O texto a seguir é a expansão de um pequeno ensaio que escrevi em 2020 sobre os conceitos mais tradicionais que conheço sobre sangue e marca na bruxaria. Ele integra uma parte do meu livro sobre stregoneria que está em processo de escrita, especificamente no capítulo dedicado a delinear o conceito de bruxaria segundo nosso entendimento.
Satã marca a fronte de uma aprendiz de bruxaria - Francesco Guazzo (c. 1626). |
Algumas das fantasias mais comercializadas na bruxaria contemporânea são os conceitos de marca de bruxa e do sangue bruxo, mas ambos são conceitos muito mais complexos do que se supõe e que infelizmente vem sendo usados há muito tempo como desculpa para um elitismo espiritual, bem como justificativa arbitrária para aceitar ou rejeitar pessoas em grupos destinados ao tema. Longe de serem originalmente justificativas para que um grupo de pessoas se sinta especial perante o resto da humanidade, como se pertencesse a uma raça superior, a marca bruxa e o sangue bruxo são respectivamente símbolo e característica do pertencimento de um indivíduo a uma linhagem espiritual.
Começando pelo primeiro, a
marca de bruxa é uma ideia que toma forma melhor delineada no medievo, e
funcionaria como símbolo de pertencimento da bruxa ao Diabo, mais ou menos da
forma como o gado é marcado para que se saiba quem é o seu proprietário.
Entretanto, a lógica se expande para além da questão puramente diabólica.
Marcas de nascença tornam-se frequentemente a comprovação fisiológica de dons
espirituais pertencentes àqueles que as possuem. O sinal, dentro de certas
tradições, de que o indivíduo é pertencente à raça bruxa ou é ele próprio uma
qualidade específica de bruxo, como é o caso dos benandanti friulanos
que sempre nascem com o pelico, da animulara siciliana que nasce com um
vestígio de cauda ou da janara da Campania que por vezes ostenta um
terceiro mamilo. Eu mesmo já conheci algumas dessas pessoas.
Algumas tradições concebem
também marcas ritualisticamente infligidas quando da iniciação, ou mesmo marcas
espirituais que ativam uma repercussão no corpo físico em determinada idade,
como um ferimento específico ocorrido em sucessivas gerações da família, sempre
na mesma idade e no mesmo local do corpo. Na mesma linha, existem marcas espirituais
que atuam como os chacras na cosmovisão hindu tradicional, ou seja, como
pontos no corpo que são intencionalmente divinizados com determinada força
espiritual visando determinado propósito. A estrela denominada Marca de Caim
sobre a testa pode ser, talvez, o maior exemplo deste tipo de marca, sobre a
qual os adeptos da Cultus Sabbati versam em alguns dos seus materiais
publicados.
Caim e Abel - Orazio Riminaldi (séc. XVII) |
Já quando falamos de sangue
bruxo podemos estar falando tanto de uma herança ancestral quanto de uma
abstração que identifica supostas “raças espirituais”. Abordemos agora a
primeira hipótese...
Apesar da quantidade de fraudes
que alegam serem netas de bruxas queimadas na Inquisição ou iniciadas pela avó
wiccana, o sangue bruxo é mais comum do que se pensa. Ele é constituído pela
transmissibilidade sanguínea, física e espiritual, dos dons hereditários e do
poder ancestral de uma linhagem que remonta a praticantes de bruxaria.
Quando uma pessoa se torna
bruxa, por quaisquer métodos que isso ocorra, a sua própria constituição é
afetada pelo poder recebido, de forma que a memória familiar contida no sangue
que será transmitido aos seus descendentes carregará parte do poder que foi
desenvolvido através da iniciação, do aprendizado e da prática da magia. Os
potenciais despertos e aperfeiçoados do indivíduo serão relembrados pela
memória sanguínea – ou genética, se preferir – e pela herança espiritual de sua
prole. Os fenômenos de êxtase, a iluminação experimentada nos ritos “sabáticos”
e o contato com os espíritos poderosos serão transmitidos através de atavismos,
que são reforçados posteriormente como instintos, inclinações, aptidões e até
sincronicidades – através de toda a força subliminar do inconsciente.
Anos e anos mais tarde, caso a
sabedoria operativa e filosófica da tradição se perca, este potencial contido
no sangue dos descendentes da bruxa acabará aflorando e causando manifestações
das mais variadas. Arroubos de mediunidade, visões, transes, a perspicácia da
intuição, ou mesmo o interesse ferino na obtenção do poder mágico e da
sabedoria oculta. Este fenômeno não é aleatório e incidental, mas sim planejado
na tessitura do destino e – segundo muitos acreditam – regulado pelas leis da
Sociedade Bruxa, o conclave dos Antigos ou “mortos poderosos”, também chamado
por alguns praticantes de A Companhia Oculta. Dentro do folclore que
conheço, dá-se a tal fenômeno de retorno do sangue bruxo adormecido o nome de risorgimento,
e é através dele que a sabedoria de linhagens bruxas, interrompidas pelas
adversidades da vida, pode retornar a este mundo. Isto não ocorre como uma
ressurreição ipsis literis da tradição que houver se perdido, mas sim
como uma “reencarnação” dos pressupostos espirituais que dão fundamentação à
mesma, através de um novo contexto e um novo desenvolvimento, frequentemente
atrelado aos outros caminhos e tradições vivas que forem trilhados pelo indivíduo
que é o foco da ressurgência. Um caminho tradicional, para expandir-se ou renascer,
necessita fazê-lo à sombra de outro caminho tradicional que esteja vivo.
As origens do sangue bruxo, em
sua conceituação ligada à ancestralidade, podem ser as mais variadas. Ele pode
ser conferido por seres divinizados que possuam ligação com as tradições
bruxas, ou por seres espirituais não-humanos (aquilo que chamamos raça demoníaca,
cuja definição se assemelha a do termo daimon, ou ao conceito brasileiro
de seres encantados). Usualmente, ocorre
a inserção do poder e do sangue demoníaco de espíritos poderosos no próprio
sangue da linhagem, seja através da via iniciática, que pressupõe uma comunhão
na qual sangue humano e demoníaco se sobrepõem dentro do mesmo indivíduo para
serem transmitidos a partir dele, seja pela via da concepção, na qual se
entende mitologicamente que uma nova geração de pessoas é criada a partir do
cruzamento com a raça demoníaca. Se tal cruzamento é físico ou metafísico resta
a cada tradição e seu folclore próprio estabelecer, atentando às fronteiras
mais ou menos flexíveis de sua própria racionalidade e ceticismo. Já conheci
praticantes que optavam por ver estes mitos como metáforas, e já convivi com
pessoas que os consideram uma verdade literal.
The Fisherman and The Siren - Frederic Leighton (1856-1858) |
Já o segundo conceito de sangue
bruxo, que utiliza o termo como um denominador de raças espirituais, é bem mais
abstrato e aberto. A ideia, que não é sempre homogênea, parte do pressuposto de
que existiriam diversas qualidades de espíritos humanos, e algumas destas
qualidades seriam propícias a serem iniciadas como bruxas e outras não. É o
famoso conceito do homem de barro (Abel) e do homem de fogo (Caim). A diferença
não estaria numa herança ancestral genealogicamente rastreável, mas sim numa
ancestralidade espiritual cuja comprovação depende de aspectos que eu considero
demasiado subjetivos e personalíssimos, como a sede por conhecimento oculto ou
a “inspiração revolucionária” na personalidade do sujeito. Tais conceitos de “raça
espiritual” possuem incontáveis abordagens distintas a depender da tradição e
da escola de pensamento da qual se parte. Alguns tomam a teosofia e o
esoterismo francês do século XVIII como referenciais para esse tema, e outros
buscam paralelos em outras vertentes. Em razão do meu desconhecimento do
assunto, não pretendo explorar além deste limite esse segundo conceito de
sangue dentro das linhagens de bruxaria.
De todo modo, é imperativo
compreender que o “sangue bruxo” implica em aptidão nata para a magia e a
vivência da bruxaria, algo próximo a uma vocação, que pode ser utilizada como
critério para a entrada do indivíduo em um contexto de aprendizado. Isso se dá
de inúmeras formas e através de inúmeras possibilidades de teste ou
condicionamento filosófico e pragmático, e cada tradição possui o ônus e o
bônus de decidir quais as melhores formas de lidar com a questão.
***
Assim como escreveu
Andrew Chumbley em um de seus textos[1], eu também compreendo
que a bruxaria não é promissora para todos, nem segura para todos. É em muitos
aspectos uma prática fechada aos que receberam as suas chaves de acesso ou que
se provaram dignos de acessá-la através de um processo iniciático real, por
vezes muito exigente. E apesar disso eu penso, talvez de forma um pouco menos
conservadora do que muitos praticantes tradicionais, que as noções de sangue
bruxo e marca da bruxa devem ser compreendidos como os indicadores de uma
vocação, e não como uma sentença absoluta que separa os que devem ser ensinados
e os que devem ser rejeitados. Afinal, toda tradição, mesmo que seja
inteiramente consanguínea – o que é raro –, começou com a iniciação de uma
pessoa que não era bruxa.
O sangue
guarda poder e memória, e pode abrir portas, mas trilhar o caminho é e sempre
foi uma escolha e uma jornada pessoal, mesmo quando o acesso a ele é recebido
formalmente das mãos de uma geração anterior que o percorreu.
Assim, posso
definir que o conceito de bruxaria segundo os pressupostos da tradição na qual
estou inserido seria o de uma condição pessoal de empoderamento, na qual o
indivíduo é capaz de operar certos resultados mágicos a partir de si mesmo, com
ou sem o auxílio de elementos externos, e através do qual existe um comungar
com as potências do Cosmos, com os seres espirituais provenientes da natureza
ao redor e da ancestralidade. Enquanto condição, a bruxaria é determinada pelo
sangue, pela marca ou pela iniciação – sendo diversos os meios de recebimento
do laço iniciático. A bruxaria é condição e aptidão, antes de ser
ofício, e essa é a razão pela qual alguns de seus membros não trabalham pública
e ostensivamente como feiticeiros ou curandeiros, mantendo a utilização de seus
saberes a nível de usufruto pessoal ou familiar, conforme desejarem. O inverso
também é verdadeiro: sendo a bruxaria condição antes de ser ofício, não basta
praticar as receitas, dizer os conjuros e se autoafirmar para efetivamente ser
bruxo, pois a realização dos feitos que se desdobram da bruxaria depende de que
a condição pessoal para tal seja pré-existente.
Afirmar a
bruxaria como condição pessoal não se trata de uma tentativa de
exclusão, pois existem diversos métodos para buscar iniciação, seja junto a
outros bruxos que podem transmitir o laço iniciático, ou através do congresso
com os seres espirituais – o que é um processo muito mais difícil e muito mais
perigoso, por várias razões. Trata-se, ao contrário, de reconhecer que a
simples identificação pessoal com o caminho não torna ninguém bruxo segundo os
parâmetros tradicionais, pois algo do mundo espiritual precisa necessariamente
ser obtido ou recebido para que o indivíduo adentre a Società, e é esse
algo que diferencia os bruxos reais daqueles que acreditam trilhar o caminho,
sem nunca ter pisado nele de verdade.
A título de
recomendação, eu aconselharia o leitor interessado a tomar muito cuidado com os
discursos em torno do sangue bruxo e da marca espiritual, já que eles podem
facilmente ser usados para massagear o ego e a vaidade de pessoas sem
escrúpulos, e para selecionar candidatos arbitrariamente para seus círculos – às
vezes sendo estes círculos não mais do que frutos espúrios de grupos e
“tradições” que nem mesmo são reais.
Por tudo que
já vi e ouvi, eu acredito que se você for para o caminho, o caminho chegará até
você, tenha você um antepassado que já o percorreu ou não. Seja pelo sangue,
pela iniciação ou pelo congresso vertical com os seres espirituais, aqueles que
tem o ingresso nestes mistérios como parte de seu destino adentrarão à Arte
Bruxa de um modo ou de outro.
Isso é o que
eu acredito, e o que eu aprendi com os meus.
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