Por Draco Stellamare
Tenho
escrito muitas coisas desde que comecei este blog, da a bruxaria alemã nos
Estados Unidos até diversas nuances da stregoneria italiana, que como já
devem saber é mais plural do que se possa imaginar. Contudo, não escrevi até
hoje sobre a minha própria tradição e como ela funciona, e percebo que isso
gera expectativas em alguns dos meus leitores. Vocês têm culto aos deuses
pagãos? Você tem um coven? Como posso me iniciar na sua tradição? Entre
outras, são perguntas que aparecem de vez em quando por meio das redes sociais
sempre que eu mostro alguma coisa que pertença a nossas práticas. Essa postagem
é uma tardia explicação sobre a tradição que mantenho, suas origens, como ela
chegou até aqui e para onde eu acredito que ela esteja caminhando. Não vou
revelar coisas que considero íntimas, excessivamente polêmicas ou secretas, e
nem vou me alongar demais nas explicações. Mas espero que gostem mesmo assim e
que algumas ansiedades sejam diminuídas através desse vislumbre da minha
história que eu vos ofereço.
Imagem que me remete à relação com os espíritos da água no Friuli. Fonte IA. |
Minha tradição – assim como a maior parte das tradições semelhantes que já tive o prazer de conhecer – é no todo um conjunto orgânico de diversos laços tradicionais. O que quero dizer com isso é que existem diversas práticas mágicas, conhecimentos, mitos e ancestralidades que se cruzaram no decorrer das suas transmissões de uma geração à outra. A sabedoria para lançar ou exorcizar o malocchio é um laço que é transmitido de uma pessoa à outra de forma linear, tal como a sabedoria para conjurar os mortos, a sabedoria para curar o “mau-jeito” etc. São diferentes linhagens, que ora convergem, ora se separam, e que têm origens que podem ser até mesmo longínquas umas das outras, considerando os ramos de nossa árvore ancestral. Algumas provêm dos meus antepassados que vieram do sul da Itália, outras estão fortemente enraizadas no nordeste italiano, e outras ainda foram adquiridas aqui, em solo brasileiro. Mas existe um fio condutor que eu compreendo como a principal de todas essas transmissões ancestrais, ao redor do qual todas as demais práticas se acomodam, e é esse o legame (laço) que eu pretendo abordar como a fonte e o denominador comum de nossa stregoneria.
A
origem da tradição se volta à zona delimitada pela nascente do rio Livenza, no
Friuli ocidental, pela importante cidade histórica de Udine (onde muitos dos
principais processos inquisitoriais sobre bruxaria na Itália ocorreram), e a
foz do mesmo rio na cidade de Caorle, no extremo nordeste do Veneto. Parte
dessa zona é o que se conhece por bassa friulana – a “baixada friulana”
–, uma das regiões mais planas do norte da Itália, onde há forte miscigenação
entre os povos itálicos, os germânicos vindos dos Alpes e os eslavos dos Balcãs.
Minha família imigrou para o Brasil saindo dessa região de forma autônoma, fora
dos programas de subsídio à imigração em vigor na época, na transição entre a
primeira e a segunda décadas do século XX, vindo se instalar em uma grande
fazenda de café da região de São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo.
A
nonna Marietta, matriarca de nossa família e portadora deste laço que
julgo ser o eixo central de nossa tradição, decidiu recomeçar a vida em outras
terras após a morte do marido e uma série de intempéries causadas pela guerra
de unificação da Itália e seus desdobramentos econômicos terríveis. Ela chegou
ao Brasil acompanhada de seus três filhos adolescentes numa época em que as
mulheres possuíam pouca autonomia e enfrentavam grandes riscos quando agiam por
conta própria. Depois de anos de árduo trabalho e uma difícil adaptação, seus
três filhos adquiriam terras no oeste do estado e começaram a construir uma
vida mais autônoma. Foi no sítio da família, a partir da década de 1930, que
minha avó materna – chamada Assunta em homenagem à Madonna – cresceu
imersa na cultura dos italianos da família de seu pai e de sua mãe, e foi nesse
período que ela recebeu e aprendeu as coisas que depois seriam transmitidas a
mim.
Uma
das principais lembranças sobre nossa “noninha” Marietta era a das rezas que
ela conduzia nua ao pôr-do-sol, após um banho diário nas águas do rio ou do
poço. Entre materializações e infindáveis contendas familiares envolvendo o
mau-olhado e o strigamento, as histórias míticas e a bênção que
transmitem aos mais jovens os mistérios sobre as ancestrais da água e sobre a Assembleia
dos antigos foram passados à minha avó, que os guardou como um tesouro folclórico,
uma memória familiar das mais queridas. Os ritos que essas histórias
prescreviam não foram todos praticados por ela, embora ela tenha sido a pessoa
mais mística que já conheci em minha vida, apta a desdobramentos viscerais do
espírito bem mais frequentes do que os meus e a conversações impressionantes
com os mortos.
Um
dos aspectos que mais me impressiona em retrospecto, ao analisar as conversas
que tive com minha avó e alguns de seus ensinamentos, é a influência esotérica
que os saberes folclóricos receberam ainda na Itália. As concepções sobre a
divinização da alma, a receita para santificação de espaços e alguns outros
elementos de nossa tradição receberam uma perceptível e autodeclarada
influência do movimento rosacruciano, embora ninguém saiba dizer precisamente
quando ou como isso aconteceu. Uma outra influência controversa são elementos
do entendimento sobre o Diabo que descobrimos advirem da circulação de
publicações de cunho ocultista na Itália oitocentista, como o Il Vero Drago
Rosso, o “Dragão Vermelho” ou “Grande Grimório”, e o conhecidíssimo Grimorium
Verum – possivelmente a mesma edição milanesa usada por Aluizio Fontanelle
nos anos 50 para equiparar os exus da macumba carioca aos demônios.
Embora
tais influências esotéricas e ocultistas existam, a maior parte do corpo de
mitos e práticas da tradição sempre girou ao redor do catolicismo marginal
mediterrâneo e friulano, e, num segundo e subliminar momento, ao redor das
crenças sobre a Assembleia das Bruxas. Mais tarde, a tradição sofreu evidentes
influências do catolicismo popular brasileiro e das umbandas antigas, nas quais
alguns dos membros da família na geração de minha avó se iniciaram. Rosários,
novenas, benzimentos e a conversação com os Antigos e antepassados de nossa
família, assim como as transações com as almas e – eventualmente – com os seres
não-humanos são a parte da tradição que me foi relatada ou mostrada ao vivo e em
cores, de forma gradual e orgânica, durante os dezoito primeiros anos de minha
vida nos quais vivi com minha avó. Nada disso inclui um aprendizado
sistemático, pelo contrário. A transmissão desses saberes sempre foi pautada na
memória familiar e nas ocorrências do acaso. Hoje, com a mentalidade que o meu
estilo de vida me obriga a assumir, algumas coisas encontraram certo grau de
sistematização – até para que eu consiga me lembrar de tudo!
A figura central, por óbvio, é a Virgem Maria, e a relação que ela estabeleceu tanto com as ancestrais da água quanto com as bruxas nos mitos da linhagem. Essa devoção mariana advém da sobrevivência parcial de cultos próprios à região liventina (do rio Livenza) e nos arredores, onde Diana Trivia, deidades femininas germânicas e figuras eslavas como Morana foram reverenciadas no passado. Além da Madonna Assunta, a linhagem guardou enorme reverência a Santa Luzia, São Miguel Arcanjo e alguns outros santos e santas cuja importância se reflete nas rezas de proteção e em histórias folclóricas nas quais o seu caráter é um pouco diferente do caráter imaculado propagandeado pela Igreja. Temos, por exemplo, uma história que afirma que São Francisco de Assis e Santa Clara eram bruxos e utilizavam do voo em forma de neblina para passar pela fechadura da porta do quarto um do outro e fazer obscenidades em segredo.
Não existem ocasiões
cerimoniais à semelhança dos círculos mágicos dos sabás da Wicca britânica e
das ordens esotéricas, pois estes nunca fizeram parte da essência da tradição.
Nossas celebrações tradicionais são poucas, na maioria das vezes são mais simples,
e consistem majoritariamente nas rezas e comemorações tradicionais aos santos
que são importantes para a tradição – a Madonna Assunta, os Santos do mês de
junho, dentre outros. Além das ocasiões “católicas”, existem as ocasiões
sazonais em que o contato com os mortos ou com os seres não-humanos são
favorecidos, e que acabam mais próximas do desenvolvimento individual e
vertical do iniciado com os espíritos do que de um calendário fixo e
pré-determinado. Mais do que uma tradição baseada no culto aos deuses através
de um ritual teatralizado, esta é uma tradição baseada no culto ancestral, na
manutenção de algumas devoções que os Antigos começaram e no desenvolvimento de
uma sabedoria sobre como comungar e se relacionar com os mortos e com os seres
não-humanos, dentre os quais está o Diabo, tido pelos Antigos como um santo
demonio, por assim dizer. Por mais que a estrutura tradicional da relação
com os ancestrais e com os santos seja um aporte de segurança, há um grau de
desafio que é imposto ao praticante – um grau de ordália iniciática – e de
maturidade que é requerido, que é similar ao que se encontrará em outras
vertentes da bruxaria tradicional e em cultos brasileiros onde a comunhão com
os ancestrais é a base.
No que tange o contato com os
espíritos, a maior presença é a dos Antigos, os ancestrais poderosos ligados à
tradição. Com o desenvolvimento de uma comunicação mais direta com o mundo
espiritual, os ritos que visam a Assembleia das Bruxas podem ser experimentados
e adquirem um formato apropriado à pessoa que os intenta. Em paralelo a essa
exploração do campo onírico e mediúnico, a construção de um relacionamento com
os outros seres espirituais ligados à história da tradição, à terra onde
habitamos e às inclinações particulares do praticante é algo que deve ser
lentamente desenvolvido. Foi assim de forma muito simples e sucinta com minha
avó, que preservou apenas o aspecto mais essencial desse corpo de saberes e foi
obrigada a exercer muitas de suas nuances de forma espontânea. Foi assim
comigo, que os reuni e busquei dar seguimento à totalidade das tradições
familiares, explorando a “porta” que os mitos deixam aberta para a Assembleia
dos espíritos. E vem sendo assim com todas as pessoas que tomaram contato com
estas práticas, voluntariamente ou através de nossos laços comunitários.
A Palù di Livenza, zona pantanosa no Friuli ocidental onde nasce o rio de mesmo nome.
No início deste texto falei
sobre como apesar de ter um eixo central, minha tradição é a soma de diversos
laços. Alguns dos principais laços que em mim convergiram para a linhagem
liventina advém da família de meu pai, em parte também italiana, e especificamente
de minha bisavó, que foi reconhecida em nossa cidade como uma notória
benzedeira e a organizadora de uma das maiores festas juninas da região.
Enquanto muitas das práticas da tradição são passíveis de serem ensinadas a
qualquer pessoa – ainda que algumas sejam exigentes ou de um caráter intimista,
em especial as práticas individuais ligadas à Assembleia e as que
despertam a força espiritual por meio do mesmo tipo de banho que minha Nonna
Marietta realizava –, existem laços que só podem ser transmitidos uma vez, pois
a capacidade de exercê-los é dada a uma única pessoa por geração. Esses são
alguns dos motivos pelos quais é impossível ensinar ampla e publicamente
essa tradição. Para além deles, há um motivo pelo qual é inapropriado
que isso ocorra...
Imagem que mais me remete à história da tradição. Não consegui encontrar até hoje a autoria.
Esse motivo é a compreensão de
que quando uma pessoa é iniciada na maior parte destes laços um vínculo
espiritual de ordem familiar se forma. A iniciação “completa”, incluindo todos
os laços da tradição e principalmente a benção que se liga ao seu eixo principal,
torna o iniciado parte de uma linhagem iniciática que eu considero
indissociável das últimas sete gerações da minha linha familiar que remonta à
região liventina. Mais do que somente a criação do vínculo, há a questão da
confiança: essas histórias e práticas estão intimamente ligadas às memórias
mais afetuosas que minha avó carregava de nossa matriarca e de outros antigos,
e também são indissociáveis das memórias mais afetuosas que eu carrego de minha
avó. Não são coisas que se possa compartilhar com qualquer pessoa na totalidade,
porque não é qualquer pessoa que pode se tornar parte de nossa família. Não é
qualquer pessoa que chamamos para nos visitar em nossa casa, não é qualquer
pessoa que pode saber de nossos assuntos mais íntimos e não é qualquer pessoa
que pode se tornar responsável por levar nosso nome à diante.
Apesar de toda essa
dificuldade, a tradição não está morrendo comigo. Há um círculo seleto de
pessoas para as quais, atualmente, eu ensino a parte desses saberes que pode
ser ensinada. Infelizmente esse círculo é muito pequeno, e precisará continuar
dessa forma, pequeno e restrito, para que o propósito de passar a tradição da
melhor forma possível adiante não se perca. Contudo, levo muito a sério a
relação de amizade que estabeleço com outras linhagens ancestrais, e tal como
eu mesmo recebi conhecimentos de outras famílias e praticantes quando precisei
entender aspectos do que eu carregava por herança, a minha exposição em público
tem esse objetivo: oferecer bons referenciais e alguma ajuda para aqueles que
buscam se reconectar ao que possuem em suas ancestralidades, ou que buscam a
sabedoria necessária para conseguir encontrar de verdade o que desejam em
seu caminho espiritual.
Chamo a tradição de minha
família carinhosamente de Via Stella Maris, devido ao título que minha
avó considerava atrelado à Madonna Assunta – estrela do mar, guia dos
navegantes e guia das almas para o céu. Apesar desse nome pomposo que eu criei,
ela permanece e permanecerá como uma tradição simplória oriunda da região do
Rio Livenza, transportada e amadurecida no Brasil – uma stregoneria liventina em
terra brasilis. Por sorte, eu acredito que as tradições simplórias também podem
ser sábias, também podem ensinar os que tomam parte delas e os que as
acompanham à distância. É essa a minha esperança com esse nome. Tal como ela é
um norte para mim e para os meus, que a Estrela do Mar possa ser um norte para
os que a admiram de longe, independente de onde estejam, e do quão próximo de
nós se encontrem.
Essa é minha esperança para
ela.
Que sobreviva além de mim, não
somente com aqueles que a herdarem, mas também como um farol que tenha
auxiliado aqueles que a contemplaram.
“(...) Pois sois a esperança dos
pobres errantes, e seguro porto dos navegantes.
Estrela do Mar e saúde certa, e porta
que estás para o céu aberta...”
Vc é uma luz! Gratidão por mais essa postagem! Blessed be!
ResponderExcluirObrigado querido! :)
Excluir