Por Draco Stellamare
À primeira vista o
“significado” da bruxaria e suas definições como culto, ofício ou condição
pessoal de empoderamento parecem ser realidades completamente discrepantes umas
das outras. Enquanto alguns entendem que a bruxaria é um ofício mágico que
adere a certas características e outros a enxergam como um culto, seja à
fertilidade ou a certas potências cósmicas obscuras, existem aqueles – dentre
os quais eu me encaixo na maior parte do tempo – que preferem entender o
fenômeno como uma condição pessoal específica de empoderamento –
algo que pode estar ou não estar atrelado a uma tradição. Entretanto, uma
constante em todas essas maneiras de se pensar a bruxaria é a presença do
divino, senão enquanto deidade à qual se presta culto, ao menos enquanto
potência do cosmos com a qual se tece uma profunda e quintessencial comunhão. Lembro-me
que algumas das conversas que eu tive com minha primeira iniciadora giraram ao
redor da natureza do divino e como suas várias manifestações distintas entre si
conduziam a uma mesma eternidade. Desde então minha experiência com o exercício
da bruxaria ao longo dos anos me fez crer que essa é uma verdade substancial
que permeia todas as práticas e legados essencialmente bruxos, embora a forma
como eu enxergue a questão hoje em dia seja um pouco mais complexa do que a
forma que era exposta por aqueles que me precederam. É sobre essa
transcendência que eu gostaria de discorrer neste texto.
The Demoniac - Joseph Middeleer (1893) |
Em minha criação a cosmovisão
da tradição de bruxaria me foi transmitida de forma muito simples. Faltavam
palavras requintadas o suficiente às gerações passadas para fazer frente à
retórica academicista e rebuscada dos autores contemporâneos, frequentemente
engajados na compulsória masturbação do próprio ego. Entretanto, suas verdades
antigas são tão sólidas quanto as nossas verdades atuais, senão ainda mais
sólidas. Nessa simplicidade discursiva uma das falas mais recorrentes sempre
foi a de que Deus – aqui entendido de forma despersonalizada enquanto um
princípio divino puro – é “um só” independentemente do caminho espiritual que
se trilhe. Muitos praticantes modernos – em que pese a constante metáfora das
muitas faces da deusa e do deus – teriam arrepios ao ouvir essa frase, como se
as personalidades individuais de cada deidade fossem completamente
desconsideradas em favor de um monoteísmo coercitivo. Mas não se trata disso em
absoluto. A cosmologia ligada às recorrentes visões da Assembleia das Bruxas (o
sabá) reconhece e enfatiza uma grande pluralidade de seres divinos, e uma
pluralidade de mistérios por detrás de todos eles. Essa pluralidade foi
admitida por várias pessoas das gerações passadas de minha tradição, que sempre
deram crédito e respeito a todas as manifestações divinas de outros credos e
até mesmo guardaram afeição por determinadas divindades do mundo clássico – em
que pese terem sempre sido adeptos de um catolicismo que, por mais marginal e
“herético” que fosse, ainda continuava sendo catolicismo.
Existem alguns pontos de luz na
escuridão de desinformação publicada por Charles Godfrey Leland sob a forma do
livro Aradia: o Evangelho das Bruxas. Um desses pontos de luz é a
percepção – talvez não pelos motivos corretos – de que as bruxas possuem um
evangelho próprio, que dita toda sua cosmologia, teologia e valores perante a
vida e a morte. Como eu mencionei neste texto, o Vangelo ou “evangelho”
das bruxas é o conjunto de mitos tradicionais que embasam as tradições de
bruxaria, servindo de mecanismo de transmissão de saberes entre gerações e de
simbolismo no qual os ritos e práticas se ancoram. A história sobre a bênção de
Maria às bruxas do Friuli, a maldição de Cristo sobre a figueira que a
transformou na árvore do Diabo, a construção da ponte do Diabo em Cividale, o
mito da bifurcação e outras várias histórias formam um conjunto de mitos que
revelam ao iniciado os mistérios concebidos pela tradição. A partir desses
mistérios e das experiências sabáticas em sonho e visão extática, o
conhecimento sobre a realidade transcendente do divino e dos seres espirituais
pode ser obtido pouco a pouco. Esse conhecimento possibilita que a cosmovisão
original passada de geração em geração pelo Vangelo seja ampliada para
que aqueles que a carregam possam compreender uma parcela maior do universo e
em que vivem e tecer uma interpretação mais aprofundada dos próprios mistérios
experienciados.
Em síntese, o “evangelho” oral transmite uma cosmovisão própria à tradição bruxa, e as experiências sabáticas ampliam e aprofundam essa cosmovisão. Assim é que surgem os entendimentos sobre os oito mistérios primordiais que compuseram o Cosmos – que somam dez junto ao fogo sagrado do espírito e ao mar sagrado da noite –, e sobre as deidades primordiais que dominam estes mistérios, os seres chamados de Deuses Eternos ou Deuses Primordiais, a depender do ponto de vista. Entre eles está a deusa das bruxas, a mãe primordial do mar sagrado que é o útero e a cova de todas as coisas, e que vemos através do Vangelo e das experiências sabáticas como as águas do Gênesis bíblico, como a potência da qual surgiram diversas deusas do politeísmo antigo, e como a potência encarnada em forma humana sob as faces de Maria e das Senhoras do Jogo. Entre os deuses eternos também está o deus das bruxas, o senhor de todos os mundos, aquele que carrega o fogo sagrado do espírito e cuja mão direita revela um caminho de conformidade e a mão esquerda um caminho de adversidade, e em cujo peito o mistério crístico se instala – ao mesmo tempo em que sua descida aos infernos nos faz conhecê-lo como o próprio Diabo.
Se existem diversos deuses
eternos vislumbrados na Assembleia das Bruxas, contudo, todos eles advêm de uma
mesma fonte, e essa fonte pode ser concebida pela versão “sabática” da história
contada nos primeiros versículos do Gênesis bíblico:
“No princípio Deus criou o
céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do
abismo; e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. E disse Deus: Haja luz; e
houve luz. E viu Deus que a luz era boa; e Deus fez a separação entre a luz e
as trevas.”
A tradição pressupõe – numa
clara inversão da ordem patriarcal existente no texto bíblico – que as trevas e
as águas sobre as quais o espírito de Deus pairava no início do mundo eram
anteriores ao próprio Deus (aqui concebido como o deus pai, o detentor do fogo
sagrado do espírito), e como o próprio Cristo não pode existir no mundo senão
por meio de uma mãe, assim também o Deus pai não poderia existir sem uma Mãe
Divina que o precedesse. Esse é o conceito do mar sagrado, a escuridão
primordial da qual o fogo sagrado do espírito nasce e por meio da qual este
mesmo fogo começa a criação de todas as outras coisas, a começar pelo céu, pela
terra e pela primeira luz. Se todos os outros mistérios foram gerados pela
união da água e do fogo, da escuridão fértil do caos e da primeira consciência
que gera a primeira luz, e esse segundo princípio – masculino, ígneo e luminoso
– surgiu espontaneamente do primeiro princípio – feminino, aquoso e escuro –
então todas as coisas inevitavelmente surgiram do primeiro princípio, que é o
útero e a cova de todas as coisas, e o “estado original” inerente a todo o
Cosmos. A Mãe é anterior ao Pai, pois ela contém o Pai assim como a
escuridão prevalece no espaço contra a luz.
Embora não seja tão literal
quanto o mito de Diana e Lucifer tal como contado no livro de Leland, essas e
outras percepções se desdobram do Vangelo em consonância com a vivência
dos praticantes da tradição na Assembleia das Bruxas. O conhecimento de si e do
universo é parte essencial do aprendizado vertical da tradição. É através dessa
comunhão entre o homem e o divino e a ancestralidade que a bruxaria per se
é praticada. Podemos então voltar à multiplicidade de conceitos que mencionei
no início deste ensaio: para alguns a interação pessoal com a simbologia
tradicional para comungar do sagrado assume os contornos de um culto, para
outros os contornos de um ofício, e entendo que em todos os casos – mesmo
quando não se tem nem um culto e nem um ofício – essa comunhão se exerce por
meio de uma condição pessoal de empoderamento. E em nenhum destes casos está
excluído um dos caracteres mais basilares da bruxaria: a marginalidade
ou liminaridade. Tal cosmovisão conforme é transmitida pelo Vangelo
só pode sobreviver enquanto uma tradição de marginalidade social, completamente
rebelde em relação ao dogma institucional, consubstanciada na prática criminosa
e amoral da busca independente pelo conhecimento do sagrado e do demoníaco...
O Evangelho das Bruxas,
diferentemente manifestado em cada tradição e em cada linhagem, é o resultado
simbólico da transgressão de gerações em busca do sagrado em seus próprios
termos. É esse o seu incomensurável e precioso valor, raramente compreendido por
aqueles que não o conhecem, e infelizmente muito negligenciado por aqueles que
dele fazem parte.
Que aquela que uniu o céu e a
terra permita que o conhecimento chegue àqueles que dele farão bom uso para trilhar o caminho!
Boa noite. Parabéns por mais um texto primoroso, Draco. Você é muito necessário!
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