessas formas
é a relevância político-social do morto, à qual tenha sido atribuída pela sua
comunidade uma dimensão espiritual – esse costuma ser o caso de ancestrais
veneráveis de diversas comunidades tradicionais pelo mundo a fora, que não
raras vezes realizam rituais para divinizar seus mortos relevantes.
Outra possibilidade é que esse empoderamento se dê pelo desenvolvimento
espiritual, seja de forma espontânea – através de processos orgânicos de
comunhão com o mundo espiritual ao longo da trajetória do morto quando era vivo
– seja de forma iniciática e determinada, como costuma ser no caso dos Antigos
da bruxaria e de outros caminhos que possuam um viés esotérico.
Vanitas Still Life (1667-1726) - Herman Henstenburgh. |
Falando especialmente de um
caminho de bruxaria, os Antigos constituem os ancestrais da tradição que obtiveram
êxito em aprender a magia e angariar poder através das muitas relações
estabelecidas com as potências naturais e os seres espirituais ligados àquele
caminho. Eles formam uma corrente iniciática, uma verdadeira sociedade no mundo
espiritual, a stregonesca società – conceito que algumas tradições
denominariam de forma genérica como A Companhia Oculta. A ordem de
relação que se deve estabelecer com eles – e em minha opinião com todos os
demais ancestrais poderosos – é a de reverência pela sabedoria e pela força que
eles conquistaram. Muito do aprendizado que se busca sobre a espiritualidade
vem destes espíritos, que costumam ter interesse em iluminar o caminho para que
os seus descendentes (seja por linha familiar ou iniciática) encontrem as
mesmas vias de empoderamento que eles. Quanto mais membros de uma Árvore de
Sangue e Espírito se empoderam, mais forte, como um todo, essa árvore se torna.
Deste modo, os Antigos podem ser os maiores mestres e os maiores iniciadores
dentro da senda bruxa. Infelizmente, contudo, as pessoas tendem a esquecer que
eles também são (ou pelo menos foram) seres humanos como nós, que embora
estejam num patamar deveras mais elevado de capacidade espiritual ainda têm
suas próprias convicções, suas qualidades e seus defeitos. A relação com eles não
deveria ser vista como uma relação distinta daquela que estabelecemos com
nossos familiares e nossos iniciadores vivos, pois ela pode usufruir dos mesmos
tipos de benefício e padecer dos mesmos males.
Quando falamos de ancestrais
poderosos de uma linhagem que não envolve bruxaria, as coisas ainda assim são
de certo modo similares, mas envolvidas por outros valores, crenças e costumes.
Excetuando os casos em que as “ovelhas negras” da família pavimentam um caminho
individual totalmente diferenciado, os Antigos de uma linhagem “ortodoxamente”
cristã serão em geral pessoas que obtiveram um desenvolvimento espiritual muito
grande através da fé que professavam. Não convém chamá-los de bruxos só porque
eles possuem poder espiritual elevado. O mesmo se aplica a ancestrais poderosos
que foram umbandistas, muçulmanos, budistas etc. O poder nunca foi
exclusividade de uma única tradição, ou de uma única forma de viver.
A intervenção que os Antigos
podem realizar no nosso plano de existência é ampla. Eles são capazes de nos
proteger, nos orientar, nos ajudar com curas, com demandas contra forças hostis
e com a própria prática de magia, e são igualmente capazes de nos castigar conforme
entendam devido. Tal como pessoas vivas de grande poder, seus atos podem ser nobres
ou infames. Muitas vezes, a manifestação dos Antigos é espontânea. Eles nos
avisam sobre problemas que podemos encontrar em nosso caminho, sobre ataques
espirituais e questões que eles considerem relevantes. Tal como acontece com os
seres chamados de “mentores” ou “guias” em outras vertentes da espiritualidade,
os Antigos podem exercer um papel de centralidade na prática espiritual de uma
pessoa, fazendo sua presença notável, e seus ensinamentos um centro precioso de
orientação.
Macbeth vê o Fantasma de Banquo - Théodore Chassériau (1819-1856) |
Nem sempre os Antigos conservam
a aparência que tinham quando faleceram, o que os distingue da maioria dos
outros mortos. Com o poder espiritual vem a capacidade de refletir uma imagem
mais condizente com as suas faculdades e preferências. Não raro os mortos
poderosos que morreram com idade avançada passam a se apresentar como eram na
juventude, em pleno vigor físico e mental... Isso obviamente não é uma regra, e
depende de visão de mundo e valores estéticos mais do que de uma norma
universal. Em alguns casos, é possível que um ancestral poderoso tenha passado
por processos de comunhão com outras forças espirituais que o tornam algo semelhante
a um demônio, a um espírito não-humano. Nestes casos o ancestral passa a
apresentar características destes seres, traços que consideramos como
animalescos, ctônicos ou até mesmo traços que consideramos angelicais. É o caso
de algumas pessoas que morrem em rios e poços sagrados, e são empoderadas pelos
seres espirituais do local. Algumas dentre as aganis (as ninfas da região
friulana) são mulheres que encontraram a morte em locais sagrados aos espíritos
da água. Importante frisar que esse tipo de “encantamento” do ancestral
poderoso que se transforma num ser não-humano não é a mesma coisa que o
nascimento de seres espirituais distintos a partir da alma despossuída de
espírito imortal. Neste segundo caso, há somente uma reminiscência do ser
humano que foi aproveitada por outra consciência, alheia e muitas vezes hostil
à humanidade.
Como as metas mais usuais dos
Antigos envolvem algum tipo de trajeto até a apoteose, é possível que alguns
desses ancestrais sejam percebidos como seres que estão adentrando num patamar semidivino,
próximo à ideia que temos dos santos, e outros ainda (mais raramente)
compreendidos como seres plenamente divinizados. Sendo este um assunto muito
complexo, meu único comentário a respeito é uma simples constatação: se algum
ancestral de sua linhagem – familiar ou iniciática – tiver obtido a deificação
plena, isso será óbvio e indiscutível. No mais, evite supor que sabe onde eles
estão indo, ou o quão “evoluídos” rumo a este objetivo eles estão. Nossa
percepção da realidade é bem mais estreita que a deles... E não é difícil que
nossas conjecturas sejam vistas como insolência.
Os Gênios Familiares
Após falar dos antepassados e
dos Antigos, e antes de adentrarmos figuras mais complicadas, é importante
falar dos espíritos tutelares da ancestralidade. Em diversas tradições, estas
figuras têm um relevante papel de zelar pela proteção da casa e da família,
mediando, por vezes, o contato com a comunidade dos antepassados. No universo
romano antigo este papel – segundo se acredita – passava pelos Lares, pelos
Penates e outros genii domésticos que representavam potências
necessárias à soberania e ao bem-estar da família – tida como uma unidade
religiosa no Cultus Deorum. No mundo eslavo, sobrevive ainda hoje a
figura do Domovoi ou Domovyk, conhecido como pequeno-avô. Esse
ser com as características de um pequeno duende cumpre as vezes de protetor da
lareira e guardião da casa, motivo pelo qual é convidado para se mudar junto da
família quando é necessária uma mudança de casa. Nas tradições mágicas da
região de Napoli o principal ser que assume o papel de guardião da casa é uma
fada denominada La Bella Mbrianna, excessivamente preocupada com o
estado de organização e limpeza do ambiente. Figuras semelhantes a estas, com
outros nomes e características singulares são encontrados em tradições por toda
a Itália e em outras partes do mundo.
Lararium romano antigo. Fonte site Ostia Antica. |
Domovoi. Autoria não encontrada. |
Em minha tradição e em diversas
outras cujo eixo central está enraizado no extremo nordeste italiano – seja nas
montanhas Dolomitas ou na planície litoral da área vêneto-friulana – há uma presença
preponderante do próprio focolar (termo traduzido como lareira ou fogo
do lar) e de duas entidades conhecidas como Mari e Pari, Mare
e Pare, ou ainda Mater e Pater, significando “mãe” e “pai”.
Enquanto o Focolar – o fogo sagrado da cozinha – é tido como a
materialização da centelha divina que anima a árvore familiar, uma divindade
familiar por excelência, o “pai” e a “mãe” são vistos como anjos ou gênios que se
vinculam ao patriarca e à matriarca de cada família, regendo a fertilidade e
zelando pelas funções esperadas de cada um dentro da lógica cultural da região.
Estes anjos do pai e da mãe são seres que são herdados quando um novo homem e
uma nova mulher assumem as figuras de maior responsabilidade na casa.
A percepção que eu e alguns
outros membros dessas tradições possuímos é de que tais seres – o Focolar,
também chamado lar familiar, a Mari e o Pari – possuem uma
natureza fluida e mutável, semelhante à dos gênios locais, de seres que
personificam na forma de uma entidade espiritual a força presente num local,
num grupo de pessoas ou em um objeto. Tais consciências formam amálgamas e se
ramificam de forma natural conforme os objetos que representam são divididos ou
unidos a outros. Dessa forma, quando duas famílias se unem através do
matrimônio, o focolar da casa dos recém-casados é o amálgama do focolar
das famílias onde cada um dos noivos nasceu. A Mari (que alguns afeitos
ao reconstrucionismo romano relacionam à juno da mater familias)
sempre está amalgamada ao “gênio pessoal” ou “anjo da guarda” que acompanha a
matriarca da vez. O mesmo se aplica ao Pari. Trata-se de seres cuja
existência está atrelada ao fenômeno familiar, e cujo culto visa purificar a
família de desequilíbrios e garantir a soberania e a prosperidade necessárias
para que os seus membros possam ter uma boa vida.
Ânforas da casa da "última strega" da cidade de Triora, mostradas de relance durante documentário que a entrevista sobre a sabedoria popular e os mitos das bruxas na cidade. Ânforas como estas são usadas em algumas tradições para cultuar os gênios familiares, os ancestrais mais importantes e outros espíritos. |
Em outros contextos, os gênios
familiares também existem e estão atrelados de forma mais ou menos visível às
figuras de devoção de uma família. O hábito de oferecer pão e café a São
Benedito e a Santo Antônio em inúmeros lares brasileiros carrega consigo –
senão de forma autoconsciente ao menos de forma intuitiva – a relação com os
seres domésticos que nos auxiliam e velam por nossas necessidades familiares. O
culto ancestral bem realizado não pode esquecer tais seres, pois são eles que
fortalecem ainda mais a ligação entre as partes da árvore familiar. Cultuando
aqueles que guardam a casa, a fonte de vida do lar e as potencialidades
familiares, qualquer pessoa terá pontos positivos com os antepassados e os
antigos de sua linhagem.
Os Não-Humanos
Além dos seres tutelares da
linhagem, é possível que uma árvore ancestral tenha a presença de seres
espirituais da natureza que nunca foram humanos. Nossas tradições os reconhecem
como demônios, mas eles podem ser denominados de incontáveis outras formas e
podem ser classificados por meio de suas naturezas e comportamento. Aqui se
encontram os espíritos da água, chamadas aganis ou anguane na
zona friulana e rusalky no leste europeu. Aqui também se encontram as
fadas, que nas tradições da zona liventina são ligadas à luz do luar, e a
própria bruxa mitológica stria ou striga. A condição de
não-humanidade envolve todos os espíritos folcloricamente denominados como
dragões e basiliscos, ogros e duendes, entre outros. Em alguns locais do
Brasil, estes seres seriam denominados como encantados.
Gravura mostrando uma bruxa e um demônio. Fonte não encontrada. |
A participação destes seres da natureza numa linhagem humana se dá a partir de trocas que são estabelecidas e que alguns compreendem como transmissões iniciáticas e outros acreditam se tratar de uma miscigenação real. De toda forma, é usual que em tais linhagens a presença destes seres ao redor da família seja sempre comentada através de histórias e relatos, não raro existindo mitos internos sobre um parente longínquo ter sido gerado a partir do cruzamento com um destes seres ou agraciado com uma bênção ou maldição transformadora por um deles. As características conferidas por estes seres acompanham a linhagem familiar e manifestam dons, marcas, tendências de comportamento e por vezes deficiências.
Para aqueles que possuem tais
seres em sua ancestralidade, pode chegar a ser difícil separá-los dos Antigos e
dos antepassados como um todo. As devoções aos ancestrais não raro chamam a
atenção destes seres não-humanos para o seu “descendente” e a partir disso
contatos significativos podem ocorrer. Contudo, embora sejam frequentemente
benfazejos à descendência humana, eles não necessariamente compreendem nossos
valores e podem ser perigosos se tratados com imprudência.
Memórias, larvas e outros restos
Aquilo que resta após a morte
do corpo físico também é impactado pelo que se faz num culto ancestral. Os ossos
– quando são enterrados – permanecem como uma ligação da alma do falecido com o
mundo físico, um “ponto de ancoragem” por assim dizer, cuja extensão simbólica
é o túmulo. Daí a relevância da utilização de pó e terra de certas sepulturas
em determinados atos de magia. Daí também a importância de conservar dignamente
os restos mortais de seus antepassados conhecidos. Quando os restos mortais se
perdem, ou quando o morto é cremado, o tipo de contato que seria favorecido por
meio dos ossos e da visitação ao túmulo deixa de ser possível da mesma maneira.
No caso dos Antigos e dos santos, os túmulos são pontos de concentração de sua
força espiritual.
Pintura retratando cemitério. Autoria não encontrada. |
Enquanto os ossos permanecem
como uma âncora – ou uma raiz – que liga os mortos ao mundo físico, a alma
permanece como uma âncora ou raiz que liga o espírito imortal ao mundo
espiritual. Quando a ligação entre o espírito e a alma é desfeita, a alma se torna
um organismo semiconsciente que terá uma sobrevida fadada a um encerramento.
Neste estágio ela ainda preserva e em muitos casos revive de forma cíclica as
memórias e sentimentos que a pessoa teve enquanto viva. À medida que esse
resquício de consciência vai se desfazendo, essas memórias e sentimentos vão se
tornando cada vez mais imprecisos até desaparecerem. Uma alma vazia é
frequentemente consumida por outros seres da mesma maneira que a carne do corpo
físico é comida pelos vermes. O culto ancestral e a manutenção das memórias
ligadas à pessoa falecida perpetuam a sobrevida das almas que já foram
abandonadas pelo espírito imortal, fazendo com que elas permaneçam por mais
tempo no uníssono formado pelas vozes dos membros da Árvore de Sangue. Isso
também serve para atenuar sentimentos de angústia e desespero que podem se
acometer a esses seres próximo do fim de suas existências. Quando a segunda
morte chega, a individualidade daquela alma deixa de existir de forma
independente, sendo encontrada somente na memória do espírito imortal e em
outras memórias dispersas das quais falaremos em breve.
Existem, contudo, formas pelas
quais uma alma abandonada por seu espírito imortal pode sobreviver. Em algumas
tradições, processos de magia são realizados para vivificar e divinizar essa “alma-resquício”,
de modo que ela se torne um ser autônomo e independente do espírito que a
abandonou, mas que continua a agir em benefício de sua comunidade e a preservar
os traços que tinha quando estava entre os vivos. Diferente desse tipo de
processo, há a criação daquilo que alguns denominam larva, a inserção de
uma criatura espiritual (feita artificialmente) na alma vazia para que ela a
anime e a transforme em um serviçal – seja de outros seres espirituais, seja de
um praticante de necromancia muito habilidoso. Embora essas larvas conservem
traços da pessoa que um dia animou aquela alma, elas são outro ser em essência,
e costumam assumir uma aparência e um comportamento apático, robótico, ou pouco
convencional, seguindo comandos daqueles que as forjaram antes de agir por
conta própria.
Nos dois casos citados um novo
ser é criado intencionalmente por alguém, a partir de uma alma esvaziada
daquilo que conferia sua essência divina no passado. Existe, entretanto, a
possibilidade de que um processo similar ocorra de forma não intencional. Quando
uma alma se encontra abandonada de seu espírito, vagando em sua sepultura ou em
algum outro local para o qual tenha sido atraída, ela pode se tornar o
hospedeiro de seres espirituais que utilizarão esse “corpo etérico” como um
crustáceo utiliza uma concha vazia. A partir da entrada do ser parasitário, a
alma se transforma numa extensão dessa outra consciência, podendo se tornar
aquilo que muitas histórias referenciam como criaturas hostis que vivem em
covas ou caixões e saem durante a noite para vampirizar os vivos. Uma das muitas
razões para o culto ancestral e a realização de ritos fúnebres apropriados é
dificultar este tipo de situação, através da constante ressonância entre a
alma, a Árvore de Sangue e Espírito, e os poderes divinos ligados à tradição
mágico-religiosa do morto.
Além dos ossos e da alma
abandonada, o falecido deixa para trás memórias de diversos tipos. As memórias
são algo difícil de explicar, mas podem ser vistas como registros que nossas
ações, palavras e sentimentos deixam no mundo ao nosso redor. Quanto mais
carregada de força espiritual ou de carga emocional é um acontecimento, mais
força terá a memória originada dele. Essas memórias se apegam a lugares do
mundo físico, muitas das vezes se tornando aquilo que as pessoas chamam de
assombrações ou formas-pensamento. A suicida que é frequentemente vista
pendurada na árvore onde se enforcou pode não ser uma alma atormentada
repetindo a cena da própria morte, mas apenas uma memória gravada na madeira e
no solo. Apesar do exemplo macabro, boas memórias também existem e podem
abençoar um local e um objeto da mesma maneira que memórias ruins os
amaldiçoam. Os objetos importantes do morto, as roupas que ele usava, os
lugares onde mais passava seu tempo ou onde eventos importantes de sua vida
transcorreram são todos pontos focais que podem conservar memórias boas ou
ruins.
A manutenção das memórias boas
dentro do culto ancestral se dá através da lembrança e do compartilhamento das
histórias familiares dentro da linhagem, ou com pessoas de confiança. Através
destes atos, e do próprio culto devocional em si, as memórias ressoam com as
almas dos falecidos e aqueles que precisam ser lembrados para continuar sua
existência na Mansão dos Mortos se sentem aliviados. Quando as memórias não são
reforçadas pela lembrança e esvanecem com o tempo, as chances dos antepassados
vinculados a elas passarem pela segunda morte aumentam
significativamente.
Além de habitar objetos e
lugares as memórias fazem morada no sangue e na herança psíquica dos
descendentes do falecido. Isso ocorre através de um mecanismo similar ao dos
atavismos, e vincula-se de forma muito próxima ao fenômeno do renascimento de
aspectos da mente de um ancestral em um descendente direto. Se todas as
possibilidades de contato com um ancestral estiverem perdidas, a última e inescapável
forma de acessar uma parte dele é o seu próprio sangue. A magia feita com o
próprio sangue utiliza, dentre outros fatores, da presença das memórias de toda
sua ancestralidade passada, e das projeções de sua descendência futura. Esse
tipo de magia, embora simples e poderosa, é delicada e perigosa, porque guarda
um potencial muito grande de comprometer não somente a pessoa que comete uma
falha, mas todos os que estão ligados a ela pelo sangue em um certo número de
gerações que, a depender do caso, pode ser maior ou menor.
Por fim, é possível dizer –
embora não eu não possa aprofundar muito este tópico em específico – que as
memórias são preservadas também no mundo espiritual e não somente no mundo
físico. Há um local no mundo espiritual onde tudo que diz respeito às árvores
de sangue e espírito fica armazenado, tal como há uma lembrança de tudo que um
espírito imortal viveu em suas incontáveis existências. Para aqueles que sabem
utilizar esse mistério, muito pode ser aprendido.
Reencarnação e Ancestralidade
Além da natureza dos
ancestrais, de gênios familiares de outras figuras presentes no que se
considera culto ancestral, uma dúvida frequente das pessoas é a compatibilidade
de um culto aos antepassados com a noção de reencarnação, muito popular no
Brasil pelo menos desde a chegada do kardecismo. Em primeiro lugar precisamos
entender, como já mencionei no início do texto, que o fenômeno da morte e da
existência no além é complexo, multifacetado e capaz de interpretações
divergentes a partir do ponto de vista que se analisa a questão, e das
terminologias empregadas nessa análise.
Nossa constituição é múltipla.
Para o olhar da tradição, o sagrado coração é o espírito imortal de cada ser
vivo e ele é o verdadeiro “eu”. A alma é um corpo para o sagrado coração, uma
forma por meio da qual ele pode experimentar da existência manifesta. Para o espírito
imortal não existe tempo e não existe espaço, pois ele vive na eternidade. A
sua manifestação, ocupando a alma que o recebe, pode acontecer em mais de um
lugar e em mais de um tempo paralelamente. Isso implica reconhecer que numa
perspectiva de tempo cíclico, todas as encarnações de um mesmo espírito imortal
estão acontecendo de uma vez só, como raios distintos saindo do centro de uma
circunferência e atingindo os seus limites exteriores em pontos diferentes da
sua extensão.
Em contraposição ao fenômeno da
encarnação do espírito imortal, existem possibilidades de renascimento da alma
que o contém. Esse renascimento pode se dar com o mesmo espírito ou com outro
espírito de uma mesma árvore familiar. Autores ligados ao perenialismo
como Evola e Guenón costumam afirmar que a única possibilidade daquilo que se
cunhou como “reencarnação” após o kardecismo é em realidade esse renascimento
de características físicas ou psicológicas do indivíduo, que em nada teriam
ligação com o espírito verdadeiro.
Dadas as infindáveis conversas
que já tive sobre esse assunto com pessoas mais velhas e mais sábias, e com os
próprios Antigos, tanto a visão que restringe a realidade do espírito imortal a
uma experiência de uma única vida neste plano (como é a visão dos
perenialistas) quanto a visão que entabula uma regra geral sobre uma
reencarnação total do espírito e da alma numa linha de produção cósmica
incessante (como é a visão proposta por Kardec e adotada de forma ridiculamente
pouco crítica até mesmo por pretensos ocultistas da mão esquerda) são
visões extremas e pouco assertivas de uma realidade que é – para repetir mais
uma vez – complexa.
A reencarnação do espírito é
uma realidade que ocorre, e que não significa a anulação de uma encarnação
pretérita deste mesmo espírito. Do mesmo modo os renascimentos de aspectos da
alma dentro da linha familiar ou iniciática são fenômenos que também acontecem,
e que podem ser confundidos com outra coisa numa visão mais simplória de
reencarnação que desconsidere a multiplicidade de partes do ser. Em nada estes
dois fenômenos anulam ou invalidam a existência dos ancestrais, a relevância da
ligação que existe entre todos os membros de uma linhagem e a importância –
dado este contexto – de um culto ancestral bem-feito. Pelo contrário, a
relevância da ancestralidade só deveria ser ressaltada pela compreensão de que,
em sucessivas e múltiplas possibilidades de existência – neste mundo ou no
próprio mundo espiritual –, nós estamos ainda amarrados uns aos outros pela
nossa própria natureza.
Fechamento da Parte 1 – A importância de
tentar ultrapassar dificuldades
No decorrer dessa primeira
parte do texto procurei esmiuçar – a partir das lentes de minha tradição – a
relevância do culto ancestral, quais são os seres espirituais que dele fazem
parte ou por ele são impactados. Esse é o começo de um entendimento um pouco
mais profundo sobre ancestralidade, e sobre a relevância que ela carrega
consigo para vários aspectos de nossas vidas, e da existência daqueles que nos
precederam. Resta, porém um questionamento que muitas pessoas são obrigadas a
fazer: E se eu simplesmente odeio meus familiares, ou não tenho nenhuma
proximidade com eles por qualquer motivo? O que se pode dizer sobre culto
aos ancestrais para quem foi machucado pela família na qual nasceu, ou para
quem nunca pode conhecer a própria família biológica?
São muitas nuances, porque
ancestralidade não é um tema simples. Algumas coisas de cunho mais prático
ficarão para a segunda parte deste texto, mas posso externar agora alguns
pontos sobre tais dilemas na relação com a ancestralidade:
O primeiro deles é que uma
árvore familiar, por mais tóxica que seja, não é isenta de bons membros, ainda
que distantes, e estes bons membros podem sempre oferecer algum nível de apoio
e suporte. Mas a questão se espraia para além dos bons e dos maus antepassados.
Cultuar a ancestralidade como um todo tem mais a ver com o seu local no
espaço-tempo, e com quem você é, de onde veio e para onde vai, do que com
antepassados específicos que tem consigo as suas mazelas. Certamente é difícil
lidar com as pessoas, estejam vivas ou mortas, e casos extremos justificam a
punição com o esquecimento de alguns nomes da linhagem. Mas nada pode mudar o
pertencimento de um indivíduo à teia de vida e morte que o originou. Se há
vontade em aprofundar o caminho espiritual, e o caminho espiritual pressupor um
mínimo respeito à ancestralidade, será inevitável encarar de frente os
problemas de ordem relacional e sentimental que estiverem intrínsecos a esse
complexo. Com a terapia em dia, e a cautela para não avançar além de seus limites,
a devoção aos gênios familiares e à coletividade inominada dos ancestrais pode
ser um bom lugar para começar, e a busca por amparo de ancestrais de valor –
escondidos no meio de uma genealogia aparentemente desgraçada – pode ser um
segundo passo a considerar.
Em segundo lugar, pessoas que
cresceram longe de sua família biológica podem sentir dificuldade ou
incompatibilidade com esse tópico, mas como foi dito acima, a árvore ancestral
é composta não somente de sangue, mas também de espírito. Uma criança adotada
por uma nova família passa a criar vínculos espirituais profundos com a família
adotiva, fazendo parte da ancestralidade que a ela pertence como se esta fosse
uma linhagem iniciática. Em paralelo, ela continua vinculada à linhagem
familiar de sua origem sanguínea. Um culto ancestral realizado por uma pessoa
nessa condição, impactará não apenas uma, mas ambas as linhagens das quais ela
faz parte. O mesmo pode ser dito quando o culto ancestral se volta a linhagens
iniciáticas fidedignas.
Muitas vezes, somos chamados a
cuidar de assuntos que não nos parecem dizer respeito. Muitas vezes temos
conflitos graves com nossos familiares, e nem sempre uma boa relação é
possível. Mas há na possibilidade de um culto ancestral a chance de ultrapassar
as pessoas e suas virtudes e defeitos, mirando em um todo maior e muito mais
complexo. Podemos nos sentir minúsculos diante da vida em várias situações, mas
quando estamos alinhados ao todo do qual viemos, somos maiores do que qualquer
desafio.
Espero que essa primeira parte
do texto tenha sido útil para aproximar vocês, leitores interessados, de uma
maior comunhão com as suas próprias ancestralidades. Acompanhem nos próximos
dias a postagem da parte prática deste texto, para algumas dicas e orientações
sobre como manter um culto ancestral domiciliar, como fazer as visitações aos
túmulos de seus antepassados e alguns outros detalhes que podem ser úteis a
quem busca os meios de trilhar este caminho.
Que a Morte, a senhora que a
todos abraça, permita que a reunião com os seus antepassados seja próspera e feliz!
Memento Mori - Jozef Hanula (1901)
Recomendações
Este texto baseia-se quase que totalmente na
tradição e nas experiências da oralidade, mas algumas recomendações para os
interessados em estudar existem. Conforme novas surgirem, vou inseri-las aqui e
também na página “Recomendações”.
Italian Folk Magic – Mary Grace Fahrun : Um livro voltado à magia folclórica italiana
na diáspora para os Estados Unidos, oferece um lampejo significativo de como
este universo encara a espiritualidade doméstica e alguns aspectos da relação
com a ancestralidade.
Cidade Antiga – Fustel de Coulanges : Livro que me foi recomendado pelo Vinícius
Pimentel, por abordar o culto aos mortos na antiguidade, uma das raízes do
culto ancestral nas práticas tradicionais que ainda sobrevivem na nossa
sociedade.
Slavic Witchcraft: Old World Conjuring
Spells and Folklore – Natasha Helvin
: Um livro voltado às práticas mágicas de origem eslava, escrito por uma filha
da diáspora para os Estados Unidos. Oferece um olhar sobre diversas práticas e
superstições russas sobre os mortos que em parte são muito semelhantes à
cosmovisão apontada por mim neste texto.
Consorting With Spirits – Jason Miller : Não é um livro sobre ancestralidade, mas
na minha opinião é o melhor livro já escrito sobre o trabalho com espíritos por
um praticante de magia. O autor destrincha assuntos complexos de forma objetiva,
direta e inteligível, e desconstrói muitos equívocos (tanto de pretensos
tradicionalistas puristas quanto de ecléticos modernos sem juízo), fornecendo
uma abordagem para a relação com os seres espirituais que é equilibrada,
responsável e eficaz, abrangendo desde uma cosmovisão politeísta até a
cosmovisão cristã-herética e diabolista. Não exagero ao dizer que foram este
autor e suas obras que fizeram renascer algum entusiasmo em mim para ler obras
escritas por autores do meio esotérico novamente.
Na minha tradição familiar o fogo do Sagrado Coração provém da Pombinha do Divino que reabastece ele sempre que cumprimos com nossas obrigações espirituais. Uma parada bem "Veni Creator" só que envolvendo criaturas não-humanas também ❤️🔥🕊️
ResponderExcluirIsso é muito similar ao nosso entendimento. Quem é vc? Hahaha
ExcluirExcelente texto. Você deveria lançar um livro.
ResponderExcluirAprendendo muito com suas postagens! Gratidão 💚
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