sexta-feira, 10 de maio de 2024

GÊNESIS: Um ensaio sobre o evangelho das bruxas

 Por Draco Stellamare

À primeira vista o “significado” da bruxaria e suas definições como culto, ofício ou condição pessoal de empoderamento parecem ser realidades completamente discrepantes umas das outras. Enquanto alguns entendem que a bruxaria é um ofício mágico que adere a certas características e outros a enxergam como um culto, seja à fertilidade ou a certas potências cósmicas obscuras, existem aqueles – dentre os quais eu me encaixo na maior parte do tempo – que preferem entender o fenômeno como uma condição pessoal específica de empoderamento – algo que pode estar ou não estar atrelado a uma tradição. Entretanto, uma constante em todas essas maneiras de se pensar a bruxaria é a presença do divino, senão enquanto deidade à qual se presta culto, ao menos enquanto potência do cosmos com a qual se tece uma profunda e quintessencial comunhão. Lembro-me que algumas das conversas que eu tive com minha primeira iniciadora giraram ao redor da natureza do divino e como suas várias manifestações distintas entre si conduziam a uma mesma eternidade. Desde então minha experiência com o exercício da bruxaria ao longo dos anos me fez crer que essa é uma verdade substancial que permeia todas as práticas e legados essencialmente bruxos, embora a forma como eu enxergue a questão hoje em dia seja um pouco mais complexa do que a forma que era exposta por aqueles que me precederam. É sobre essa transcendência que eu gostaria de discorrer neste texto.



The Demoniac - Joseph Middeleer (1893)


Em minha criação a cosmovisão da tradição de bruxaria me foi transmitida de forma muito simples. Faltavam palavras requintadas o suficiente às gerações passadas para fazer frente à retórica academicista e rebuscada dos autores contemporâneos, frequentemente engajados na compulsória masturbação do próprio ego. Entretanto, suas verdades antigas são tão sólidas quanto as nossas verdades atuais, senão ainda mais sólidas. Nessa simplicidade discursiva uma das falas mais recorrentes sempre foi a de que Deus – aqui entendido de forma despersonalizada enquanto um princípio divino puro – é “um só” independentemente do caminho espiritual que se trilhe. Muitos praticantes modernos – em que pese a constante metáfora das muitas faces da deusa e do deus – teriam arrepios ao ouvir essa frase, como se as personalidades individuais de cada deidade fossem completamente desconsideradas em favor de um monoteísmo coercitivo. Mas não se trata disso em absoluto. A cosmologia ligada às recorrentes visões da Assembleia das Bruxas (o sabá) reconhece e enfatiza uma grande pluralidade de seres divinos, e uma pluralidade de mistérios por detrás de todos eles. Essa pluralidade foi admitida por várias pessoas das gerações passadas de minha tradição, que sempre deram crédito e respeito a todas as manifestações divinas de outros credos e até mesmo guardaram afeição por determinadas divindades do mundo clássico – em que pese terem sempre sido adeptos de um catolicismo que, por mais marginal e “herético” que fosse, ainda continuava sendo catolicismo.

Existem alguns pontos de luz na escuridão de desinformação publicada por Charles Godfrey Leland sob a forma do livro Aradia: o Evangelho das Bruxas. Um desses pontos de luz é a percepção – talvez não pelos motivos corretos – de que as bruxas possuem um evangelho próprio, que dita toda sua cosmologia, teologia e valores perante a vida e a morte. Como eu mencionei neste texto, o Vangelo ou “evangelho” das bruxas é o conjunto de mitos tradicionais que embasam as tradições de bruxaria, servindo de mecanismo de transmissão de saberes entre gerações e de simbolismo no qual os ritos e práticas se ancoram. A história sobre a bênção de Maria às bruxas do Friuli, a maldição de Cristo sobre a figueira que a transformou na árvore do Diabo, a construção da ponte do Diabo em Cividale, o mito da bifurcação e outras várias histórias formam um conjunto de mitos que revelam ao iniciado os mistérios concebidos pela tradição. A partir desses mistérios e das experiências sabáticas em sonho e visão extática, o conhecimento sobre a realidade transcendente do divino e dos seres espirituais pode ser obtido pouco a pouco. Esse conhecimento possibilita que a cosmovisão original passada de geração em geração pelo Vangelo seja ampliada para que aqueles que a carregam possam compreender uma parcela maior do universo e em que vivem e tecer uma interpretação mais aprofundada dos próprios mistérios experienciados.




Em síntese, o “evangelho” oral transmite uma cosmovisão própria à tradição bruxa, e as experiências sabáticas ampliam e aprofundam essa cosmovisão. Assim é que surgem os entendimentos sobre os oito mistérios primordiais que compuseram o Cosmos – que somam dez junto ao fogo sagrado do espírito e ao mar sagrado da noite –, e sobre as deidades primordiais que dominam estes mistérios, os seres chamados de Deuses Eternos ou Deuses Primordiais, a depender do ponto de vista. Entre eles está a deusa das bruxas, a mãe primordial do mar sagrado que é o útero e a cova de todas as coisas, e que vemos através do Vangelo e das experiências sabáticas como as águas do Gênesis bíblico, como a potência da qual surgiram diversas deusas do politeísmo antigo, e como a potência encarnada em forma humana sob as faces de Maria e das Senhoras do Jogo. Entre os deuses eternos também está o deus das bruxas, o senhor de todos os mundos, aquele que carrega o fogo sagrado do espírito e cuja mão direita revela um caminho de conformidade e a mão esquerda um caminho de adversidade, e em cujo peito o mistério crístico se instala – ao mesmo tempo em que sua descida aos infernos nos faz conhecê-lo como o próprio Diabo.




Se existem diversos deuses eternos vislumbrados na Assembleia das Bruxas, contudo, todos eles advêm de uma mesma fonte, e essa fonte pode ser concebida pela versão “sabática” da história contada nos primeiros versículos do Gênesis bíblico:

“No princípio Deus criou o céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. E disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deus que a luz era boa; e Deus fez a separação entre a luz e as trevas.”

A tradição pressupõe – numa clara inversão da ordem patriarcal existente no texto bíblico – que as trevas e as águas sobre as quais o espírito de Deus pairava no início do mundo eram anteriores ao próprio Deus (aqui concebido como o deus pai, o detentor do fogo sagrado do espírito), e como o próprio Cristo não pode existir no mundo senão por meio de uma mãe, assim também o Deus pai não poderia existir sem uma Mãe Divina que o precedesse. Esse é o conceito do mar sagrado, a escuridão primordial da qual o fogo sagrado do espírito nasce e por meio da qual este mesmo fogo começa a criação de todas as outras coisas, a começar pelo céu, pela terra e pela primeira luz. Se todos os outros mistérios foram gerados pela união da água e do fogo, da escuridão fértil do caos e da primeira consciência que gera a primeira luz, e esse segundo princípio – masculino, ígneo e luminoso – surgiu espontaneamente do primeiro princípio – feminino, aquoso e escuro – então todas as coisas inevitavelmente surgiram do primeiro princípio, que é o útero e a cova de todas as coisas, e o “estado original” inerente a todo o Cosmos. A Mãe é anterior ao Pai, pois ela contém o Pai assim como a escuridão prevalece no espaço contra a luz.

Embora não seja tão literal quanto o mito de Diana e Lucifer tal como contado no livro de Leland, essas e outras percepções se desdobram do Vangelo em consonância com a vivência dos praticantes da tradição na Assembleia das Bruxas. O conhecimento de si e do universo é parte essencial do aprendizado vertical da tradição. É através dessa comunhão entre o homem e o divino e a ancestralidade que a bruxaria per se é praticada. Podemos então voltar à multiplicidade de conceitos que mencionei no início deste ensaio: para alguns a interação pessoal com a simbologia tradicional para comungar do sagrado assume os contornos de um culto, para outros os contornos de um ofício, e entendo que em todos os casos – mesmo quando não se tem nem um culto e nem um ofício – essa comunhão se exerce por meio de uma condição pessoal de empoderamento. E em nenhum destes casos está excluído um dos caracteres mais basilares da bruxaria: a marginalidade ou liminaridade. Tal cosmovisão conforme é transmitida pelo Vangelo só pode sobreviver enquanto uma tradição de marginalidade social, completamente rebelde em relação ao dogma institucional, consubstanciada na prática criminosa e amoral da busca independente pelo conhecimento do sagrado e do demoníaco...

O Evangelho das Bruxas, diferentemente manifestado em cada tradição e em cada linhagem, é o resultado simbólico da transgressão de gerações em busca do sagrado em seus próprios termos. É esse o seu incomensurável e precioso valor, raramente compreendido por aqueles que não o conhecem, e infelizmente muito negligenciado por aqueles que dele fazem parte.

Que aquela que uniu o céu e a terra permita que o conhecimento chegue àqueles que dele farão bom uso para trilhar o caminho!

             




Um comentário:

  1. Boa noite. Parabéns por mais um texto primoroso, Draco. Você é muito necessário!

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