Por Draco Stellamare
É indubitável, tanto por estudo acadêmico quanto por experiência pessoal daqueles que puderam conviver com ambos os universos, que a bruxaria tradicional e a magia folclórica coexistem de uma série de formas nos mesmos espaços. Entretanto, existem diferenças substanciais quando pensamos no que caracteriza uma ou outra expressão da espiritualidade. Falando da stregoneria italiana em geral, pode-se dizer que a magia folclórica é um dos elementos que estão presentes na prática das bruxas, mas que não é exclusiva delas, pois a sua difusão entre a população – principalmente mais velha e residente nas zonas rurais – é muito mais ampla do que a difusão da bruxaria propriamente dita.
Um dos melhores artigos
científicos para ilustrar o que estou dizendo é o artigo Spells, Saints and
Streghe, de Sabina Magliocco. Neste artigo a antropóloga gasta alguns
parágrafos explicando que a magia folclórica é em muitas instâncias um
conhecimento comum ao povo italiano, que tem seu espaço nas demandas sociais
sobretudo da realidade camponesa antiga – que ainda continua vigente para
certos setores da população. Essa difusão de conhecimentos mágicos folclóricos
entre os italianos de gerações passadas levou muitos de seus descendentes nas Américas
a interpretar – à luz da ótica “sobrevivencialista pagã” estimulada pela Wicca
e movimentos similares – que suas famílias eram envolvidas com bruxaria, ou que
seus ancestrais escondiam uma religiosidade pagã-politeísta sob a máscara de um
catolicismo de fachada. Por óbvio isso não é uma conclusão muito assertiva,
dado que o que a maioria das famílias italianas exerciam era a magia folclórica
comum, que não só se entende profundamente católica como geralmente antagoniza
com aquilo que os italianos entendiam como sendo bruxaria.
Eu acho importante comentar que
na mentalidade italiana comum, a bruxa se diferencia de um operador qualquer da
magia folclórica pelo exercício de certos poderes, usualmente atrelados a uma
amoralidade que inclui a possibilidade de fazer o malefício. Enquanto o
operador da magia folclórica apenas utiliza de elementos comuns ao folclore
local para tecer trocas com o cosmos em toda a sua teia de relações conforme
concebida pela cultura em que está inserido, a bruxa transgride as
normas estabelecidas por essa mesma cultura, fazendo uso da magia folclórica
nesse processo ou não – pois cabe a bruxaria a utilização da feitiçaria popular
tanto quanto de conhecimentos da magia cerimonial, ou de práticas divergentes nascidas
da própria instrução pelos espíritos. Existe também nesse cenário, obviamente, a
mescla entre a pessoa bruxa, que é entendida como a pessoa que possui
poderes para operar benefícios e malefícios diversos, e a bruxa enquanto figura
mítica que personifica os medos da morte, da doença e da escassez – a strix
ou striga. Exemplificando: o operador da magia folclórica é aquele que
sabe realizar as pequenas feitiçarias do dia a dia, como as simpatias para
influenciar o clima, os benzimentos mais conhecidos ou algumas formas de
adivinhação, todas normalmente muito bem circunscritas pelo que a moralidade
popular média e cristã julga aceitável. Já a bruxa é a pessoa que possui um
empoderamento mágico que a permite causar impactos diretos na vida dos outros,
como lançar intencionalmente o mau-olhado, performar ritos de benção e de
maldição ou assombrar os inimigos em sonho, e tem na origem desse empoderamento
uma comunhão com poderes cósmicos que são geralmente percebidos como sinistros
pelas pessoas de fora, justamente em razão da sua amoralidade. A bruxa, por
mais que se insira muitas vezes na realidade da magia folclórica cristianizada,
nunca se separa totalmente da percepção do diabólico, do transgressor e do
controverso. E dentro do que é mais conhecido em stregoneria é essa
a diferença.
Muitos de vocês leitores podem
então se questionar onde eu considerei a questão mais esotérica da bruxaria
como uma possível continuidade de cultos de mistério. A resposta é que eu optei
por não tratar dessa perspectiva, tanto em razão de que ela é praticamente
ausente em minha linhagem – profundamente entranhada nos aspectos mais rústicos
da prática, embora possua influências rosacrucianas – quanto em razão de que eu
entendo que essas interpretações da bruxaria são muito específicas e pontuais a
certos contextos. Quando analiso o contexto das bruxarias como as que eu herdei
e vivencio, poucas são as tradições mais eruditas que possuem uma autoconsciência
voltada a tais questões de amplitude esotérica. Contudo, ao considerarmos essa
realidade, como o Magister Sett Lupino descreve em sua obra, de que a bruxaria
é em muitas instâncias uma continuidade do processo iniciático de antigos
cultos de mistério, temos aí uma segunda diferenciação oportuna entre bruxaria
de fato e simples magia folclórica. Enquanto a primeira transmite uma linhagem iniciática
que trabalha a divinização do iniciado, a segunda se volta a aspectos
operacionais da vida quotidiana.
É importante frisar que nada
neste texto tem a intenção de desvalorizar a magia folclórica ou de
sobrevalorizar a bruxaria. Ambas são práticas que estão relacionadas, que se
influenciam mutuamente e que coexistem nas vidas de muitas pessoas –
principalmente pelo fato da magia folclórica ser um dos instrumentos preferidos
da bruxaria tradicional. Ao contrário, o intuito dessa publicação é
contextualizar que a bruxaria possui naturezas próprias que transcendem os
limiares da magia folclórica e do seu exercício mais difundido entre o povo, de
modo que o leitor esteja atento para melhor reconhecê-la e interpretá-la.
Em síntese, a bruxaria está
intimamente amalgamada ao folclore e suas práticas mágicas, mas ela não se
resume a ele, e nem ele a carrega consigo em todas as suas manifestações.
Nenhum comentário:
Postar um comentário