Por Draco Stellamare
Aviso aos leitores: Este texto é uma resposta a diversas
falas depreciativas contra nossas tradições, feitas por determinadas pessoas.
Ele fala contra um posicionamento específico de alguns indivíduos e não tem a
intenção de desmerecer qualquer outra tradição, linhagem ou praticante
solitário que não se enquadre como promulgador das ideias “fundamentalistas” e injuriosas
lançadas contra nós.
É amplamente conhecido o ditado que diz que “o pior cego é aquele que não quer ver”. Sempre me ocorreu que essa frase dizia respeito às pessoas que, tendo ciência de uma situação óbvia à sua frente, preferiram viver uma fantasia confortável onde o aspecto incômodo da realidade era ignorado. A mim parece que uma parcela da comunidade bruxa brasileira vive constantemente fazendo uso desse artifício. Em especial algumas lideranças religiosas, seus vassalos e seguidores - muitos ligados à Wicca Tradicional e alguns poucos à sua variante eclética - parecem ávidos em desqualificar as linhagens alheias enquanto bruxaria, isso quando não questionam a própria existência do laço tradicional alheio fazendo as mesmas perguntas que já foram dirigidas às suas próprias origens, sem serem satisfatoriamente respondidas por eles mesmos (às vezes por desconhecimento e outras vezes por deliberada má-fé).
O argumento “de ouro” dessas
lideranças e seus minions costuma ser a legitimidade exclusiva da Wicca tradicional
enquanto linhagem bruxa válida, posto que bruxaria seria para essas pessoas o
sinônimo de um culto mistérico duoteísta. Parecem convenientemente fechar os
olhos para o mínimo bom senso ao considerar que, de todos os países do mundo,
apenas a Inglaterra possuiria isso que eles consideram como bruxaria, e que
nenhuma outra cultura da face da terra poderia desenvolver algo que fosse
equivalente à bruxaria inglesa e tão antiga quanto. O fato de que essas
linhagens são consideradas as “primeiras” diz muito sobre o uso da mídia como
forma de validação: se outras tradições vieram à público depois, é porque
seriam “criações” posteriores. Ignora-se todo o contexto social e jurídico de
perseguição às práticas de bruxaria que só começa a ser amenizado dos anos 50 e
60 em diante, bem como ignora-se totalmente – desde o início – o que os
estudiosos têm a dizer sobre a magia folclórica e a bruxaria enquanto fenômeno
histórico e amplamente difundido em diversos países e contextos regionais.
Além da negação que essas
pessoas fazem à pluralidade das bruxarias tradicionais – da qual já falamos
ostensivamente neste blog e no Congresso Brasileiro de Bruxaria Tradicional
–, há que se considerar a incongruência demonstrada entre o discurso vigente e
as próprias raízes da tradição reformulada por Gerald Gardner. Ignora-se, na
prática, que Gardner teria sido iniciado em uma linhagem de bruxas tradicionais
e se utilizado de seus conhecimentos de ocultismo e espiritualidades orientais
para estruturar um novo formato para a tradição professada por essa linhagem,
consagrando-a em definitivo como uma religião. Em essência, pelo que se
apreende de seus escritos, a linhagem na qual ele foi introduzido não se
distanciava tanto de outras práticas, tanto folclóricas quanto esotéricas,
existentes na Inglaterra do século XIX. A polêmica em volta de quem teria sido
sua real iniciadora – se a aristocrata Dorothy Cuttlerbuck ou sua amiga íntima
Edith Woodford-Grimes –, proporcionalmente atrelada à desconfiança quanto a sua
existência, serviu como cortina de fumaça para desviar a atenção de um fato
muito simples: se Gardner fora iniciado num coven tradicional que
segundo ele tinha conexões com uma tradição precedente, ele certamente não
deveria ser o único remanescente dessa tradição, embora ele claramente se
sentisse como tal. Em verdade, muito se especula sobre a origem das práticas de
bruxaria da Crotona Fellowship (fonte da iniciação de Gardner) estar
alocada junto às origens de outras linhagens conhecidas de bruxaria da
Inglaterra que remetem aos “nove covens” de George Pickingill, cuja linhagem por
sua vez remonta ao famoso James Murell, bruxo temido por toda a East Anglia. A
história de Murell, que é por si só um contraponto à visão de mundo dos wiccrentes
mais fanáticos, é relatada na obra Fundamentos de Bruxaria Tradicional e
Stregoneria da autoria de Sett Lupino, no capítulo intitulado “O Dragão de
Essex”.
Edith Woodford-Grimes, possível iniciadora de Gerald B. Gardner.
George Pickingill, famoso bruxo da região de Essex.
Através do estudo sobre este
ramo da “linhagem de Essex” fica evidente uma realidade pouco comentada, que é
a evolução ou desenvolvimento que as práticas de uma tradição de bruxaria vão
sofrendo ao longo do passar do tempo e das gerações. Junto à própria Wicca
tradicional, a linhagem de Essex transmitida pela Cultus Sabbati é uma prova
viva dessa realidade: enquanto a prática de James Murell estava mais embasada
em feitiçaria folclórica rural e na veneração de duas mãos, alguns de seus
herdeiros elaboraram um complexo sistema ritualístico de bases gnósticas,
profundamente influenciado – tal como a Wicca de Gardner – pelo Uttara Kaula
Tantra, pelo esoterismo da O.T.O e outros saberes de cunho ocultista. E o
desenvolvimento posterior das estruturas da tradição agregando uma simbologia
mais complexa não coloca a perder o seu caráter tradicional, nem faz com que os
ancestrais daquela linhagem (que não eram sacerdotes e sacerdotisas nem detentores
de um esoterismo gnóstico tão erudito) deixem de ser considerados bruxos. Dito
isto, eu penso que eu até poderia ter respondido melhor um infeliz que me disse
que “remover verrugas não é bruxaria”, tentando desqualificar minha tradição
como se ela se resumisse a simpatias de velhas carolas. Decerto, a minha
prática atual e aquela do Círculo Stella Maris são amplamente mais complexas do
que a de meus antepassados, pelo próprio trabalho de resgate e aprofundamento
realizado por nós. Contudo, se os antecessores “folclóricos” da Cultus Sabbati
e da Crotona Fellowship podiam ser considerados bruxos, os nossos – que
carregaram mitos e práticas característicos da stregoneria friulana tanto
quanto aqueles carregaram da witchcraft inglesa– também podem.
Convém relembrar também como em
A Bruxaria Hoje o próprio Gardner (tido pelos fundamentalistas como
inventor da bruxaria) enuncia que a fonte da bruxaria era italiana, e como
muito do conteúdo esotérico introduzido por Gardner em seu culto advém – como
já mencionado – do Uttara Kaula Tantra, de origem hindu. A Wicca estabeleceu a
si mesma, dessa forma, como uma bruxaria religiosa ou uma “religião bruxa”, que
certamente possui embasamento tradicional em diversos caminhos, mas que não
encerra em si mesma o todo da bruxaria enquanto fenômeno plural, para muitos um
ofício ou uma condição pessoal de empoderamento. A bruxaria vista em lato sensu
permite que se contemple diversas nuances da humanidade, de mistérios de ordem
esotérica ligados a diversas tradições e de contextos culturais muito
diversificados. Mas toda essa riqueza e pluralidade é forçosamente
negligenciada pelo discurso de que “apenas a Wicca é bruxaria”, e que quaisquer
outras coisas são formas inferiores de feitiçaria ou cópias daquilo que só os
wiccanianos tradicionais possuem.
Apollo e Vesta - François Andre Vincent (1789).
A outra dimensão dessa
“cegueira voluntária” dos fundamentalistas wiccanianos se torna um ataque mais
direto, porém ao mesmo tempo mais tosco. É justamente a acusação de fraude da
qual se lança mão contra linhagens que não sejam as que provém de Gardner. Curiosamente,
os meios de prova da existência da linhagem hoje denominada Stellamare, assim
como as dos Rhein e dos Lupino, das quais tenho a honra de fazer parte, são praticamente
os mesmos que restaram a Gerald Gardner, Alex Sanders, Andrew Chumbley e qualquer
outra grande referência em bruxaria inglesa. Isto é, somos todos reféns da
oralidade e da coerência das histórias que ouvimos dos que nos precederam.
Mesmo porque a maior parte das tradições não possuía grimórios escritos (e as
que possuíam nem sempre os preservaram adequadamente), e ninguém se importava
em mapear linhagem iniciática antes dos movimentos do revival ocultista
do século XIX. Essa é uma das razões pelas quais todas as linhagens que eu
citei aqui – inclusive a minha – só conseguem rastrear sua cadeia iniciática
até a primeira metade dos anos 1800, um pouco antes do período em que a relevância
da manutenção de um histórico iniciático começa a ser cogitada mais seriamente.
Por óbvio, isso não significa que todas essas tradições começaram em meados do
século retrasado. Mas significa que a memória histórica que nos foi possível só
alcança até este período, e de uma certa maneira, sinto que isso nos coloca em
termos bastante igualitários, já que a oralidade não basta para produzir prova
histórica sobre a existência factual da tradição em séculos passados, mas tão
somente na nossa crença atual de que assim aconteceu.
Dito tudo isto, é
esplendorosamente feliz o fato de que eu não devo provas de nada do que eu falo
sobre minha ancestralidade a quem não possui comigo um vínculo iniciático. E
quanto aqueles que possuem comigo esse vínculo, de um modo ou de outro,
conhecem meus familiares que podem atestar o contexto de nossa espiritualidade
e mais importante do que isso: confiam na minha palavra. O resto,
principalmente aqueles que preferem uma cegueira voluntária para não encarar
que temos muito mais em comum do que eles gostariam de admitir, quero que fiquem
com todo o pedigree que acham que possuem, mas bem longe de mim. Pois se
o termo wicca significa “sábio”, e um sábio é uma pessoa que possui
sabedoria, a última coisa que esses fundamentalistas podem se considerar de
verdade é wiccanianos.
Para finalizar essa “resposta” aos
impropérios circulantes a nosso respeito, eu invoco a sabedoria folclórica do
povo brasileiro para relembrá-los, amigos e haters, de que enquanto os
cães ladram, a caravana passa.
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