Por Draco Stellamare
Há algumas semanas o cenário
virtual da bruxaria brasileira estava pegando fogo (de novo!) com o debate
polêmico e um pouco risível acerca dos elementos judaico-cristãos na bruxaria
tradicional. Dentre as muitas coisas que eu aprendi sobre o status quo de
nossa comunidade virtual – com a enxurrada de discussões infrutíferas e
desrespeitosas – uma das mais interessantes foi perceber que, subitamente, todo
mundo está se tornando bruxo “tradicional”, e eu escrevo propositalmente entre
aspas por uma razão muito clara. Não fui só eu que percebi isso, pois até
alguns dos inquisidores neopagãos que estavam em ação naqueles dias apontaram
para esse fato, entre um chilique e outro.
The Witches - William Edward Frost (sec. XIX) |
Hoje parece haver uma nova moda em nosso meio, uma nova tendência, que consiste em aderir a uma bruxaria “tradicional” que funciona mais ou menos de acordo com as mesmas bases de uma bruxaria moderna e eclética, porém com santos católicos, o Diabo e uma Rainha de Elphame no lugar dos deuses. Não me cabe fazer nenhum juízo de valor sobre a prática pessoal de ninguém, que fique claro, mas quando vejo novos praticantes assumindo da noite para o dia esse título de “tradicional”, me parece curioso o entendimento que vem se consolidando sobre o que seja “bruxaria tradicional” em nossa comunidade. Nesse sentido, percebo duas perspectivas sobre tradicionalidade na bruxaria que vem ganhando força (ou se tornando mais visíveis), e as duas são formas de pensar que eu, particularmente, considero problemáticas, ou porque levam a uma simplificação perigosa do que seja o caminho tradicional, ou porque são reducionistas e historicamente delirantes.
A primeira dessas perspectivas
problemáticas sobre o que seja uma bruxaria “tradicional” é a ideia de que existem
símbolos e elementos tradicionais da bruxaria que podem ser apropriados por
qualquer pessoa em sua prática individual, e através dessa apropriação de
elementos a prática por si só já se configura como uma prática tradicional.
Nessa perspectiva o que define a tradicionalidade é a presença do Diabo, da
Rainha das Fadas, de elementos cristãos e diabolistas e uma estética menos
voltada ao cerimonialismo e mais ao aspecto folclórico da bruxaria. Essa
perspectiva me parece problemática porque acaba faltando aos praticantes a
percepção de que tradição pressupõe entrega de uma fonte precedente, seja
humana ou espiritual, entrega esta que é parte do processo iniciático e uma
pedra fundamental para o crescimento no caminho. É a construção de uma “base”
sobre a qual as preferências pessoais podem funcionar em harmonia com uma
espiritualidade real. Um bruxo tradicional não precisa ser hereditário, ou
membro de uma longa linhagem de transmissão pessoa-a-pessoa, ele pode ser
verticalmente iniciado pelos espíritos do caminho, mas esse é um processo via-de-regra
rigoroso, perigoso e que precisa ser levado muito a sério por aqueles que
procuram submeter-se a ele. Não se acorda um dia e simplesmente se troca os
deuses do altar por santos e um forcado e a mágica está feita... Tudo requer
paciência, aprender a escutar o mundo espiritual e a escolher boas referências
para ampliar os seus conhecimentos. Quem consegue trilhar verdadeiramente um
caminho iniciático solitário é reconhecido por qualquer pessoa que saiba sentir
o poder espiritual e identificar aqueles que o possuem.
Já a segunda perspectiva
problemática é menos ingênua e me parece ter objetivos muito bem definidos de
defesa de mercado. Trata-se da ideia de que não existem linhagens
mágicas anteriores ao revival ocultista inglês que originou a bruxaria
moderna, e que em decorrência disso a assim chamada “bruxaria tradicional” nada
mais seria além de um movimento moderno que se inspira em relatos históricos sobre
bruxas do passado para construir suas práticas contemporâneas. Me frustra até o
tutano dos ossos precisar afirmar o ÓBVIO, mas vamos lá: essa ideia é um lodaçal
de alienação anglo-cêntrica misturada ao negacionismo histórico. Mesmo na
própria Inglaterra de Gerald Gardner e Robert Cochrane a existência historicamente
constante de curandeiros e feiticeiros populares, bruxos e bruxas versados na
magia folclórica local, é uma realidade inquestionável. Se pensarmos em todo o
resto da Europa, na Itália cheia de stregoneria, nas maravilhosas linhagens
bruxas dos Bálcãs, nas diversas práticas ibéricas e em tradições existentes em diversos
outros lugares do continente europeu, a fantasia de que a bruxaria só existe
enquanto fenômeno moderno se torna ainda mais claramente um delírio. E para
finalizar, se pensarmos a nível mundial, essa discussão se torna ainda mais
risível, dada a quantidade de fenômenos equivalentes à bruxaria europeia que se
encontram em África, Ásia e América. A bruxaria praticada em incontáveis
linhagens mundo a fora, muito anteriores a Gardner e Cochcrane, seria o que senão
legitimamente tradicionais? Falta ainda aos defensores de que a bruxaria tradicional foi inventada por Cochrane e companhia a perspicácia de entender que a criação de um termo feito para denominar práticas já pré-existentes não se confunde com o surgimento das práticas per se.
Hexenritt (Witches' Ride) - Carl Spitzweg (1875) |
Antevendo os ofendidos: tanto a
inclusão de elementos tidos como tradicionais nas práticas pessoais quanto a
criação de uma prática inspirada nas bruxas históricas são questões de
preferência e não há nada de inerentemente errado com elas. MAS, o entendimento
sobre o que é tradição no que tange a forma como as bruxarias tradicionais
funcionam é extremamente necessário se o buscador do caminho deseja ter sucesso
em sua busca. Pergunte-se qual a diferença entre uma cosmovisão tradicional e
uma cosmovisão moderna, e observe bons referenciais de ambos os espectros. A
realidade tradicional depende muito mais do mundo e do contexto em que você
está inserido do que das suas crenças e vontades circunstanciais. Aplicar a lógica
moderna à simbologia tradicional não faz com que você vivencie um caminho
tradicional, e é sobre isso o problema.
Vocês leitores podem me perguntar:
por que tanta preocupação com o entendimento histórico e essa questão de
tradição? Não é só buscar e fazer o que funciona? A questão é justamente
essa. A tradição bem consolidada (por meios horizontais ou verticais) FAZ
DIFERENÇA. A magia é um mergulho que só pode ser mais profundo à medida que certas
coisas são entendidas e vivenciadas, e uma dessas coisas é a corrente de poder
chamada tradição, venha ela do mundo espiritual ou terreno. Quem afirma que
nada disso importa, que não existem linhagens tradicionais reais (mesmo as
provas sendo inúmeras), e que basta você se apropriar de símbolos ou construir
uma narrativa pessoal “inspirada” em julgamentos inquisitoriais está conscientemente
ou inconscientemente te afastando do entendimento REAL da bruxaria e de como
ela funciona. O poder espiritual tem uma fonte, e essa fonte não é o wishful
thinking do “faça você mesmo do seu jeito”, mas sim a comunhão real com
seres reais que povoam o cosmos e que podem ser acessados por meios concretos,
coletiva ou solitariamente. Aos que querem aumentar suas possibilidades de
interação com esses muitos seres que podem apontar o caminho da bruxaria, o
culto ancestral e a exploração cautelosa de um contato com os espíritos locais são
os primeiros passos impreteríveis.
Em síntese, há muita diferença
entre uma bruxaria “tradicional” (entre aspas) e uma bruxaria TRADICIONAL, no
sentido metafísico do termo. Feliz de quem conseguir diferenciar uma da outra.
Sejam espertas, bruxas! |
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