sexta-feira, 8 de março de 2024

VISLUMBRES DO SABÁ: Um ensaio sobre a Assembleia das Bruxas

Por Draco Stellamare

Um dos maiores mistérios – e controvérsias – existentes na história da bruxaria tradicional é o ritual denominado “Sabá das Bruxas”, ou como é conhecido em minha tradição, a Assembleia. Esse ritual foi imaginado e retratado por vários escritores, pintores e compositores desde que ganhou seus principais contornos e simbolismos pelas mãos que conduziram o Santo Ofício. Entre cópulas das bruxas com o Diabo sob a forma de um bode monstruoso, atos blasfemos com a iconografia católica e o osculum infame, o Sabá aterrorizou e estimulou a fantasia de gerações, sendo um tópico muito debatido na comunidade bruxa ainda hoje.



O Sabá das Bruxas - Franz Francken (1607)


Eu poderia começar este texto com uma longa introdução sobre a formação da ideia sobre o Sabá. Poderia comentar sobre os elementos subliminares da espiritualidade céltica que o embasaram em grande parte dos lugares onde sua mitologia mais prosperou. Poderia comentar sobre sua gradual evolução – ocorrida forçosamente pela pressão inquisitorial – a partir dos fenômenos extáticos como a caçada selvagem de Odin, a batalha sazonal dos malandanti contra os benandanti e a procissão dos mortos. Eu poderia inclusive discorrer sobre todas as nuances e reinterpretações que foram feitas ao longo do desenvolvimento histórico desse conceito, mencionando ideias como a tripartição de mundos e a viagem xamânica como exemplificadas por Mircea Eliade ou as divagações de Castaneda, e indo até a ressignificação moderna do “sabbat” como ritual sazonal politeísta. Mas esse não é o meu objetivo com esse ensaio – a leitura de livros que já cansei de indicar aqui pode suprir essa parte. O meu objetivo, em realidade, é abordar algumas considerações sobre o Sabá a partir de uma perspectiva intimista e ao mesmo tempo cautelosa, partindo do ponto de vista de quem buscou e vivenciou essa experiência através das lentes de uma tradição específica e de quem agora lê e ouve muita coisa vaga e fantasmagórica (para não dizer completamente surtada) a esse respeito.

Vou começar do princípio.

A minha obsessão com o encontro onírico das bruxas vem da tenra infância, devido ao fato de que minha linhagem materna é oriunda da região friulana onde a Assembleia deixou uma profunda marca no folclore e na superstição popular. Não é por acaso que as tradições mágicas locais podem ser consideradas a coisa mais próxima de algum possível legado deixado pelos benandanti e malandanti históricos do Friuli, e pelos seus primos va kresnik e va kudlak da Eslovênia. Mais do que isso, a tradição de mitos e práticas que carrego hoje preservou entre seus conhecimentos um conjunto de instruções e fábulas morais dedicadas aqueles que tivessem o interesse de ir até este encontro. Naturalmente, poucas são as pessoas dispostas a esse tipo de experimento (e é talvez por faltar um parafuso e meio em minha cabeça que eu me tornei uma delas).

Com o passar do tempo, me lancei à odisseia de praticar os rituais de congresso com a Assembleia das Bruxas, primeiro das formas mais simples indicadas pela oralidade de minhas ancestrais, e depois com o complemento e auxílio de outras pessoas treinadas em tradições de origem similar às minhas. Minha primeira decepção foi que o processo não é instantâneo. Não existe algo como recitar as palavras mágicas e ter uma experiência totalmente vivida e avassaladora da noite para o dia. Mais do que isso, o que iniciou foi a construção de um relacionamento entre eu, os Antigos que congregam desse mesmo rito e o rito em si. Quando menos esperava, as experiências mais espontâneas e bizarras – similares às que eu tinha antes de completar sete anos de idade – começaram a se repetir com maior frequência. Lampejos de sonhos vívidos onde eu me encontrava com os mortos e os outros seres da tradição, visões inesperadas durante distrações no dia a dia, dentre outros elementos começaram a apontar para uma aproximação entre mim e o tão buscado fenômeno do Sabá. Em alguns anos, vivenciei experiências fascinantes e concretas, experiências assustadoras, e também experiências frustrantes e enganosas onde menos do que eu esperava aconteceu. E tudo isso me mostrou que a entrada para a experiência não depende somente de quem a busca, mas principalmente daqueles que estão do outro lado e podem abrir ou fechar as portas da percepção.



O Sabá das Bruxas - Leonardo Alenza (1830)


Mas certo, tendo comentado um pouco da minha relação com o tema, o que exatamente é o Sabá aos olhos do meu estudo e experiência? Tentarei responder ao mesmo tempo que encaminho essas palavras para a reflexão crítica que é meu objetivo final.

Deixando de lado as partes que não podem ser comentadas, o que pode ser dito sobre a Assembleia é que ela é um encontro entre seres espirituais para comungar de um ritual que assume diversas manifestações, todas voltadas ao mesmo propósito. Longe de ser apenas um encontro de devotos de alguma deidade, o Sabá é a reunião da stregonesca società, a sociedade das bruxas no mundo espiritual ou como alguns preferem chamar, a companhia oculta. Não se trata de um simples encontro de praticantes de magia no meio do mato ou em desdobramento coletivo no mundo dos sonhos – em que pese alguns de seus supostos participantes descreverem o sabá quase como um pique-nique ou uma ciranda de universitários – , mas sim da congregação de membros de uma mesma corrente espiritual visando comungar do poder que essa corrente carrega.

A compreensão mais tradicional do Sabá é partilhada por quase todas as linhagens de bruxaria bem referenciadas e esclarecidas que conheci até hoje. Andrew Chumbley o conceitua como um ritual primordial, um congresso com a quintessência da magia que é então reificada no físico – um “sonho feito carne”. Austin Osman Spare o relaciona ao trabalho com os atavismos e o coloca dentro de sua dinâmica de Zos e Kia. Nas tradições de stregoneria e de bruxaria eslava que já tive contato, o sabá e os rituais e experiências equivalentes a ele são compreendidos como a participação do iniciado numa experiência que o une a aspectos primordiais da criação, do Cosmos, e do próprio divino transcendente através deles. O sabá é o congresso da alma de um bruxo com os poderes primordiais da criação e o divino, que pode se dar mais raramente de forma direta e abrasiva, e mais comumente através do intermédio dos ancestrais e dos demônios (os seres não-humanos) que congregam do mesmo rito.

Temos então que o Sabá ou Assembleia é em essência algo de sublime. Ele tira seus participantes do lugar comum no qual arrastam suas existências e os eleva a um estado de êxtase, de poder e de gnose (aqui mencionada como ganho de conhecimento e aumento de percepção). Quanto a suas manifestações, ele pode mais facilmente ser encontrado no entre-mundos: o estado intermediário entre sono e vigília, entre a vida e a morte, razão pela qual os unguentos e vinhos sabáticos são empregados – não sempre para estimular alucinações, mas mais assertivamente para amortecer a carne e a racionalidade de modo a permitir que a alma viaje até onde o encontro se realiza, performando o famoso “voo noturno”. Isso não significa que o Sabá não possa vir a nós, tal como pedimos que venha a nós o vosso reino na oração do Pai-Nosso. A experiência de entrada na Assembleia das Bruxas pode ser conquistada em vigília, através do transe ritual, do uso dos enteógenos corretos e da prática consistente de conversação com os espíritos do caminho. Temos no Sabá a contraparte da Missa cristã: um ritual eterno, que é presentificado através de rito ou sonho, de modo que aqueles que dele participam possam ser unidos “num só corpo e um só espírito”. Enquanto a Missa é a união pura e casta com um Deus que é de natureza racional, o Sabá é a união selvagem e profana com um Deus que é de natureza instintiva e primordial. E para muitos de nós, estes dois eventos são duas faces de uma mesma moeda.




A título de comparação adicional com coisas que estão mais próximas do entendimento do brasileiro, a Assembleia como é compreendida em minha linhagem e em tantas outras possui um paralelo significativo – a ponto de eu chegar a acreditar que são faces da mesma experiência – com o efeito onírico causado pelo vinho da Jurema na tradição do Catimbó, bem como (teorizo eu) com o estado de Santé que era buscado nas reuniões do culto afro-brasileiro de Cabula, hoje extinto. Se observarmos os fenômenos extáticos nas giras de Umbanda (pelo menos naquelas com fundamento ancestral razoável) e nos xirês de Candomblé, observaremos que existem pessoas que usufruem de um congresso poderosíssimo com o mundo espiritual e o divino. É desse mesmo tipo de congresso vertical poderoso que se trata a Assembleia. Tal como num transe de possessão nas religiões citadas, nem sempre os processos de congresso com o Sabá são conscientes. Mas na maior parte das vezes, e para a maioria das pessoas que usufruem deles, são em realidade semi-conscientes ou quase totalmente inconscientes. É necessário um treino e uma preparação – que as tradições via de regra podem ensinar – para que o indivíduo encontre maior consciência e lucidez para reter aquilo que absorve no processo. Há de se comentar que o próprio ingresso na experiência “sabática” é como uma escada que se sobe um degrau por vez, ou como um pêndulo, que toma força de acordo com os impulsos dados por quem o manipula e permite que se viaje ora para um lado e ora para o outro lado – sendo estes lados a realidade manifesta e a realidade transcendental do Sabá.

Ora, temos assim que a Assembleia é um ritual primordial, com características plurais e muitas formas distintas de manifestação, no qual os bruxos e bruxas congregam entre si e com os poderes primordiais da criação e o divino transcendente – para nós o fogo sagrado –, indo até este encontro pelo voo da alma, que pode ocorrer em diferentes estágios de lucidez e de profundidade, e em diferentes planos de existência. Temos também que esse ritual pode vir até o nosso mundo através do ritual e do transe, e que seu maior propósito é conferir poder, conhecimento e êxtase. Parece uma experiência sacrossanta o suficiente para ser tratada com cuidado, certo?

Errado!

Pois a última moda é adentrar o “sabá” com meditações imaginadas guiadas, fazer e acontecer, tratar o Diabo e a “Rainha das Fadas” como se fossem seus melhores amigos, em nada diferenciando tais práticas das experiências de visualização criativa que se tem costumeiramente nos círculos de bruxaria moderna. Tornou-se lugar comum para várias pessoas tratar o Sabá como algo tão banal quanto uma intuição, uma inspiração, ou um exercício meditativo.

Não sei como posso dar MAIS ênfase a isso que vou escrever agora do que já tento dar há anos, mas A ASSEMBLEIA DAS BRUXAS NÃO É ALGO BANAL. O Sabá não é algo simples e corriqueiro. Não é uma meditação imaginativa onde você se induz a visualizar certas coisas acontecendo. É uma experiência que PRECISA ser carnal ao mesmo tempo em que é espiritual. É uma ligação assombrosa com forças além da nossa compreensão e que precisa – para que tenha sido acessada de forma construtiva – retornar algum ganho a quem participa dela, seja em força vital, seja em conhecimento, seja no que for. Por óbvio nem todas as experiências do gênero são boas. Existem pessoas que se cansam muito nesses processos, mas usufruem de trocas que valem todo o esforço e todo o desgaste.

O que não é plausível, é transformar a prática mais marcante, desafiadora e sublime da bruxaria em um espetáculo de fingimento para redes sociais. Não existe nada menos “sabático” do que isso. O que tem valor, dentro de um caminho espiritual, deve ser buscado com alguma mínima dose de respeito e reverência, além do bom senso de utilizar as técnicas e procedimentos tradicionais para essa busca.

Sem o entendimento mínimo das ervas utilizadas, sem dimensão alguma do que seja o mar sagrado – a água negra da noite, atravessada por aqueles que buscam o ritual –, as chaves de acesso e as portas que devem ser abertas, o melhor a fazer é não mexer com coisas maiores do que a sua capacidade lhe permite.

O intuito desse texto, como espero que fique claro, não é nem explicar com embasamento histórico sobre o Sabá, nem me colocar como parâmetro de validação do que os outros fazem ou deixam de fazer. Meu intuito é demonstrar por um pequeno vislumbre o quão profundo este assunto pode ser, de modo que quem tiver um genuíno interesse de buscar a experiência possa se preparar melhor para ela da forma que lhe for possível.

Sobre os espinheiros voam aqueles que podem. Os que não podem, neles se retalharão... E o Diabo será a eterna testemunha daqueles que tentarem.






2 comentários:

  1. Nessa ilustração há uma mulher em primeiro plano, que se parece muito com os retratos da rainha Elizabeth I. Há alguma relação?

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