sábado, 22 de junho de 2024

Afinal, nossa bruxaria é cristã, pagã ou diabolista?

 Por Draco Stellamare



Satã observando o sono de Cristo - Joseph Paton (c.1900)


A experiência de congregar com outros praticantes de bruxaria de outras vertentes bem diferentes da minha sempre foi algo enriquecedor, mesmo quando “choques culturais” acontecem. Um desses choques que acontece com maior frequência é as pessoas me definirem como um “bruxo cristão” em razão da existência do catolicismo mágico-folclórico em minha tradição. Preciso dizer que embora o catolicismo seja a religião culturalmente assumida por mim e por minha família nas respostas ao IBGE, eu mesmo nunca pensei nesses termos radicais de distinção entre uma “bruxaria cristã” ou “bruxaria pagã”, mas a frequente reincidência desse assunto fez com que eu me questionasse... Afinal, nossa bruxaria é cristã, pagã ou diabolista?

Por um lado, eu poderia dizer que minha tradição – de um tempo para cá denominada Stellamare – é essencialmente pagã no sentido antigo do termo paganus, enquanto designativo para pessoas que vivem em comunhão com forças naturais e afastadas da lógica tida como “mais civilizada” da religião institucionalizada. Afinal de contas, somos considerados como hereges pela Igreja Católica Apostólica Romana, e muitas das coisas que fazemos lidam diretamente com uma mentalidade mais rústica e primitiva (literalmente classificada por alguns de meus parentes como uma mentalidade atrasada e supersticiosa de gente muito sofrida). Mas, por outro lado, nossas devoções e cosmovisão são quase que completamente cristianizadas. Rezamos para santos, tomamos parte dos sacramentos católicos, concebemos o mundo e os seres espirituais de acordo com uma visão própria do catolicismo folclórico da região de origem de nossa linhagem, influenciada brevemente pelo pensamento de algumas correntes esotéricas também cristãs, e não temos nenhum tipo de conexão com os processos de retomada do politeísmo clássico levados a cabo pelo neopaganismo. Contrapondo essas duas realidades talvez fosse possível, sob a ótica do termo “pagão” enquanto um designativo para uma espiritualidade folclórica e “caipira”, chamar nosso alinhamento religioso de “cristo-pagão”, para o arrepio de muitas pessoas mais sectárias em nosso meio.

Entretanto, não é esse o significado mais difundido de paganismo nos dias atuais, nos quais a maioria das pessoas compreende o termo “pagão” como um designativo para os devotos politeístas, sejam eles nórdicos, romanos, celtas, helênicos ou quaisquer outros, avessos às realidades das religiões abraâmicas. Seria por esse viés inadequado classificar a nossa stregoneria e todas as outras tradições similares a ela como pagãs... Elas não possuem um culto aos deuses de panteões pré-cristãos e muitas vezes não estão preocupadas em se dissociar da cosmovisão judaico-cristã para continuarem a fazer o que fazem. Muitos dos iniciados em stregoneria que conheci até hoje mantém suas práticas de bruxaria com discrição enquanto participam ativamente de uma comunidade religiosa católica, e eles não tem interesse de mudar esse modus operandi, mesmo discordando veementemente de muitas das diretrizes dogmáticas da instituição. Está no DNA de certas bruxarias tradicionais manter um amálgama simbiótico com a religião, se utilizando dela para seus próprios fins, e sem grandes preocupações em se justificar para quem quer que seja.

Resta pensarmos num último aspecto que seria o diabolismo. Nossa tradição possui a figura do Diabo muito bem entranhada, hoje ativa e operante. Poderíamos assim compreender que ela seria uma tradição diabolista apesar de virtualmente católica? Muitos que conheceram nossas práticas mais fechadas diriam que sim, mas eu ainda abordaria essa classificação com muita cautela, pois a figura diabólica não ocupa um papel de antagonista declarado da deidade cristã em nossos mitos, mas sim um papel de coadjuvante ao sagrado, talvez pela necessidade histórica de conciliar as duas mãos de nossa adoração para poder sobreviver e legar as práticas à diante. O Diabo está para as bruxas como Cristo está para os cristãos convencionais. Ele é um santo demonio, um senhor, um direcionador e muitas outras coisas. E mais do que isso: nossa cosmovisão é tudo menos “anticósmica”. O Diabo faz parte do cosmos e tem um importante papel no funcionamento do universo, de modo que a pecha do satanismo vulgar, essa revolta simplista contra o universo e a divindade que supostamente o governa, não nos apetece nem nos contempla. Como eu poderia me definir apenas como diabolista nestes termos?

A realidade, se me perguntassem neste momento, é que nossa bruxaria – bem como todas as bruxarias tradicionais da mesma natureza que a nossa – é um caminho próprio e sinuoso, nem completamente cristão e nem exatamente pagão, e permeado de um diabolismo tão transgressor que consegue transgredir até mesmo o que se tornou hegemônico ao falarmos de satanismo ou caminhos de “mão esquerda”. Tenho como convicção pessoal que a bruxaria verdadeira é uma via iniciática de caráter transcendente, capaz de tecer amálgamas e simbioses ÚTEIS com qualquer espectro religioso e com qualquer sistema de magia. Existem bruxarias com cristianismo, com judaísmo, com islamismo, com paganismo e com qualquer vertente religiosa imaginável, mas nenhuma delas é aprisionada pelos dogmas da religião com a qual se relaciona. Isso porque a bruxaria é um caminho autônomo, cuja essência é transgredir os limiares da convencionalidade para ligar o iniciado ao transcendente.

Respondendo, por fim, nossa bruxaria não é cristã, definitivamente não é pagã, nem tampouco diabolista. Nossa bruxaria é BRUXA. E muito bruxa, diga-se de passagem.

Isto posto, deixo a briga por enquadramento religioso àqueles cuja mentalidade é compatível com esse nível simplista e caricato de discussão. A minha e a dos meus definitivamente não o é.




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