sexta-feira, 19 de julho de 2024

Deificação e a Descida do Fogo de Aster

 Por Draco Stellamare




A bruxaria considera a si mesma como um caminho sinuoso entre a esquerda e a direita, mas para onde este caminho leva é uma questão pouco dimensionada na maioria das vezes. As respostas podem ser tantas quanto são os caminhos a serem trilhados, mas de uma maneira geral um objetivo se destaca dentre as sendas que se pautam na mitologia sabática da bruxaria: esse objetivo é a deificação, chamada ainda divinização ou apoteose, para a linguagem católica “herética” a coroa da vida eterna.

A eternidade significa aquilo que existe no absoluto, fora do tempo e do espaço, e imaculado por estes. Difere da perpetuidade porque enquanto as coisas perpétuas se conservam – se perpetuam – ao longo do tempo, sofrendo sua ação de forma direta, as coisas eternas não estão sujeitas ao passar do tempo. Podemos conceber essas ideias simbolicamente através da estrela sabática – para nós chamada de Estrela do Mar ou Roda de Santa Caterina. A criação manifesta, o cosmos, é representado como sendo a circunferência de um círculo que se movimenta de forma espiralada – seu giro sendo o próprio passar do tempo e seus limites no espaço sendo a própria noção de espacialidade. O centro da circunferência, equidistante em relação a todas as partes da circunferência e ao mesmo tempo fora dela (fora do tempo e do espaço) é o que chamaríamos de Eterno. O paraíso ou reino divino – para os adeptos da religiosidade clássica romano-etrusca chamado de Aster – se localiza nesse ponto da eternidade. Ali se reúnem todos os seres plenamente divinos, enlaçados pela chama sagrada do espírito, a mesma que habita no Sagrado Coração que anima as almas de todos os seres. A encarnação de um espírito imortal em uma alma e de ambos em um corpo é a descida do fogo sagrado que habita em Aster para a criação manifesta. É uma forma que o Eterno possui de “tocar com as próprias mãos” o universo que dele emanou e se manifestou.

Compreendido isso, o que seria então a deificação?

De todas as partes que nos formam a única que é necessariamente imortal é o fogo sagrado do espírito. Tanto nossos corpos quanto as múltiplas partes de nossas almas são mortais e – salvo intervenção iniciática ou muita perseverança – são fadadas à evanescer com o peso do tempo que faz sucumbir todas as coisas. Como o fogo sagrado já é divino e partícipe da eternidade por natureza, a deificação só pode se referir à alma (e em casos mais raros ao corpo). Dizia minha avó que a vida eterna é o estado de união verdadeira e inquebrável com Deus – quando não existe mais separação entre você, sua personalidade e identidade, e o divino. Isso implica um estado de identificação plena entre o espírito imortal e a alma dotada de personalidade própria. A deificação é o estado de plena possessão da alma – antes mortal – pelo espírito imortal, que a eleva à categoria de ser plenamente divinizado. A principal característica compreensível para nós, reles mortais, acerca da divinização é a capacidade de livre trânsito do ser entre o Eterno e a criação, podendo tocar o cosmos em qualquer tempo e local escolhido, sem ser prisioneiro das causas e condições que afligem os seres não-divinizados. Comumente, o ser que se diviniza o faz tornando-se parte – por simetria – de uma divindade maior e mais ampla, detentora dos mistérios primordiais que embasaram a criação de seu sagrado coração e de sua alma. Daí temos a compreensão de Maria como uma humana divinizada na Mãe Divina, de Santa Luzia como uma humana divinizada em Lucifera, de diversos seres ctônicos divinizados como o Imperador do Inferno e assim por diante.




O objetivo principal da bruxaria, pelo menos no que tange o seu aspecto sabático e transcendental, é a deificação do iniciado através da magia e da comunhão com o divino. Essa comunhão é similar e ao mesmo tempo distinta da comunhão eucarística realizada pelas igrejas cristãs tradicionais. Através do Sabá, o iniciado sorve da essência dos deuses eternos e se coloca em rota de aproximação com eles. A expansão da percepção – ou de consciência, como alguns preferem –, o aprimoramento dos dons e o aumento de poder são os objetivos intermediários que marcam o caminho da apoteose. Naturalmente, essa é uma jornada raramente finalizada em uma única vida. Embora ela possua tons evidentemente gnósticos, ela não passa por uma satanização do mundo material (pelo menos não em nossas tradições), dado que o mundo material é uma das vias pelas quais o Eterno experimenta a própria criação.  O cosmos não é bom e nem mau, inerentemente falando. Ele apenas é como é, e todo juízo de valor depende unicamente de nossa perspectiva sobre ele. As coisas que nos separam da deificação, contudo, podem ser personificadas sob o nome de um Incriado ou “Espírito da Opressão”, e podem ser combatidas a nível de entendimento filosófico sobre nossas ações e trilhas de pensamento.

Assim temos que o fogo sagrado de Aster desce para a terra sob a forma de incontáveis seres, experimentando e explorando a criação que dele se originou em princípio. Quando a maior parte destes seres morre em corpo e depois em alma, o coração contendo aquela centelha do fogo sagrado segue para outra experiência cósmica, e mais outra, e mais outra. Quando ao invés disso, alguns desses seres conseguem se deificar – seja em alma ou em alma e corpo – ocorre o retorno desse novo deus ao mundo divino como uma nova expansão do sagrado. Todo espírito imortal guarda as memórias de todas as suas existências – mas ele não é essas existências. Quando esse espírito se torna um com a alma na deificação, contudo, a personalidade daquela alma se torna sua identidade predominante, a persona de uma nova divindade, livre, incomensuravelmente poderosa e eterna. Alguns acreditam que todos os seres sencientes caminham para a deificação, e a depender do que você concebe como sendo o ser propriamente dito isso pode ser verdade (se você concebe que a identidade verdadeira é o espírito imortal). Entretanto, considerando que a individualidade dos seres como os conhecemos neste mundo está na alma e não no espírito imortal, a deificação se constitui num prêmio para poucos. Segundo diversas tradições as bruxas são uma das raças espirituais que possuem uma tendência a alcançar esse prêmio, não somente porque a prática da magia as empurra a se tornarem mortos poderosos – meio caminho andado até a deificação – mas também porque a corrente de poder que atravessa suas almas é um passo a mais na comunhão ardente com o sagrado necessária para a apoteose.

Possa a Estrela do Mar guiar a todas as almas merecedoras até a coroa da vida eterna! E possa o fogo de Aster inspirar a todos que buscam o caminho!



Recepção de uma garota pela bruxa na iniciação
por criaturas monstruosas - Artista desconhecido.


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