Por Draco Stellamare
A Water Baby - Herbert James Draper (1895)
No extremo nordeste italiano, uma das figuras mágicas mais famosas são os espíritos das águas conhecidos como anguane na língua veneta e como aganis ou agane na língua friulana. Elas são tidas como ninfas ou sereias, espíritos em sua maioria femininos que estão ligados às fontes de água e exercem um poderoso fascínio sobre os seres humanos. Em algumas localidades elas são vistas como benéficas, em outras como maléficas e em muitos lugares são compreendidas como seres ambivalentes, capazes de fazer tanto o bem quanto o mal – muito provavelmente tais variações acompanhando o “humor” dos rios e lagoas das proximidades.
A forma como as aganis são
vistas e descritas é mais frequentemente feminina, sob a aparência de
belíssimas ou horrendas mulheres, normalmente jovens, que se apresentam nuas ou
vestidas em vestes escuras (quando próximo a águas profundas). Na zona alpina e
nas demais zonas montanhosas da região friulana, é mais comum que as aganis
apareçam em formas assustadoras, enquanto na planície elas são vistas em tons
mais palatáveis à estética humana. Um fato que nunca escapa às histórias sobre
suas aparições é que seus pés são sempre percebidos como caudas duplas de peixe
ou rabos de serpente quando na água, e como pés de ganso ou de cabra ou cavalo
quando na terra. A conhecidíssima imagem da sereia de duas caudas é uma das
representações artísticas mais próximas desses espíritos.
A Sereia - John William Waterhouse (1900)
Uma pesquisa etnográfica
realizada no Friuli por Lea D’Orlandi demonstra como é a visão comparativa de
uma parte da população sobre as aganis, as fate (fadas) e as
bruxas:
La persona che mi comunica questo, adopera prima la
parola “streghe” e poi “aganis”. Il Pirona (2) ha: “AGANE, strega, fata”. Dalla
voce popolare raccolgo: “Las aganes no fasin dal mal; las fates fasin dal
ben; las stries scugnin (devono) fâ dal mal”. (...) Le prime sono vestite di scûr, e
ballano con la scopa, le seconde ballano ciapades par man a clar di lune,
vistude di clar”.
Tradução:
A pessoa que me comunica isto utiliza primeiro a palavra “bruxa” e depois
“aganis”. Em Pirona há “AGANE, bruxa, fada”. Da voz popular recolho: “As aganes
não fazem o mal; as fadas fazem o bem; as bruxas devem fazer o mal”. (...) As
primeiras [aganis e bruxas] são vestidas de escuro, e dançam com a vassoura, as
segundas dançam de mãos dadas ao clarão da lua, vestidas de claro”.
Muitas das tradições de stregoneria
com origens no Friuli se originam da troca e comunhão iniciático-familiar dos
seres humanos com entes demoníacos como as aganis e as fadas. Em especial na
zona liventina – a região vêneto-friulana que acompanha o curso do rio Livenza
– esse laço entre as bruxas os espíritos ancestrais da água são muito
profundos, dado que o rio Livenza em si é conhecido como um dos corpos d’água
mais sagrados aos antigos espíritos aquáticos. Acredita-se que o nome do
próprio rio, que é de gênero feminino, advém do latim La Liquentia (algo
como “a liquidez”) que teria então evoluído para o vêneto La Łivensa e para as variantes
friulanas La Livença, La Livence e La Lighintha.
Palù di Livenza, zona pantanosa onde nasce La Livenza.
Rio Livenza passando pela cidade de Sacile.
A relação dos humanos com as aganis é
controversa e conturbada. Para muitos folclores regionais elas são conhecidas
por encantar os jovens solteiros que estão voltando da missa – ou perambulando
a esmo sozinhos durante o pôr-do-sol – e levá-los para dentro d’água para
afogá-los e consumir a sua carne. Entretanto, nas linhagens mágicas que
remontam uma parte ou a totalidade de seus dotes às aganis, elas são retratadas
como seres que estão abertos à interação sexual e afetiva com os homens. Um
mito colhido e narrado por Monia Montechiarini em seu livro sobre a bruxaria
friulana ilustra muito bem essa relação:
Em Casarsa della
Delizia, notada morada de Pier Paolo Pasolini e onde morei quando criança, se
conta a lenda das Aganis, recolhida por Riccardo Castellani, de que elas
aparecem nos canais de Miris’cis e de Sainis. As aganis de Casarsa lavam “panos
de linho e ciano”. Um camponês de Casarsa della Delizia que habitava no burgo
de Sc’avés se apaixona por uma delas. Se casa com ela e por muitos anos vivem
serenamente. Da relação nascem quatro filhos. Mas uma tarde a esposa se
entretém com uma de suas irmãs aganis no canal até tarde da noite. Assim,
quando retorna à casa o marido bate nela, fazendo com que a criatura mágica volte
para suas irmãs para sempre, desaparecendo e renunciando à sua vida terrestre.
A crença de que uma pessoa poderia nascer
do cruzamento real entre um ser humano e uma criatura mágica é profundamente
entranhada no pensamento mítico das gerações passadas da stregoneria.
Embora se possa conceber sob um olhar mais racional que esse cruzamento poderia
ser uma forma de vínculo iniciático, o fato é que em tais linhagens as aganis
são consideradas como ancestrais de sangue e espírito tais quais os Antigos, os
mortos poderosos daquela linhagem. Elas recebem oferendas recorrentes,
presentes como joias, pérolas ou pentes de osso, e diversos pactos podem ser
firmados com elas em rios, cachoeiras e poços naturais. Uma das coisas que se
contava em minha família nos tempos da infância de minha avó era que as aganis
eram vistas lavando roupas dos moradores da casa. Se em algum momento as roupas
estivessem ensanguentadas, era sinal de que uma morte se aproximava. Elas
também eram ouvidas cantando junto às mulheres falecidas da família, junto ao
curso das águas, em algumas noites específicas do ano. Esse último relato faz
uma interessante conexão com outro aspecto dos mitos italianos sobre as aganis:
o de que elas seriam jovens que morreram virgens, mulheres que morreram durante
o parto ou ainda as almas vagantes de meninas que morreram afogadas.
Muitas semelhanças na conexão entre as
bruxas e as aganis podem ser encontradas em relação à presença de Melusine nos
brasões heráldicos de famílias que se originaram no Sacro Império Romano
Germânico e em certos locais dos países nórdicos. Frequentes são os mitos que a
retratam em caracteres similares aos das aganis e de outras sereias típicas do
folclore europeu: como belas moças residentes nas águas e que podem estabelecer
pactos com os que vivem na terra, consubstanciando bênçãos e maldições. Curiosa
também é a presença das crianças trocadas nos mitos envolvendo Melusine: uma
criança humana é levada pelos espíritos das águas e substituída por uma criança
da raça demoníaca.
Também é muito similar o papel mágico das
agani e das rusalka, as sereias do folclore do leste europeu, muito
próximo ao Friuli, e provavelmente a ele conectado devido à existência da Slava
Friulana (o conjunto de regiões dentro do Friuli em que existe forte presença
eslava). Segundo essa perspectiva as sereias seriam espíritos que vivem no
fundo das águas durante os gélidos invernos, e na superfície durante o verão.
Seu poder assim seria mais acessível na metade mais quente do ano, e mais
distante na metade mais fria. Assim como as aganis, as rusalka são por
vezes retratadas como carnívoras e predadoras hostis do ser humano.
Curiosamente, a relação de proximidade que elas possuem com a bruxa Baba Yaga
nos mitos eslavos encontra alguns ecos na proximidade das aganis com as striga
– as bruxas primordiais, vistas como sombrias mulheres pássaro que voam durante
a noite e atacam crianças pequenas em seus berços. Em minha tradição se
considera que as striga são as avós ou ancestrais das próprias aganis,
enquanto espíritos primordiais que estão vinculados ao mar sagrado. Daí vem uma
de suas conexões com a Madonna, para as bruxas a senhora das águas primordiais.
Nesse sentido, é interessante perceber que o rio Livenza deságua no mar em uma
cidade litorânea chamada Caorle, onde é louvada uma espécie de “Nossa Senhora
do Mar”, cujo nome oficial é Madonna dell’Angelo, mas que é
frequentemente tratada como Madona del Mar ou Madonnina del Mare.
Sua igreja fica construída basicamente na beira da água do mar. Uma das cantigas que foram compostas para a Madonnina del Mare nas
últimas décadas parece quase ecoar elementos simbólicos da deusa Reitia –
cultuada na área veneziana pré-cristã – que era representada navegando no céu
em um barco que era a própria lua crescente.
Al primo sole si desta
la città della marina
e in un bel giorno, risuona
la dolce campana vicina
mentre sul mare d’argento
va il pescatore contento
passa e s’inchina
alla sua Madonnina
dicendole piano così:
“Madonnina del mare,
non ti devi scordare di me,
vado lontano a vogare,
ma il mio dolce pensiero è per te”
Canta, il pescatore che va,
“Madonnina del mare
con te questo cuore
sicuro sarà!”
L’ultimo raggio di sole
muore sull’onda marina
e in un tramonto di sogni,
lontano la barca cammina
fra mille stelle d’argento
va il pescatore contento*
sente nel cuore un sussulto
d’amore sospira pregando così:
“Madonnina del mare,
non ti devi scordare di me,
vado lontano a vogare,
ma il mio dolce pensiero è per te”
Canta, il pescatore che va,
“Madonnina del mare
con te questo cuore sicuro sarà
*e em um pôr-do-sol de sonhos,
longe a barca caminha
entre mil estrelas de prata
vai o pescador contente
Santuario della Madonna dell'Angelo na cidade de Caorle.
Uma das lendas sobre o local diz que durante uma inundação
marinha que desolou a costa, nenhuma gota de água chegou a
entrar dentro da igreja.
Imagem da Madonna Dell'Angelo cultuada na igreja em Caorle.
Das pessoas que carregam o sangue das
aganis em sua ancestralidade pode-se esperar algum tipo de carisma, seja físico
ou seja verbal, uma facilidade em magias de amor e de fascinação, em alguns
casos o canto mágico e uma facilidade muito grande com as palavras. O dom das
sereias é um dom lunar e venusiano, por assim dizer. Sua magia é ótima para
ocultação, ilusão e convencimento, e elas são ótimas fiandeiras – associadas à
magia com costura, novelos de lã e linhas de todo tipo. Ao contrário do que as
pessoas normalmente pensam, suas oferendas prediletas são vísceras de
determinados animais – que podem variar de acordo com a ocasião –, aguardente,
flores e outros elementos próprios de cada tradição. Seu humor, tal como apresentam
os mitos, é voluntarioso. Os espíritos da água podem ser muito suaves ou muito
violentos, e capazes de mudar de um estado para o outro com agilidade e sem prévio
aviso. A elas estão ligados os dons da neblina, entre os quais a saída de uma
parte da consciência da bruxa sob forma de névoa para fora do corpo. Também nos
mitos da tradição se conta que São Francisco e Santa Clara eram versados neste
tipo de prática de voo espiritual.
Quando da imigração para o Brasil, as
famílias que possuíam a ligação ancestral com as aganis se depararam frequentemente
com um território rico em recursos hídricos, no qual um folclore próprio sobre
os espíritos da água já existia. É assim que as aganis ganharam também o nome
de “lavadeiras” em minha família, sendo associadas aos caboclos e à Mãe D’Água
pelos meus parentes que se iniciaram na umbanda. Os caracteres próprios do
folclore vêneto-friulano, contudo, sobreviveram vividamente até os dias de hoje,
ligando-nos pelo sangue e memória aos espíritos do Livenza, do Mar Adriático e
de outras águas que lá existem.
Hylas e as Ninfas - Waterhouse (1896)
Entre ogros, fadas, duendes, pássaros
encantados e dragões, as aganis constituem um dos principais seres demoníacos que
costumam estar por trás das raízes ancestrais das linhagens bruxas no Triveneto
(a macro-região formada por Veneto, Friuli Venezia-Giulia e Trentino Alto-Agide).
Tal como as janas da Sardegna e a janara da Campania, sua ligação
com as bruxas humanas é tamanha que elas chegam por vezes a serem vistas como o
mesmo ser. Para aqueles que buscam compreender como surgiram e como se mantém algumas
das linhagens bruxas daquela parte do mundo, a compreensão sobre estes
espíritos (e os muitos outros que transmitiram sua magia aos seres humanos de
alguma forma) é uma etapa importante, tanto sob o aspecto folclórico, quanto
sob o aspecto esotérico a respeito de tais tradições.
“Bada la agana, bada il demònio
È la nemica del matrimonio
Bada che bela ma non è jente
Bada che morse come un serpente”
A Mermaid - Waterhouse (1900) |
Referências
Stregoneria Malocchio
Jettatura nelle Tradizioni Friulane – Lea D’Orlandi
Streghe, eretici e
benandanti del Friuli Venezia Giulia – Monia Montechiarini
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