Por Draco Stellamare
Satã observando o sono de Cristo - Joseph Paton (c.1900) |
A experiência de congregar com outros praticantes de bruxaria de outras vertentes bem diferentes da minha sempre foi algo enriquecedor, mesmo quando “choques culturais” acontecem. Um desses choques que acontece com maior frequência é as pessoas me definirem como um “bruxo cristão” em razão da existência do catolicismo mágico-folclórico em minha tradição. Preciso dizer que embora o catolicismo seja a religião culturalmente assumida por mim e por minha família nas respostas ao IBGE, eu mesmo nunca pensei nesses termos radicais de distinção entre uma “bruxaria cristã” ou “bruxaria pagã”, mas a frequente reincidência desse assunto fez com que eu me questionasse... Afinal, nossa bruxaria é cristã, pagã ou diabolista?
Por um lado, eu poderia dizer
que minha tradição – de um tempo para cá denominada Stellamare – é essencialmente
pagã no sentido antigo do termo paganus, enquanto designativo para pessoas
que vivem em comunhão com forças naturais e afastadas da lógica tida como “mais
civilizada” da religião institucionalizada. Afinal de contas, somos
considerados como hereges pela Igreja Católica Apostólica Romana, e muitas das
coisas que fazemos lidam diretamente com uma mentalidade mais rústica e primitiva
(literalmente classificada por alguns de meus parentes como uma mentalidade
atrasada e supersticiosa de gente muito sofrida). Mas, por outro lado, nossas
devoções e cosmovisão são quase que completamente cristianizadas. Rezamos para
santos, tomamos parte dos sacramentos católicos, concebemos o mundo e os seres
espirituais de acordo com uma visão própria do catolicismo folclórico da região
de origem de nossa linhagem, influenciada brevemente pelo pensamento de algumas
correntes esotéricas também cristãs, e não temos nenhum tipo de conexão com os
processos de retomada do politeísmo clássico levados a cabo pelo neopaganismo.
Contrapondo essas duas realidades talvez fosse possível, sob a ótica do termo “pagão”
enquanto um designativo para uma espiritualidade folclórica e “caipira”, chamar
nosso alinhamento religioso de “cristo-pagão”, para o arrepio de muitas pessoas
mais sectárias em nosso meio.
Entretanto, não é esse o significado
mais difundido de paganismo nos dias atuais, nos quais a maioria das pessoas
compreende o termo “pagão” como um designativo para os devotos politeístas,
sejam eles nórdicos, romanos, celtas, helênicos ou quaisquer outros, avessos às
realidades das religiões abraâmicas. Seria por esse viés inadequado classificar
a nossa stregoneria e todas as outras tradições similares a ela como
pagãs... Elas não possuem um culto aos deuses de panteões pré-cristãos e muitas
vezes não estão preocupadas em se dissociar da cosmovisão judaico-cristã para
continuarem a fazer o que fazem. Muitos dos iniciados em stregoneria que
conheci até hoje mantém suas práticas de bruxaria com discrição enquanto
participam ativamente de uma comunidade religiosa católica, e eles não tem
interesse de mudar esse modus operandi, mesmo discordando veementemente
de muitas das diretrizes dogmáticas da instituição. Está no DNA de certas
bruxarias tradicionais manter um amálgama simbiótico com a religião, se
utilizando dela para seus próprios fins, e sem grandes preocupações em se
justificar para quem quer que seja.
Resta pensarmos num último
aspecto que seria o diabolismo. Nossa tradição possui a figura do Diabo muito
bem entranhada, hoje ativa e operante. Poderíamos assim compreender que ela seria
uma tradição diabolista apesar de virtualmente católica? Muitos que conheceram
nossas práticas mais fechadas diriam que sim, mas eu ainda abordaria essa
classificação com muita cautela, pois a figura diabólica não ocupa um papel de
antagonista declarado da deidade cristã em nossos mitos, mas sim um papel de
coadjuvante ao sagrado, talvez pela necessidade histórica de conciliar as duas
mãos de nossa adoração para poder sobreviver e legar as práticas à diante. O
Diabo está para as bruxas como Cristo está para os cristãos convencionais. Ele
é um santo demonio, um senhor, um direcionador e muitas outras coisas. E
mais do que isso: nossa cosmovisão é tudo menos “anticósmica”. O Diabo faz
parte do cosmos e tem um importante papel no funcionamento do universo,
de modo que a pecha do satanismo vulgar, essa revolta simplista contra o
universo e a divindade que supostamente o governa, não nos apetece nem nos
contempla. Como eu poderia me definir apenas como diabolista nestes termos?
A realidade, se me perguntassem
neste momento, é que nossa bruxaria – bem como todas as bruxarias tradicionais
da mesma natureza que a nossa – é um caminho próprio e sinuoso, nem completamente
cristão e nem exatamente pagão, e permeado de um diabolismo tão
transgressor que consegue transgredir até mesmo o que se tornou hegemônico ao
falarmos de satanismo ou caminhos de “mão esquerda”. Tenho como convicção
pessoal que a bruxaria verdadeira é uma via iniciática de caráter transcendente,
capaz de tecer amálgamas e simbioses ÚTEIS com qualquer espectro religioso e
com qualquer sistema de magia. Existem bruxarias com cristianismo, com
judaísmo, com islamismo, com paganismo e com qualquer vertente religiosa
imaginável, mas nenhuma delas é aprisionada pelos dogmas da religião com a qual
se relaciona. Isso porque a bruxaria é um caminho autônomo, cuja essência é
transgredir os limiares da convencionalidade para ligar o iniciado ao
transcendente.
Respondendo, por fim, nossa
bruxaria não é cristã, definitivamente não é pagã, nem tampouco diabolista.
Nossa bruxaria é BRUXA. E muito bruxa, diga-se de passagem.
Isto posto, deixo a briga por enquadramento
religioso àqueles cuja mentalidade é compatível com esse nível simplista e
caricato de discussão. A minha e a dos meus definitivamente não o é.
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