sexta-feira, 12 de julho de 2024

As Aganis e seus Filhos

 Por Draco Stellamare



A Water Baby - Herbert James Draper (1895)

No extremo nordeste italiano, uma das figuras mágicas mais famosas são os espíritos das águas conhecidos como anguane na língua veneta e como aganis ou agane na língua friulana. Elas são tidas como ninfas ou sereias, espíritos em sua maioria femininos que estão ligados às fontes de água e exercem um poderoso fascínio sobre os seres humanos. Em algumas localidades elas são vistas como benéficas, em outras como maléficas e em muitos lugares são compreendidas como seres ambivalentes, capazes de fazer tanto o bem quanto o mal – muito provavelmente tais variações acompanhando o “humor” dos rios e lagoas das proximidades.

A forma como as aganis são vistas e descritas é mais frequentemente feminina, sob a aparência de belíssimas ou horrendas mulheres, normalmente jovens, que se apresentam nuas ou vestidas em vestes escuras (quando próximo a águas profundas). Na zona alpina e nas demais zonas montanhosas da região friulana, é mais comum que as aganis apareçam em formas assustadoras, enquanto na planície elas são vistas em tons mais palatáveis à estética humana. Um fato que nunca escapa às histórias sobre suas aparições é que seus pés são sempre percebidos como caudas duplas de peixe ou rabos de serpente quando na água, e como pés de ganso ou de cabra ou cavalo quando na terra. A conhecidíssima imagem da sereia de duas caudas é uma das representações artísticas mais próximas desses espíritos.



A Sereia - John William Waterhouse (1900)

Uma pesquisa etnográfica realizada no Friuli por Lea D’Orlandi demonstra como é a visão comparativa de uma parte da população sobre as aganis, as fate (fadas) e as bruxas:

La persona che mi comunica questo, adopera prima la parola “streghe” e poi “aganis”. Il Pirona (2) ha: “AGANE, strega, fata”. Dalla voce popolare raccolgo: “Las aganes no fasin dal mal; las fates fasin dal ben; las stries scugnin (devono) fâ dal mal”. (...)  Le prime sono vestite di scûr, e ballano con la scopa, le seconde ballano ciapades par man a clar di lune, vistude di clar”.

Tradução: A pessoa que me comunica isto utiliza primeiro a palavra “bruxa” e depois “aganis”. Em Pirona há “AGANE, bruxa, fada”. Da voz popular recolho: “As aganes não fazem o mal; as fadas fazem o bem; as bruxas devem fazer o mal”. (...) As primeiras [aganis e bruxas] são vestidas de escuro, e dançam com a vassoura, as segundas dançam de mãos dadas ao clarão da lua, vestidas de claro”.

Muitas das tradições de stregoneria com origens no Friuli se originam da troca e comunhão iniciático-familiar dos seres humanos com entes demoníacos como as aganis e as fadas. Em especial na zona liventina – a região vêneto-friulana que acompanha o curso do rio Livenza – esse laço entre as bruxas os espíritos ancestrais da água são muito profundos, dado que o rio Livenza em si é conhecido como um dos corpos d’água mais sagrados aos antigos espíritos aquáticos. Acredita-se que o nome do próprio rio, que é de gênero feminino, advém do latim La Liquentia (algo como “a liquidez”) que teria então evoluído para o vêneto La Łivensa e para as variantes friulanas La Livença, La Livence e La Lighintha.



Palù di Livenza, zona pantanosa onde nasce La Livenza.



Rio Livenza passando pela cidade de Sacile.


A relação dos humanos com as aganis é controversa e conturbada. Para muitos folclores regionais elas são conhecidas por encantar os jovens solteiros que estão voltando da missa – ou perambulando a esmo sozinhos durante o pôr-do-sol – e levá-los para dentro d’água para afogá-los e consumir a sua carne. Entretanto, nas linhagens mágicas que remontam uma parte ou a totalidade de seus dotes às aganis, elas são retratadas como seres que estão abertos à interação sexual e afetiva com os homens. Um mito colhido e narrado por Monia Montechiarini em seu livro sobre a bruxaria friulana ilustra muito bem essa relação:

Em Casarsa della Delizia, notada morada de Pier Paolo Pasolini e onde morei quando criança, se conta a lenda das Aganis, recolhida por Riccardo Castellani, de que elas aparecem nos canais de Miris’cis e de Sainis. As aganis de Casarsa lavam “panos de linho e ciano”. Um camponês de Casarsa della Delizia que habitava no burgo de Sc’avés se apaixona por uma delas. Se casa com ela e por muitos anos vivem serenamente. Da relação nascem quatro filhos. Mas uma tarde a esposa se entretém com uma de suas irmãs aganis no canal até tarde da noite. Assim, quando retorna à casa o marido bate nela, fazendo com que a criatura mágica volte para suas irmãs para sempre, desaparecendo e renunciando à sua vida terrestre.

A crença de que uma pessoa poderia nascer do cruzamento real entre um ser humano e uma criatura mágica é profundamente entranhada no pensamento mítico das gerações passadas da stregoneria. Embora se possa conceber sob um olhar mais racional que esse cruzamento poderia ser uma forma de vínculo iniciático, o fato é que em tais linhagens as aganis são consideradas como ancestrais de sangue e espírito tais quais os Antigos, os mortos poderosos daquela linhagem. Elas recebem oferendas recorrentes, presentes como joias, pérolas ou pentes de osso, e diversos pactos podem ser firmados com elas em rios, cachoeiras e poços naturais. Uma das coisas que se contava em minha família nos tempos da infância de minha avó era que as aganis eram vistas lavando roupas dos moradores da casa. Se em algum momento as roupas estivessem ensanguentadas, era sinal de que uma morte se aproximava. Elas também eram ouvidas cantando junto às mulheres falecidas da família, junto ao curso das águas, em algumas noites específicas do ano. Esse último relato faz uma interessante conexão com outro aspecto dos mitos italianos sobre as aganis: o de que elas seriam jovens que morreram virgens, mulheres que morreram durante o parto ou ainda as almas vagantes de meninas que morreram afogadas.



Melusine.

Muitas semelhanças na conexão entre as bruxas e as aganis podem ser encontradas em relação à presença de Melusine nos brasões heráldicos de famílias que se originaram no Sacro Império Romano Germânico e em certos locais dos países nórdicos. Frequentes são os mitos que a retratam em caracteres similares aos das aganis e de outras sereias típicas do folclore europeu: como belas moças residentes nas águas e que podem estabelecer pactos com os que vivem na terra, consubstanciando bênçãos e maldições. Curiosa também é a presença das crianças trocadas nos mitos envolvendo Melusine: uma criança humana é levada pelos espíritos das águas e substituída por uma criança da raça demoníaca.

Também é muito similar o papel mágico das agani e das rusalka, as sereias do folclore do leste europeu, muito próximo ao Friuli, e provavelmente a ele conectado devido à existência da Slava Friulana (o conjunto de regiões dentro do Friuli em que existe forte presença eslava). Segundo essa perspectiva as sereias seriam espíritos que vivem no fundo das águas durante os gélidos invernos, e na superfície durante o verão. Seu poder assim seria mais acessível na metade mais quente do ano, e mais distante na metade mais fria. Assim como as aganis, as rusalka são por vezes retratadas como carnívoras e predadoras hostis do ser humano. Curiosamente, a relação de proximidade que elas possuem com a bruxa Baba Yaga nos mitos eslavos encontra alguns ecos na proximidade das aganis com as striga – as bruxas primordiais, vistas como sombrias mulheres pássaro que voam durante a noite e atacam crianças pequenas em seus berços. Em minha tradição se considera que as striga são as avós ou ancestrais das próprias aganis, enquanto espíritos primordiais que estão vinculados ao mar sagrado. Daí vem uma de suas conexões com a Madonna, para as bruxas a senhora das águas primordiais. Nesse sentido, é interessante perceber que o rio Livenza deságua no mar em uma cidade litorânea chamada Caorle, onde é louvada uma espécie de “Nossa Senhora do Mar”, cujo nome oficial é Madonna dell’Angelo, mas que é frequentemente tratada como Madona del Mar ou Madonnina del Mare. Sua igreja fica construída basicamente na beira da água do mar. Uma das cantigas que foram compostas para a Madonnina del Mare nas últimas décadas parece quase ecoar elementos simbólicos da deusa Reitia – cultuada na área veneziana pré-cristã – que era representada navegando no céu em um barco que era a própria lua crescente.

Al primo sole si desta
la città della marina
e in un bel giorno, risuona
la dolce campana vicina
mentre sul mare d’argento
va il pescatore contento
passa e s’inchina
alla sua Madonnina
dicendole piano così:

“Madonnina del mare,
non ti devi scordare di me,
vado lontano a vogare,
ma il mio dolce pensiero è per te”
Canta, il pescatore che va,
“Madonnina del mare
con te questo cuore
sicuro sarà!”

L’ultimo raggio di sole
muore sull’onda marina
e in un tramonto di sogni,
lontano la barca cammina
fra mille stelle d’argento
va il pescatore contento*

sente nel cuore un sussulto
d’amore sospira pregando così:

“Madonnina del mare,
non ti devi scordare di me,
vado lontano a vogare,
ma il mio dolce pensiero è per te”
Canta, il pescatore che va,
“Madonnina del mare
con te questo cuore sicuro sarà

 

*e em um pôr-do-sol de sonhos,
longe a barca caminha
entre mil estrelas de prata
vai o pescador contente



Santuario della Madonna dell'Angelo na cidade de Caorle.
Uma das lendas sobre o local diz que durante uma inundação
marinha que desolou a costa, nenhuma gota de água chegou a
entrar dentro da igreja.

 


Imagem da Madonna Dell'Angelo cultuada na igreja em Caorle.


Das pessoas que carregam o sangue das aganis em sua ancestralidade pode-se esperar algum tipo de carisma, seja físico ou seja verbal, uma facilidade em magias de amor e de fascinação, em alguns casos o canto mágico e uma facilidade muito grande com as palavras. O dom das sereias é um dom lunar e venusiano, por assim dizer. Sua magia é ótima para ocultação, ilusão e convencimento, e elas são ótimas fiandeiras – associadas à magia com costura, novelos de lã e linhas de todo tipo. Ao contrário do que as pessoas normalmente pensam, suas oferendas prediletas são vísceras de determinados animais – que podem variar de acordo com a ocasião –, aguardente, flores e outros elementos próprios de cada tradição. Seu humor, tal como apresentam os mitos, é voluntarioso. Os espíritos da água podem ser muito suaves ou muito violentos, e capazes de mudar de um estado para o outro com agilidade e sem prévio aviso. A elas estão ligados os dons da neblina, entre os quais a saída de uma parte da consciência da bruxa sob forma de névoa para fora do corpo. Também nos mitos da tradição se conta que São Francisco e Santa Clara eram versados neste tipo de prática de voo espiritual.

Quando da imigração para o Brasil, as famílias que possuíam a ligação ancestral com as aganis se depararam frequentemente com um território rico em recursos hídricos, no qual um folclore próprio sobre os espíritos da água já existia. É assim que as aganis ganharam também o nome de “lavadeiras” em minha família, sendo associadas aos caboclos e à Mãe D’Água pelos meus parentes que se iniciaram na umbanda. Os caracteres próprios do folclore vêneto-friulano, contudo, sobreviveram vividamente até os dias de hoje, ligando-nos pelo sangue e memória aos espíritos do Livenza, do Mar Adriático e de outras águas que lá existem.



Hylas e as Ninfas - Waterhouse (1896)

Entre ogros, fadas, duendes, pássaros encantados e dragões, as aganis constituem um dos principais seres demoníacos que costumam estar por trás das raízes ancestrais das linhagens bruxas no Triveneto (a macro-região formada por Veneto, Friuli Venezia-Giulia e Trentino Alto-Agide). Tal como as janas da Sardegna e a janara da Campania, sua ligação com as bruxas humanas é tamanha que elas chegam por vezes a serem vistas como o mesmo ser. Para aqueles que buscam compreender como surgiram e como se mantém algumas das linhagens bruxas daquela parte do mundo, a compreensão sobre estes espíritos (e os muitos outros que transmitiram sua magia aos seres humanos de alguma forma) é uma etapa importante, tanto sob o aspecto folclórico, quanto sob o aspecto esotérico a respeito de tais tradições.


“Bada la agana, bada il demònio
È la nemica del matrimonio
Bada che bela ma non è jente
Bada che morse come un serpente”



A Mermaid - Waterhouse (1900)

 

Referências

Stregoneria Malocchio Jettatura nelle Tradizioni Friulane – Lea D’Orlandi

Streghe, eretici e benandanti del Friuli Venezia Giulia – Monia Montechiarini

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