quinta-feira, 20 de julho de 2023

SANGUE BRUXO: Comentários sobre sangue, marca e a bruxaria como condição pessoal

O texto a seguir é a expansão de um pequeno ensaio que escrevi em 2020 sobre os conceitos mais tradicionais que conheço sobre sangue e marca na bruxaria. Ele integra uma parte do meu livro sobre stregoneria que está em processo de escrita, especificamente no capítulo dedicado a delinear o conceito de bruxaria segundo nosso entendimento.



Satã marca a fronte de uma aprendiz de bruxaria - Francesco Guazzo (c. 1626).

Algumas das fantasias mais comercializadas na bruxaria contemporânea são os conceitos de marca de bruxa e do sangue bruxo, mas ambos são conceitos muito mais complexos do que se supõe e que infelizmente vem sendo usados há muito tempo como desculpa para um elitismo espiritual, bem como justificativa arbitrária para aceitar ou rejeitar pessoas em grupos destinados ao tema. Longe de serem originalmente justificativas para que um grupo de pessoas se sinta especial perante o resto da humanidade, como se pertencesse a uma raça superior, a marca bruxa e o sangue bruxo são respectivamente símbolo e característica do pertencimento de um indivíduo a uma linhagem espiritual.

Começando pelo primeiro, a marca de bruxa é uma ideia que toma forma melhor delineada no medievo, e funcionaria como símbolo de pertencimento da bruxa ao Diabo, mais ou menos da forma como o gado é marcado para que se saiba quem é o seu proprietário. Entretanto, a lógica se expande para além da questão puramente diabólica. Marcas de nascença tornam-se frequentemente a comprovação fisiológica de dons espirituais pertencentes àqueles que as possuem. O sinal, dentro de certas tradições, de que o indivíduo é pertencente à raça bruxa ou é ele próprio uma qualidade específica de bruxo, como é o caso dos benandanti friulanos que sempre nascem com o pelico, da animulara siciliana que nasce com um vestígio de cauda ou da janara da Campania que por vezes ostenta um terceiro mamilo. Eu mesmo já conheci algumas dessas pessoas.

Algumas tradições concebem também marcas ritualisticamente infligidas quando da iniciação, ou mesmo marcas espirituais que ativam uma repercussão no corpo físico em determinada idade, como um ferimento específico ocorrido em sucessivas gerações da família, sempre na mesma idade e no mesmo local do corpo. Na mesma linha, existem marcas espirituais que atuam como os chacras na cosmovisão hindu tradicional, ou seja, como pontos no corpo que são intencionalmente divinizados com determinada força espiritual visando determinado propósito. A estrela denominada Marca de Caim sobre a testa pode ser, talvez, o maior exemplo deste tipo de marca, sobre a qual os adeptos da Cultus Sabbati versam em alguns dos seus materiais publicados.



Caim e Abel - Orazio Riminaldi (séc. XVII)

Já quando falamos de sangue bruxo podemos estar falando tanto de uma herança ancestral quanto de uma abstração que identifica supostas “raças espirituais”. Abordemos agora a primeira hipótese...

Apesar da quantidade de fraudes que alegam serem netas de bruxas queimadas na Inquisição ou iniciadas pela avó wiccana, o sangue bruxo é mais comum do que se pensa. Ele é constituído pela transmissibilidade sanguínea, física e espiritual, dos dons hereditários e do poder ancestral de uma linhagem que remonta a praticantes de bruxaria.

Quando uma pessoa se torna bruxa, por quaisquer métodos que isso ocorra, a sua própria constituição é afetada pelo poder recebido, de forma que a memória familiar contida no sangue que será transmitido aos seus descendentes carregará parte do poder que foi desenvolvido através da iniciação, do aprendizado e da prática da magia. Os potenciais despertos e aperfeiçoados do indivíduo serão relembrados pela memória sanguínea – ou genética, se preferir – e pela herança espiritual de sua prole. Os fenômenos de êxtase, a iluminação experimentada nos ritos “sabáticos” e o contato com os espíritos poderosos serão transmitidos através de atavismos, que são reforçados posteriormente como instintos, inclinações, aptidões e até sincronicidades – através de toda a força subliminar do inconsciente.

Anos e anos mais tarde, caso a sabedoria operativa e filosófica da tradição se perca, este potencial contido no sangue dos descendentes da bruxa acabará aflorando e causando manifestações das mais variadas. Arroubos de mediunidade, visões, transes, a perspicácia da intuição, ou mesmo o interesse ferino na obtenção do poder mágico e da sabedoria oculta. Este fenômeno não é aleatório e incidental, mas sim planejado na tessitura do destino e – segundo muitos acreditam – regulado pelas leis da Sociedade Bruxa, o conclave dos Antigos ou “mortos poderosos”, também chamado por alguns praticantes de A Companhia Oculta. Dentro do folclore que conheço, dá-se a tal fenômeno de retorno do sangue bruxo adormecido o nome de risorgimento, e é através dele que a sabedoria de linhagens bruxas, interrompidas pelas adversidades da vida, pode retornar a este mundo. Isto não ocorre como uma ressurreição ipsis literis da tradição que houver se perdido, mas sim como uma “reencarnação” dos pressupostos espirituais que dão fundamentação à mesma, através de um novo contexto e um novo desenvolvimento, frequentemente atrelado aos outros caminhos e tradições vivas que forem trilhados pelo indivíduo que é o foco da ressurgência. Um caminho tradicional, para expandir-se ou renascer, necessita fazê-lo à sombra de outro caminho tradicional que esteja vivo.

As origens do sangue bruxo, em sua conceituação ligada à ancestralidade, podem ser as mais variadas. Ele pode ser conferido por seres divinizados que possuam ligação com as tradições bruxas, ou por seres espirituais não-humanos (aquilo que chamamos raça demoníaca, cuja definição se assemelha a do termo daimon, ou ao conceito brasileiro de seres encantados).  Usualmente, ocorre a inserção do poder e do sangue demoníaco de espíritos poderosos no próprio sangue da linhagem, seja através da via iniciática, que pressupõe uma comunhão na qual sangue humano e demoníaco se sobrepõem dentro do mesmo indivíduo para serem transmitidos a partir dele, seja pela via da concepção, na qual se entende mitologicamente que uma nova geração de pessoas é criada a partir do cruzamento com a raça demoníaca. Se tal cruzamento é físico ou metafísico resta a cada tradição e seu folclore próprio estabelecer, atentando às fronteiras mais ou menos flexíveis de sua própria racionalidade e ceticismo. Já conheci praticantes que optavam por ver estes mitos como metáforas, e já convivi com pessoas que os consideram uma verdade literal.



The Fisherman and The Siren - Frederic Leighton (1856-1858)

Já o segundo conceito de sangue bruxo, que utiliza o termo como um denominador de raças espirituais, é bem mais abstrato e aberto. A ideia, que não é sempre homogênea, parte do pressuposto de que existiriam diversas qualidades de espíritos humanos, e algumas destas qualidades seriam propícias a serem iniciadas como bruxas e outras não. É o famoso conceito do homem de barro (Abel) e do homem de fogo (Caim). A diferença não estaria numa herança ancestral genealogicamente rastreável, mas sim numa ancestralidade espiritual cuja comprovação depende de aspectos que eu considero demasiado subjetivos e personalíssimos, como a sede por conhecimento oculto ou a “inspiração revolucionária” na personalidade do sujeito. Tais conceitos de “raça espiritual” possuem incontáveis abordagens distintas a depender da tradição e da escola de pensamento da qual se parte. Alguns tomam a teosofia e o esoterismo francês do século XVIII como referenciais para esse tema, e outros buscam paralelos em outras vertentes. Em razão do meu desconhecimento do assunto, não pretendo explorar além deste limite esse segundo conceito de sangue dentro das linhagens de bruxaria.

De todo modo, é imperativo compreender que o “sangue bruxo” implica em aptidão nata para a magia e a vivência da bruxaria, algo próximo a uma vocação, que pode ser utilizada como critério para a entrada do indivíduo em um contexto de aprendizado. Isso se dá de inúmeras formas e através de inúmeras possibilidades de teste ou condicionamento filosófico e pragmático, e cada tradição possui o ônus e o bônus de decidir quais as melhores formas de lidar com a questão.

***

Assim como escreveu Andrew Chumbley em um de seus textos[1], eu também compreendo que a bruxaria não é promissora para todos, nem segura para todos. É em muitos aspectos uma prática fechada aos que receberam as suas chaves de acesso ou que se provaram dignos de acessá-la através de um processo iniciático real, por vezes muito exigente. E apesar disso eu penso, talvez de forma um pouco menos conservadora do que muitos praticantes tradicionais, que as noções de sangue bruxo e marca da bruxa devem ser compreendidos como os indicadores de uma vocação, e não como uma sentença absoluta que separa os que devem ser ensinados e os que devem ser rejeitados. Afinal, toda tradição, mesmo que seja inteiramente consanguínea – o que é raro –, começou com a iniciação de uma pessoa que não era bruxa.

O sangue guarda poder e memória, e pode abrir portas, mas trilhar o caminho é e sempre foi uma escolha e uma jornada pessoal, mesmo quando o acesso a ele é recebido formalmente das mãos de uma geração anterior que o percorreu.

Assim, posso definir que o conceito de bruxaria segundo os pressupostos da tradição na qual estou inserido seria o de uma condição pessoal de empoderamento, na qual o indivíduo é capaz de operar certos resultados mágicos a partir de si mesmo, com ou sem o auxílio de elementos externos, e através do qual existe um comungar com as potências do Cosmos, com os seres espirituais provenientes da natureza ao redor e da ancestralidade. Enquanto condição, a bruxaria é determinada pelo sangue, pela marca ou pela iniciação – sendo diversos os meios de recebimento do laço iniciático. A bruxaria é condição e aptidão, antes de ser ofício, e essa é a razão pela qual alguns de seus membros não trabalham pública e ostensivamente como feiticeiros ou curandeiros, mantendo a utilização de seus saberes a nível de usufruto pessoal ou familiar, conforme desejarem. O inverso também é verdadeiro: sendo a bruxaria condição antes de ser ofício, não basta praticar as receitas, dizer os conjuros e se autoafirmar para efetivamente ser bruxo, pois a realização dos feitos que se desdobram da bruxaria depende de que a condição pessoal para tal seja pré-existente.

Afirmar a bruxaria como condição pessoal não se trata de uma tentativa de exclusão, pois existem diversos métodos para buscar iniciação, seja junto a outros bruxos que podem transmitir o laço iniciático, ou através do congresso com os seres espirituais – o que é um processo muito mais difícil e muito mais perigoso, por várias razões. Trata-se, ao contrário, de reconhecer que a simples identificação pessoal com o caminho não torna ninguém bruxo segundo os parâmetros tradicionais, pois algo do mundo espiritual precisa necessariamente ser obtido ou recebido para que o indivíduo adentre a Società, e é esse algo que diferencia os bruxos reais daqueles que acreditam trilhar o caminho, sem nunca ter pisado nele de verdade.

A título de recomendação, eu aconselharia o leitor interessado a tomar muito cuidado com os discursos em torno do sangue bruxo e da marca espiritual, já que eles podem facilmente ser usados para massagear o ego e a vaidade de pessoas sem escrúpulos, e para selecionar candidatos arbitrariamente para seus círculos – às vezes sendo estes círculos não mais do que frutos espúrios de grupos e “tradições” que nem mesmo são reais.

Por tudo que já vi e ouvi, eu acredito que se você for para o caminho, o caminho chegará até você, tenha você um antepassado que já o percorreu ou não. Seja pelo sangue, pela iniciação ou pelo congresso vertical com os seres espirituais, aqueles que tem o ingresso nestes mistérios como parte de seu destino adentrarão à Arte Bruxa de um modo ou de outro.

Isso é o que eu acredito, e o que eu aprendi com os meus.


 



[1] Magick is not for All, Oppuscula Magica



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