Por Draco Stellamare
Um dos maiores mistérios – e controvérsias – existentes na história da bruxaria tradicional é o ritual denominado “Sabá das Bruxas”, ou como é conhecido em minha tradição, a Assembleia. Esse ritual foi imaginado e retratado por vários escritores, pintores e compositores desde que ganhou seus principais contornos e simbolismos pelas mãos que conduziram o Santo Ofício. Entre cópulas das bruxas com o Diabo sob a forma de um bode monstruoso, atos blasfemos com a iconografia católica e o osculum infame, o Sabá aterrorizou e estimulou a fantasia de gerações, sendo um tópico muito debatido na comunidade bruxa ainda hoje.
O Sabá das Bruxas - Franz Francken (1607) |
Eu poderia começar este texto
com uma longa introdução sobre a formação da ideia sobre o Sabá. Poderia
comentar sobre os elementos subliminares da espiritualidade céltica que o
embasaram em grande parte dos lugares onde sua mitologia mais prosperou.
Poderia comentar sobre sua gradual evolução – ocorrida forçosamente pela pressão
inquisitorial – a partir dos fenômenos extáticos como a caçada selvagem de
Odin, a batalha sazonal dos malandanti contra os benandanti e a procissão
dos mortos. Eu poderia inclusive discorrer sobre todas as nuances e
reinterpretações que foram feitas ao longo do desenvolvimento histórico desse
conceito, mencionando ideias como a tripartição de mundos e a viagem xamânica como
exemplificadas por Mircea Eliade ou as divagações de Castaneda, e indo até a
ressignificação moderna do “sabbat” como ritual sazonal politeísta. Mas esse
não é o meu objetivo com esse ensaio – a leitura de livros que já cansei de
indicar aqui pode suprir essa parte. O meu objetivo, em realidade, é abordar algumas
considerações sobre o Sabá a partir de uma perspectiva intimista e ao mesmo
tempo cautelosa, partindo do ponto de vista de quem buscou e vivenciou essa
experiência através das lentes de uma tradição específica e de quem agora lê e
ouve muita coisa vaga e fantasmagórica (para não dizer completamente surtada)
a esse respeito.
Vou começar do princípio.
A minha obsessão com o encontro
onírico das bruxas vem da tenra infância, devido ao fato de que minha linhagem
materna é oriunda da região friulana onde a Assembleia deixou uma
profunda marca no folclore e na superstição popular. Não é por acaso que as
tradições mágicas locais podem ser consideradas a coisa mais próxima de algum
possível legado deixado pelos benandanti e malandanti históricos
do Friuli, e pelos seus primos va kresnik e va kudlak da
Eslovênia. Mais do que isso, a tradição de mitos e práticas que carrego hoje
preservou entre seus conhecimentos um conjunto de instruções e fábulas morais
dedicadas aqueles que tivessem o interesse de ir até este encontro. Naturalmente,
poucas são as pessoas dispostas a esse tipo de experimento (e é talvez por
faltar um parafuso e meio em minha cabeça que eu me tornei uma delas).
Com o passar do tempo, me
lancei à odisseia de praticar os rituais de congresso com a Assembleia das
Bruxas, primeiro das formas mais simples indicadas pela oralidade de minhas
ancestrais, e depois com o complemento e auxílio de outras pessoas treinadas em
tradições de origem similar às minhas. Minha primeira decepção foi que o
processo não é instantâneo. Não existe algo como recitar as palavras mágicas e
ter uma experiência totalmente vivida e avassaladora da noite para o dia. Mais
do que isso, o que iniciou foi a construção de um relacionamento entre eu, os Antigos
que congregam desse mesmo rito e o rito em si. Quando menos esperava, as
experiências mais espontâneas e bizarras – similares às que eu tinha antes de
completar sete anos de idade – começaram a se repetir com maior frequência. Lampejos
de sonhos vívidos onde eu me encontrava com os mortos e os outros seres da tradição,
visões inesperadas durante distrações no dia a dia, dentre outros elementos
começaram a apontar para uma aproximação entre mim e o tão buscado fenômeno do
Sabá. Em alguns anos, vivenciei experiências fascinantes e concretas, experiências
assustadoras, e também experiências frustrantes e enganosas onde menos do que
eu esperava aconteceu. E tudo isso me mostrou que a entrada para a experiência
não depende somente de quem a busca, mas principalmente daqueles que estão do
outro lado e podem abrir ou fechar as portas da percepção.
O Sabá das Bruxas - Leonardo Alenza (1830) |
Mas certo, tendo comentado um
pouco da minha relação com o tema, o que exatamente é o Sabá aos olhos do meu
estudo e experiência? Tentarei responder ao mesmo tempo que encaminho essas
palavras para a reflexão crítica que é meu objetivo final.
Deixando de lado as partes que
não podem ser comentadas, o que pode ser dito sobre a Assembleia é que ela é um
encontro entre seres espirituais para comungar de um ritual que assume diversas
manifestações, todas voltadas ao mesmo propósito. Longe de ser apenas um
encontro de devotos de alguma deidade, o Sabá é a reunião da stregonesca
società, a sociedade das bruxas no mundo espiritual ou como alguns preferem
chamar, a companhia oculta. Não se trata de um simples encontro de
praticantes de magia no meio do mato ou em desdobramento coletivo no mundo dos
sonhos – em que pese alguns de seus supostos participantes descreverem o sabá
quase como um pique-nique ou uma ciranda de universitários – , mas sim da
congregação de membros de uma mesma corrente espiritual visando comungar do
poder que essa corrente carrega.
A compreensão mais tradicional
do Sabá é partilhada por quase todas as linhagens de bruxaria bem referenciadas
e esclarecidas que conheci até hoje. Andrew Chumbley o conceitua como um ritual
primordial, um congresso com a quintessência da magia que é então reificada no
físico – um “sonho feito carne”. Austin Osman Spare o relaciona ao trabalho com
os atavismos e o coloca dentro de sua dinâmica de Zos e Kia. Nas tradições de stregoneria
e de bruxaria eslava que já tive contato, o sabá e os rituais e experiências
equivalentes a ele são compreendidos como a participação do iniciado numa
experiência que o une a aspectos primordiais da criação, do Cosmos, e do
próprio divino transcendente através deles. O sabá é o congresso da alma de um
bruxo com os poderes primordiais da criação e o divino, que pode se dar mais
raramente de forma direta e abrasiva, e mais comumente através do intermédio
dos ancestrais e dos demônios (os seres não-humanos) que congregam do mesmo
rito.
Temos então que o Sabá ou
Assembleia é em essência algo de sublime. Ele tira seus participantes do lugar
comum no qual arrastam suas existências e os eleva a um estado de êxtase, de
poder e de gnose (aqui mencionada como ganho de conhecimento e aumento
de percepção). Quanto a suas manifestações, ele pode mais facilmente ser
encontrado no entre-mundos: o estado intermediário entre sono e vigília, entre a
vida e a morte, razão pela qual os unguentos e vinhos sabáticos são empregados
– não sempre para estimular alucinações, mas mais assertivamente para amortecer
a carne e a racionalidade de modo a permitir que a alma viaje até onde o
encontro se realiza, performando o famoso “voo noturno”. Isso não significa que
o Sabá não possa vir a nós, tal como pedimos que venha a nós o vosso reino
na oração do Pai-Nosso. A experiência de entrada na Assembleia das Bruxas pode
ser conquistada em vigília, através do transe ritual, do uso dos enteógenos
corretos e da prática consistente de conversação com os espíritos do caminho.
Temos no Sabá a contraparte da Missa cristã: um ritual eterno, que é presentificado
através de rito ou sonho, de modo que aqueles que dele participam possam ser unidos
“num só corpo e um só espírito”. Enquanto a Missa é a união pura e casta com um
Deus que é de natureza racional, o Sabá é a união selvagem e profana com um
Deus que é de natureza instintiva e primordial. E para muitos de nós, estes
dois eventos são duas faces de uma mesma moeda.
A título de comparação
adicional com coisas que estão mais próximas do entendimento do brasileiro, a
Assembleia como é compreendida em minha linhagem e em tantas outras possui um
paralelo significativo – a ponto de eu chegar a acreditar que são faces da
mesma experiência – com o efeito onírico causado pelo vinho da Jurema na
tradição do Catimbó, bem como (teorizo eu) com o estado de Santé que era
buscado nas reuniões do culto afro-brasileiro de Cabula, hoje extinto. Se
observarmos os fenômenos extáticos nas giras de Umbanda (pelo menos naquelas
com fundamento ancestral razoável) e nos xirês de Candomblé, observaremos que
existem pessoas que usufruem de um congresso poderosíssimo com o mundo
espiritual e o divino. É desse mesmo tipo de congresso vertical poderoso que se
trata a Assembleia. Tal como num transe de possessão nas religiões citadas, nem
sempre os processos de congresso com o Sabá são conscientes. Mas na maior parte
das vezes, e para a maioria das pessoas que usufruem deles, são em realidade
semi-conscientes ou quase totalmente inconscientes. É necessário um treino e
uma preparação – que as tradições via de regra podem ensinar – para que o
indivíduo encontre maior consciência e lucidez para reter aquilo que absorve no
processo. Há de se comentar que o próprio ingresso na experiência “sabática” é
como uma escada que se sobe um degrau por vez, ou como um pêndulo, que toma
força de acordo com os impulsos dados por quem o manipula e permite que se
viaje ora para um lado e ora para o outro lado – sendo estes lados a realidade
manifesta e a realidade transcendental do Sabá.
Ora, temos assim que a
Assembleia é um ritual primordial, com características plurais e muitas formas
distintas de manifestação, no qual os bruxos e bruxas congregam entre si e com
os poderes primordiais da criação e o divino transcendente – para nós o fogo
sagrado –, indo até este encontro pelo voo da alma, que pode ocorrer em
diferentes estágios de lucidez e de profundidade, e em diferentes planos de existência.
Temos também que esse ritual pode vir até o nosso mundo através do ritual e do
transe, e que seu maior propósito é conferir poder, conhecimento e êxtase.
Parece uma experiência sacrossanta o suficiente para ser tratada com cuidado,
certo?
Errado!
Pois a última moda é adentrar o
“sabá” com meditações imaginadas guiadas, fazer e acontecer, tratar o
Diabo e a “Rainha das Fadas” como se fossem seus melhores amigos, em nada diferenciando tais práticas das experiências de visualização criativa que se tem costumeiramente nos círculos de bruxaria moderna. Tornou-se lugar comum para várias pessoas tratar o Sabá como algo tão banal quanto uma intuição, uma inspiração, ou um exercício meditativo.
Não sei como posso dar MAIS
ênfase a isso que vou escrever agora do que já tento dar há anos, mas A
ASSEMBLEIA DAS BRUXAS NÃO É ALGO BANAL. O Sabá não é algo simples e
corriqueiro. Não é uma meditação imaginativa onde você se induz a visualizar
certas coisas acontecendo. É uma experiência que PRECISA ser carnal ao mesmo
tempo em que é espiritual. É uma ligação assombrosa com forças além da nossa
compreensão e que precisa – para que tenha sido acessada de forma construtiva –
retornar algum ganho a quem participa dela, seja em força vital, seja em
conhecimento, seja no que for. Por óbvio nem todas as experiências do gênero
são boas. Existem pessoas que se cansam muito nesses processos, mas usufruem de
trocas que valem todo o esforço e todo o desgaste.
O que não é plausível, é transformar
a prática mais marcante, desafiadora e sublime da bruxaria em um espetáculo de
fingimento para redes sociais. Não existe nada menos “sabático” do que isso. O
que tem valor, dentro de um caminho espiritual, deve ser buscado com alguma
mínima dose de respeito e reverência, além do bom senso de utilizar as técnicas
e procedimentos tradicionais para essa busca.
Sem o entendimento mínimo das
ervas utilizadas, sem dimensão alguma do que seja o mar sagrado – a água negra
da noite, atravessada por aqueles que buscam o ritual –, as chaves de acesso e
as portas que devem ser abertas, o melhor a fazer é não mexer com coisas
maiores do que a sua capacidade lhe permite.
O intuito desse texto, como espero
que fique claro, não é nem explicar com embasamento histórico sobre o Sabá, nem
me colocar como parâmetro de validação do que os outros fazem ou deixam de
fazer. Meu intuito é demonstrar por um pequeno vislumbre o quão profundo este
assunto pode ser, de modo que quem tiver um genuíno interesse de buscar a
experiência possa se preparar melhor para ela da forma que lhe for possível.
Sobre os espinheiros voam
aqueles que podem. Os que não podem, neles se retalharão... E o Diabo será a
eterna testemunha daqueles que tentarem.
Nessa ilustração há uma mulher em primeiro plano, que se parece muito com os retratos da rainha Elizabeth I. Há alguma relação?
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