Por Draco Stellamare
A região italiana chamada Friuli Venezia Giulia é um local muito único, o que torna suas tradições mágicas também especialmente singulares. Os diversos encontros e desencontros que ocorreram no Friûl histórico entre os vênetos, os germânicos e os eslavos terminaram por gerar ali uma cultura rica e de muitas formas distinta daquela de outras partes da Itália. Nas tradições de bruxaria da região friulana, destaca-se a figura da Virgem Maria como uma rainha e protetora das bruxas. Apesar de a devoção mariana neste e em outros locais suceder o culto de deusas precedentes (como eu abordei nesse texto sobre Diana Trivia), a presença de Maria como senhora das bruxas não se dá tradicionalmente através da redução de sua imagem a uma simples “máscara”, arbitrariamente utilizada para esconder alguma entidade não-cristã por meio de um sincretismo superficial, mas sim através de uma cosmologia e mitologia próprias ao universo da bruxaria, que constituem – senão por escrito ao menos oralmente – uma espécie de pequeno evangelho bruxo. Esse “evangelho”, mais bem comprovado pela pesquisa histórica do que o de Charles Leland, está vivo – de forma plural e ao mesmo tempo harmoniosamente coesa – nas linhagens que carregam os mitos da bruxaria friulana ainda hoje, na Itália, no Brasil e possivelmente em outros países onde os poucos imigrantes friulanos da história aportaram.
Uma das mais importantes histórias
deste nosso “evangelho” se passa durante a fuga de Maria, Jesus e José para o
Egito, na tentativa de escapar dos soldados de Herodes. A maior parte das
tradições de stregoneria que conheço possui uma ou mais versões deste
mito, que é utilizado para justificar perante a tradição a sacralidade (ou a
maldição) inerente a algum objeto, pessoa ou fenômeno da natureza. Uma das
funções mais importantes desse mito no Friuli é justificar o fato das bruxas da
região estarem sob o patronato da Madonna, e ele é encontrado em duas versões
mais conhecidas, que por serem registradas em artigos científicos e, portanto,
tornadas versões públicas, eu trago para que todos os interessados vislumbrem
um pouco de nossa cosmovisão.
Fuga para o Egito - Alexandre Marie Colin (1840) |
Na primeira versão do mito,
Maria e José fugiam com Jesus dos soldados de Herodes e acabaram parando à
entrada de uma cidade (normalmente a mais antiga cidade dos arredores de quem
está contando a história). Lá a sagrada família se vê encurralada e percebe a
rápida aproximação dos soldados. Em desespero, Maria pede a uma jovem que
transitava pela entrada da cidade que esconda o Menino Jesus em uma dobra feita
com seu avental, ao que ela prontamente obedece, sem dizer uma só palavra.
Quando os guardas chegam e começam a revistar as pessoas em busca de qualquer bebê
do sexo masculino, a jovem que escondia Jesus é ameaçada a abrir o avental e
revelar o que estava carregando. Por meios desconhecidos, a jovem abaixa o
avental e no lugar da criança aparecem dezenas de rosas belíssimas. Os soldados assim vão embora, e Maria recupera o Menino Jesus – agora reaparecido
– do avental da jovem. É então revelado que a magia que enganou os guardas de
Herodes era a magia da jovem moça, que era uma bruxa. A Virgem Maria então a
abençoa com os dizeres “No sarês pandudes” (não serás reconhecida). E
assim as bruxas passaram a viver disfarçadas em meio aos seres humanos normais,
tendo sua parte não-humana ocultada e somente podendo ser reconhecidas por meio
da mesma feitiçaria que elas próprias dominam, ou pelo uso dos poderes sacerdotais
de um padre, tomados momentaneamente na hora da missa por uma criança impúbere.
Acho interessante perceber que
tal como outros mitos de nosso “evangelho” essa história pode ser interpretada
de múltiplas formas. Uma das possíveis interpretações, que acho que vale a pena
comentar, é a de que enquanto os poderes políticos e sacerdotais – aqui representados
por Herodes – desejaram aniquilar o Menino Jesus, cristicamente
representando o próprio divino, a bruxa herege e marginalizada foi a responsável
por salvaguardar o mistério do sagrado consigo, projetando sobre ele uma ilusão
para que os perseguidores do Cristo não identificassem aquilo que ela possuía
em seu avental. A bruxa seria aqui a portadora do chrestos, a guardiã
dos mistérios, que os preserva mesmo contra as massas e as religiões
institucionalizadas. Recordo dizeres de minha avó sobre a classe mais
merecedora do inferno ser a classe sacerdotal – pensando criticamente hoje,
foram eles que puseram Jesus na cruz para começo de conversa, e são eles que
desde sempre usaram seu nome em malefício da humanidade...
Outra versão do mesmo mito,
também conhecida por toda a zona liventina e udinesa envolve uma oposição moral
entre as bruxas e as prostitutas – duas classes femininas marginalizadas, e que
aqui são comparadas no que talvez seja um reflexo da opressão patriarcal sobre
o sexo feminino (algo necessário de ser sempre visto e desconstruído). Segundo
essa versão mais cruel do mito, a Madonna fugia com o Menino Jesus dos soldados
de Herodes e passou por duas mulheres numa estrada. Quando os soldados
alcançaram essas mulheres, perguntaram à primeira, que era uma prostituta: “Você
viu uma mãe carregando um menino indo nesta direção?”, ao que a prostituta
disse “Sim, eu os vi”. Ao passar pela segunda mulher, que era uma bruxa, o
mesmo soldado repetiu a pergunta, ao que a bruxa lhe disse “Não, eu não os vi”.
Assim, voltando mais tarde pelo mesmo caminho ainda em fuga, a Virgem Maria
amaldiçoou a prostituta dizendo “Tu, mulher prostituta, será sempre descoberta”,
e assim as prostitutas se tornaram mulheres marginalizadas pela sociedade,
sempre identificadas pelo seu ofício antes de qualquer outra característica que
possuíssem. Depois disso, Maria abençoou a bruxa, dizendo-a “Tu non sarai
scoperta” (você não será descoberta). E assim as bruxas puderam se passar
por pessoas normais, somente sendo descoberta a sua parte não-humana através
dos métodos legados pela tradição.
Em todas as muitas versões
dessa história se diz em dialeto: le xe potenti e ancora protete da la
Madona (elas – as bruxas – são poderosas e ainda hoje protegidas pela Madonna).
E quanto aos métodos de magia para ver a verdadeira natureza de uma bruxa e
descobri-la, todos dependem do uso de uma moeda que tenha sido roubada da própria
bruxa e lançada na pia de água benta durante a missa, ou do uso de uma parte de
uma ave sacrificada de maneira específica e depois comida por aquele que deseja
identificar as bruxas de sua região. É dito ainda que a marca das bruxas que
descendem da bruxa abençoada pela Madonna é fixada nos olhos e normalmente se
mantém invisível. Uma das formas de identificá-la, é fazendo uma criança
impúbere tocar os pés de um padre durante a missa, e então ela poderá ver a
marca das strie.
Embora minha linhagem possua
uma versão do mito da Fuga para o Egito, foi um dos maiores tesouros encontrar
estas duas versões do mito preservadas em artigos etnográficos. Um sinal claro
de que o nosso “evangelho” informal e simplório (mas muito mais verdadeiro do
que certas obras) está vivo e seguirá existindo em direção às gerações futuras
de nosso sangue bruxo.
Fuga in Egitto - Giovanni Battista Tiepolo (1767) |
Curiosamente hoje em dia temos
que ver inúmeros impropérios sendo ditos por pretensas bruxas e bruxos sobre os
elementos cristãos em nossas tradições antigas serem uma deliberada opção
política conservadora, um reflexo de misoginia ou outras abobrinhas do gênero.
Mal sabem esses coitados o que tais elementos realmente significam em nossas
linhagens! Mais do que uma cosmovisão própria, os temos como símbolo de
resistência e de astúcia. Inúmeras mulheres nas centenas de anos que estas
tradições estão vivas se refugiaram na Madonna como seu escudo e fonte de poder
e sabedoria. Muitas foram assuntas ao céu como ela, de uma forma ou de outra...
E assim também o foram muitos outros marginalizados. Gente antiga e SÁBIA que não
se permitiu jogar fora a criança junto com a água do banho como tantos “buscadores”
do caminho mágico hoje fazem. Reflito que os que passam na crosara
(encruzilhada) são muitos, mas os que sabem encontrar nela o nosso Senhor e
Senhora são poucos!
Que aqueles que desdenham de
tradições quase milenares se engasguem com o próprio fel, e que fique claro que
muitos dos bruxos reais do passado, do presente e do futuro, foram, são e serão
tanto membros da corte sabática de Lucifero quanto protegidos e nutridos pela
Mãe Divina em suas mais diversas formas, dentre as quais esteve e sempre estará
a bendita forma de Maria.
"...Al sies urla una stria, Gesù, San Bepe e Maria..."
Off to the Sabbat - William Mortensen (1927) |
Referências:
Le Streghe nella Bassa Friulana - Vanni Facchin
Stregoneria Malocchio e Jettatura nelle Tradizioni Friulane - Lea D'Orlandi
ADOREI SEU TEXTO!!! MUITO INFORMATIVO
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