domingo, 1 de setembro de 2024

SUB SPECIE INTERIORITATIS (Do ponto de vista interior)

 Por Pietro Negri (Arturo Reghini)
Traduzido por Draco Stellamare

Coelum . . . nihil aliud est quam spiritualis interioritas. (Céu... Não é mais do que a interioridade espiritual.) - Guibertus, De Pignoribus Sanctorum, IV, 8

Aquila volans per aerem et Bufo gradiens per terram est Magisterium. (A águia voando no céu, e o sapo rastejando na terra é o Magistério) - M. Maier, Symbola Aureae Mensae duodecim Nationum, Frankfurt, 1617, p. 192



Muitos anos se passaram desde que eu tive minha primeira experiência de imaterialidade. Mas apesar do passar do tempo, a impressão que eu mantive dela foi tão vívida e poderosa que ela ainda permanece em minha memória, tanto quanto é possível transfundir e reter certas experiências transcendentes. Eu vou tentar agora transmitir essa impressão humanis verbis (em termos humanos), evocando-a novamente dos recantos mais internos de minha consciência.

A sensação de realidade imaterial apareceu de repente em minha consciência, sem aviso prévio, causa aparente, ou razão determinante. Um dia cerca de quatorze anos atrás eu estava em uma calçada do Palazzo Strozzi em Firenze, falando com um amigo. Eu não me lembro do que estávamos falando, embora fosse provavelmente algum tópico esotérico: em todo caso, o tópico da conversa não tinha ligação com a experiência que eu tive. Era um dia como muitos outros, e eu estava em perfeita saúde física e espiritual. Eu não estava cansado, excitado, ou intoxicado, mas sim livre de preocupações e pensamentos irritantes. De repente, assim como eu estava falando ou ouvindo, eu senti o mundo, todas as coisas, e a vida em si mesma de um jeito diferente. Eu subitamente me tornei consciente de minha incorporeidade e da radical, evidente imaterialidade do universo. Eu percebi que meu corpo estava em mim, e que todas as coisas estavam em meu interior; que tudo levava a mim, ou seja, para o profundo, abismal, e obscuro centro do meu próprio ser. Foi uma súbita transfiguração; o senso de realidade imaterial se mexendo em meu campo de percepção, e se conectando com o senso comum da “densa” realidade de todos os dias, me permitiu ver tudo em uma nova e diferente luz. Isso foi como quando uma súbita abertura em uma densa camada de nuvens deixa um raio do sol atravessá-la, e o chão ou o mar abaixo é subitamente transfigurado com uma luz de brilho efêmero.

Eu percebi a mim mesmo como um ponto abstrato sem dimensões e inefável; eu senti que dentro deste ponto o todo estava contido, em uma maneira inteiramente não espacial. Foi uma total reversão da sensação ordinária de humanidade. Não apenas o “Eu” não tinha mais a impressão de ser contido, ou localizado no corpo; não apenas ele adquiriu a percepção de incorporeidade de seu próprio corpo, mas também sentiu o corpo dentro de si mesmo, sentindo tudo sub specie interioritatis (do ponto de vista interior). É necessário entender os termos que estou usando aqui: “dentro”, “interior”, são tidos em um sentido não geométrico, mas sim simplesmente como os melhores termos para transmitir a sensação de reversão da posição ou do relacionamento existente entre o corpo e a consciência. Mas novamente, falar da consciência contida no corpo é tão absurdo e impróprio quanto falar do corpo contido na consciência, considerando a heterogeneidade dos dois termos.

Foi uma impressão poderosa, arrebatadora, positiva e original. Ela emergiu espontaneamente, sem transição ou aviso, como um ladrão na noite, se esgueirando e penetrando no lugar comum com o qual percebemos a realidade. Ela surgiu muito rápido, afirmando a si mesma e permanecendo em forma clara diante de mim, me permitindo vivê-la intensamente e ter certeza sobre ela; então quando desapareceu, deixou-me estupefato. “O que eu ouvi foi uma nota do eterno poema”, escreveu Dante; e ao evocá-lo novamente, eu ainda sinto a sua sagrada solenidade, seu calmo e silencioso poder, e sua pureza estelar flutuando no mais íntimo de minha percepção.

***

Essa foi a minha primeira experiência de imaterialidade.

Eu tentei descrever minha impressão da forma mais precisa possível, mesmo ao custo de ser criticado por não obedecer às normas de uma terminologia filosófica precisa. Eu vou prontamente admitir que minha competência filosófica não era, e ainda não é, equivalente a essas experiências espirituais, e também que, do ponto de vista dos estudos filosóficos, provavelmente seria melhor se somente aqueles que tem grandes méritos filosóficos pudessem ouvir sobre tais experiências. Todavia, deve ser compreendido que o ponto de vista dos estudos filosóficos não é o único admissível, e que “o espírito sopra onde quer” (João 3:7) sem considerar a competência filosófica de ninguém.

No caso específico de minha experiência, a mudança ocorreu independentemente de qualquer especulação científica ou filosófica de minha atividade cerebral. Eu estou mais inclinado a pensar que essa independência não foi fortuita nem excepcional. Em verdade, parece que a especulação racional pode não levar mais longe do que uma mera abstração conceitual de caráter negativo, e assim é incapaz de sugerir ou provocar a experiência direta ou a percepção de imaterialidade.

O modo usual de viver é baseado no senso de realidade material, ou, se preferir, no senso material de realidade. O que existe é o que resiste, o compacto, massivo, e impenetrável; as coisas são tanto quanto elas existem e ocupam espaço, fora e mesmo dentro de nossos corpos; é como se quanto mais impenetráveis e impregnáveis elas são, mais se tornam reais. O conceito empírico e ordinário de matéria, como uma res (coisa) em si mesma ocupando espaço, tangível e oferecendo resistência, é uma função da vida corpórea. As necessidades de uma vida vivida em um corpo sólido, denso, pesado, acostumado a estar sobre um solo sólido e estável, geram o hábito de identificar o senso de realidade com esse modo particularmente humano de perceber a realidade, e geram a convicção a priori de que esse é o único modo possível, e que nem existem e nem podem existir outros.

Entretanto, estes típicos traços da realidade material se tornam progressivamente tênues e eventualmente desaparecem quando uma mudança ocorre da matéria sólida para líquida, flúida ou gasosa. Assim a análise científica leva, através de sucessivos estágios de desintegração molecular e atômica, a uma visão da matéria que é bem distante do conceito primitivo, empírico, que primeiro pareceu ser o mais certo e imediato datum de experiência. Indo da ciência para a filosofia, a universal desmaterialização dos corpos físicos necessariamente corresponde à abstração conceitual idealista e à resolução do todo no “Eu”. Entretanto, a compreensão conceitual de uma espiritualidade universal não leva à conquista ou à efetiva aquisição da percepção da realidade espiritual. É possível seguir uma filosofia idealista enquanto se permanece tão cego espiritualmente quanto grosseiramente materialista. É possível reivindicar ser um filósofo idealista e acreditar que atingiu o pico do idealismo somente através de uma laboriosa conquista conceitual, enquanto se exclui ou não se pensa de todo sobre a possibilidade de uma percepção ex imo (de baixo). Novamente, é possível confundir toda epifania espiritual com um mero ato de pensamento – e também acreditar que é necessário fazê-lo.

Naturalmente, com tais noções na mente de um indivíduo, ele pode estar escalando as árvores do idealismo absoluto sem nenhuma outra consequência além de estar quebrando alguns galhos nas cabeças de seus colegas escaladores. Nós não devemos realmente olhar com tanto desdém para os filósofos positivistas do passado, já que eles foram as pobres porém honestas vítimas de uma aceitação simplista dos critérios da realidade material! Privar esse senso materialista e empírico da realidade de seu caráter de singularidade, positividade e insubstitutibilidade não lhe rouba todo o valor, mas sim define o seu valor. Ele continua a ser um direito de cidadania do universo, ao lado e em conjunto de outras formas de vivenciar a realidade.

Ter atingido uma abstração conceitual idealista não é motivo para cantar hinos de vitória tão precipitadamente. Nem a existência e a descoberta da realidade imaterial requer de nós que viremos a mesa, concedendo ao novo senso de realidade os privilégios do antigo, exaltando aquele às expensas deste. A verdade de um deles não implica na falsidade do outro: a existência de um não exclui a coexistência com o outro. É ilusório e arbitrário acreditar que existe e deve existir apenas um jeito de experienciar a realidade; se em última análise o critério empírico da realidade material for fatalmente reduzido a uma mera ilusão, essa modalidade de consciência baseada em uma ilusão mesmo assim realmente existe; tanto que este sentido é a fundação das vidas de inúmeros seres, mesmo quando este critério é superado conceitualmente ou espiritualmente, engolido pelo novo senso de imaterialidade.

Minha experiência, não importa o quão fugaz, me deu a demonstração prática da coexistência possível, efetiva e simultânea das duas percepções de realidade, ou seja, da pura percepção espiritual e da percepção ordinária e corpórea, por mais contraditória que ela pareça aos olhos da razão. É uma experiência elementar que certamente não é motivo para orgulho, contudo, é uma experiência fundamental similar àquela que Arjuna teve no Bhagavad Gita e àquela que Tat teve em Poimandres; é uma primeira, efetiva e direta percepção do que os cabalistas chamam de palácio sagrado interior; do que Philatethes chamou de “o palácio escondido do Rei”; e daquilo que Santa Teresa D’Avila chamou de “o castelo interior”. Por mais elementar que seja, é uma experiência que inicia uma pessoa em uma nova e dupla vida; o dragão hermético abre as asas e se torna um ser aéreo, apto a viver na terra ou voar para longe dela.

Por que é, então, que nós somos costumeiramente surdos para essa percepção e por que eu mesmo não estava ciente dela antes? Por que ela desapareceu? A qual propósito ela serve? Não seria melhor nem ao menos suspeitar da existência de tão perturbadores mistérios? E por que ninguém é ensinado como obter essa sensação? É justo que apenas alguns possam partilhar dela, e outros não?

Não é fácil dar respostas conclusivas para essas e outras questões relevantes. Sobre a surdez espiritual, me parece que ela vem do fato de que normalmente a atenção de nossas consciências está tão focada no sentido material da realidade que todas as outras sensações passam despercebidas. Então é uma questão de escutar: normalmente o som melodioso dos violinos tocando comandam toda a atenção do ouvinte, enquanto o som dos cellos e baixos passa despercebido. Talvez seja também a monotonia de suas notas graves e profundas que as esconde da percepção ordinária. Eu me lembro claramente da sensação surpreendente que eu experimentei um dia nas montanhas, quando, estando no meio de um vasto campo de flores, de repente o zumbido abafado e monótono produzido por incontáveis insetos atingiu meus ouvidos. Por acaso, de uma vez e sem aparente razão, eu me tornei consciente do zumbido que certamente existia ali antes de minha súbita percepção.

A resposta, como podem ver, pode ser encontrada apenas em comparação com fenômenos similares, e ela provavelmente não irá satisfazer o leitor. Assim, eu receio que não serei capaz de dar mais respostas satisfatórias para outras questões. Por isso eu devo terminar este ensaio, em obediência aos limites do tempo senão aos da discrição.




Sobre o autor:

Arturo Reghini foi um esoterista, mago e matemático italiano que publicou textos, sob o pseudônimo de “Pietro Negri”, junto aos trabalhos do Gruppo di Ur, sob a direção de Julius Evola, durante o período fascista. Foi iniciado por Amedeo Rocco Armentano na tradição pitagórica, sendo também membro da maçonaria italiana e diversas outras sociedades secretas, e o editor de revistas de esoterismo como Ignis e Atanòr. Traduziu obras literárias importantes, dentro e fora do esoterismo, dentre as quais se destacam os livros de Filosofia Oculta de Cornelius Agrippa. Alguns estudiosos creditam a ele, assim como a Julius Evola e outros do seu tempo, uma responsabilidade pelo surgimento da “metafísica do fascismo” – sobretudo levando em consideração a teoria das raças espirituais, tomada por partidários da extrema-direita como um fundamento para eugenia e supremacia racial. A perseguição sofrida por Reghini em função de suas associações maçônicas e as críticas posteriores de Evola ao regime, contudo, devem ser levadas em consideração ao discutir o tema. Reghini também foi – junto a outros esoteristas e tradicionalistas italianos do seu tempo – um dos precursores da retomada do politeísmo romano enquanto culto devocional e enquanto caminho iniciático.

O texto que traduzi acima foi publicado tardiamente na obra de Evola intitulada Introduzione alla magia quale scienza dell’Io (Introdução à magia enquanto ciência do Eu).

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