Por
Pietro Negri (Arturo Reghini)
Traduzido por Draco Stellamare
Coelum . . . nihil aliud est quam spiritualis interioritas. (Céu...
Não é mais do que a interioridade espiritual.) - Guibertus, De Pignoribus
Sanctorum, IV, 8
Aquila volans per aerem et Bufo gradiens per terram est
Magisterium. (A águia voando no céu, e o sapo rastejando na
terra é o Magistério) - M. Maier, Symbola Aureae Mensae duodecim Nationum,
Frankfurt, 1617, p. 192
Muitos anos se passaram desde que eu tive minha primeira experiência de imaterialidade. Mas apesar do passar do tempo, a impressão que eu mantive dela foi tão vívida e poderosa que ela ainda permanece em minha memória, tanto quanto é possível transfundir e reter certas experiências transcendentes. Eu vou tentar agora transmitir essa impressão humanis verbis (em termos humanos), evocando-a novamente dos recantos mais internos de minha consciência.
A sensação de realidade
imaterial apareceu de repente em minha consciência, sem aviso prévio, causa
aparente, ou razão determinante. Um dia cerca de quatorze anos atrás eu estava
em uma calçada do Palazzo Strozzi em Firenze, falando com um amigo. Eu não me
lembro do que estávamos falando, embora fosse provavelmente algum tópico
esotérico: em todo caso, o tópico da conversa não tinha ligação com a
experiência que eu tive. Era um dia como muitos outros, e eu estava em perfeita
saúde física e espiritual. Eu não estava cansado, excitado, ou intoxicado, mas
sim livre de preocupações e pensamentos irritantes. De repente, assim como eu
estava falando ou ouvindo, eu senti o mundo, todas as coisas, e a vida
em si mesma de um jeito diferente. Eu subitamente me tornei consciente de
minha incorporeidade e da radical, evidente imaterialidade do universo. Eu percebi
que meu corpo estava em mim, e que todas as coisas estavam em meu
interior; que tudo levava a mim, ou seja, para o profundo, abismal, e obscuro
centro do meu próprio ser. Foi uma súbita transfiguração; o senso de realidade
imaterial se mexendo em meu campo de percepção, e se conectando com o senso
comum da “densa” realidade de todos os dias, me permitiu ver tudo em uma nova e
diferente luz. Isso foi como quando uma súbita abertura em uma densa camada de
nuvens deixa um raio do sol atravessá-la, e o chão ou o mar abaixo é
subitamente transfigurado com uma luz de brilho efêmero.
Eu percebi a mim mesmo como um
ponto abstrato sem dimensões e inefável; eu senti que dentro deste ponto o todo
estava contido, em uma maneira inteiramente não espacial. Foi uma total reversão
da sensação ordinária de humanidade. Não apenas o “Eu” não tinha mais a
impressão de ser contido, ou localizado no corpo; não apenas ele adquiriu a percepção
de incorporeidade de seu próprio corpo, mas também sentiu o corpo dentro de si
mesmo, sentindo tudo sub specie interioritatis (do ponto de vista
interior). É necessário entender os termos que estou usando aqui: “dentro”, “interior”,
são tidos em um sentido não geométrico, mas sim simplesmente como os melhores
termos para transmitir a sensação de reversão da posição ou do relacionamento
existente entre o corpo e a consciência. Mas novamente, falar da consciência contida
no corpo é tão absurdo e impróprio quanto falar do corpo contido na
consciência, considerando a heterogeneidade dos dois termos.
Foi uma impressão poderosa,
arrebatadora, positiva e original. Ela emergiu espontaneamente, sem transição
ou aviso, como um ladrão na noite, se esgueirando e penetrando no lugar
comum com o qual percebemos a realidade. Ela surgiu muito rápido, afirmando a
si mesma e permanecendo em forma clara diante de mim, me permitindo vivê-la
intensamente e ter certeza sobre ela; então quando desapareceu, deixou-me
estupefato. “O que eu ouvi foi uma nota do eterno poema”, escreveu Dante; e ao evocá-lo
novamente, eu ainda sinto a sua sagrada solenidade, seu calmo e silencioso
poder, e sua pureza estelar flutuando no mais íntimo de minha percepção.
***
Essa foi a minha primeira
experiência de imaterialidade.
Eu tentei descrever minha impressão
da forma mais precisa possível, mesmo ao custo de ser criticado por não obedecer
às normas de uma terminologia filosófica precisa. Eu vou prontamente admitir
que minha competência filosófica não era, e ainda não é, equivalente a essas experiências
espirituais, e também que, do ponto de vista dos estudos filosóficos, provavelmente
seria melhor se somente aqueles que tem grandes méritos filosóficos pudessem
ouvir sobre tais experiências. Todavia, deve ser compreendido que o ponto de
vista dos estudos filosóficos não é o único admissível, e que “o espírito sopra
onde quer” (João 3:7) sem considerar a competência filosófica de ninguém.
No caso específico de minha
experiência, a mudança ocorreu independentemente de qualquer especulação
científica ou filosófica de minha atividade cerebral. Eu estou mais inclinado a
pensar que essa independência não foi fortuita nem excepcional. Em verdade,
parece que a especulação racional pode não levar mais longe do que uma mera
abstração conceitual de caráter negativo, e assim é incapaz de sugerir ou
provocar a experiência direta ou a percepção de imaterialidade.
O modo usual de viver é baseado
no senso de realidade material, ou, se preferir, no senso material de
realidade. O que existe é o que resiste, o compacto, massivo, e impenetrável;
as coisas são tanto quanto elas existem e ocupam espaço, fora e mesmo
dentro de nossos corpos; é como se quanto mais impenetráveis e impregnáveis elas
são, mais se tornam reais. O conceito empírico e ordinário de matéria, como uma
res (coisa) em si mesma ocupando espaço, tangível e oferecendo
resistência, é uma função da vida corpórea. As necessidades de uma vida vivida
em um corpo sólido, denso, pesado, acostumado a estar sobre um solo sólido e
estável, geram o hábito de identificar o senso de realidade com esse modo
particularmente humano de perceber a realidade, e geram a convicção a priori
de que esse é o único modo possível, e que nem existem e nem podem existir
outros.
Entretanto, estes típicos
traços da realidade material se tornam progressivamente tênues e eventualmente
desaparecem quando uma mudança ocorre da matéria sólida para líquida, flúida ou
gasosa. Assim a análise científica leva, através de sucessivos estágios de
desintegração molecular e atômica, a uma visão da matéria que é bem distante do
conceito primitivo, empírico, que primeiro pareceu ser o mais certo e imediato datum
de experiência. Indo da ciência para a filosofia, a universal desmaterialização
dos corpos físicos necessariamente corresponde à abstração conceitual idealista
e à resolução do todo no “Eu”. Entretanto, a compreensão conceitual de uma
espiritualidade universal não leva à conquista ou à efetiva aquisição da percepção
da realidade espiritual. É possível seguir uma filosofia idealista enquanto se permanece
tão cego espiritualmente quanto grosseiramente materialista. É possível
reivindicar ser um filósofo idealista e acreditar que atingiu o pico do
idealismo somente através de uma laboriosa conquista conceitual, enquanto se
exclui ou não se pensa de todo sobre a possibilidade de uma percepção ex imo
(de baixo). Novamente, é possível confundir toda epifania espiritual com um
mero ato de pensamento – e também acreditar que é necessário fazê-lo.
Naturalmente, com tais noções
na mente de um indivíduo, ele pode estar escalando as árvores do idealismo
absoluto sem nenhuma outra consequência além de estar quebrando alguns galhos
nas cabeças de seus colegas escaladores. Nós não devemos realmente olhar com
tanto desdém para os filósofos positivistas do passado, já que eles foram as
pobres porém honestas vítimas de uma aceitação simplista dos critérios da
realidade material! Privar esse senso materialista e empírico da realidade de
seu caráter de singularidade, positividade e insubstitutibilidade não lhe rouba
todo o valor, mas sim define o seu valor. Ele continua a ser um direito de
cidadania do universo, ao lado e em conjunto de outras formas de vivenciar a
realidade.
Ter atingido uma abstração
conceitual idealista não é motivo para cantar hinos de vitória tão
precipitadamente. Nem a existência e a descoberta da realidade imaterial requer
de nós que viremos a mesa, concedendo ao novo senso de realidade os privilégios
do antigo, exaltando aquele às expensas deste. A verdade de um deles não implica
na falsidade do outro: a existência de um não exclui a coexistência com o
outro. É ilusório e arbitrário acreditar que existe e deve existir apenas um
jeito de experienciar a realidade; se em última análise o critério empírico da
realidade material for fatalmente reduzido a uma mera ilusão, essa modalidade
de consciência baseada em uma ilusão mesmo assim realmente existe; tanto
que este sentido é a fundação das vidas de inúmeros seres, mesmo quando este
critério é superado conceitualmente ou espiritualmente, engolido pelo novo
senso de imaterialidade.
Minha experiência, não importa o
quão fugaz, me deu a demonstração prática da coexistência possível, efetiva e
simultânea das duas percepções de realidade, ou seja, da pura percepção
espiritual e da percepção ordinária e corpórea, por mais contraditória que ela
pareça aos olhos da razão. É uma experiência elementar que certamente não é
motivo para orgulho, contudo, é uma experiência fundamental similar àquela que
Arjuna teve no Bhagavad Gita e àquela que Tat teve em Poimandres; é uma
primeira, efetiva e direta percepção do que os cabalistas chamam de palácio
sagrado interior; do que Philatethes chamou de “o palácio escondido do
Rei”; e daquilo que Santa Teresa D’Avila chamou de “o castelo interior”.
Por mais elementar que seja, é uma experiência que inicia uma pessoa em uma
nova e dupla vida; o dragão hermético abre as asas e se torna um ser aéreo,
apto a viver na terra ou voar para longe dela.
Por que é, então, que nós somos
costumeiramente surdos para essa percepção e por que eu mesmo não estava ciente
dela antes? Por que ela desapareceu? A qual propósito ela serve? Não seria
melhor nem ao menos suspeitar da existência de tão perturbadores mistérios? E por
que ninguém é ensinado como obter essa sensação? É justo que apenas alguns possam
partilhar dela, e outros não?
Não é fácil dar respostas
conclusivas para essas e outras questões relevantes. Sobre a surdez espiritual,
me parece que ela vem do fato de que normalmente a atenção de nossas consciências
está tão focada no sentido material da realidade que todas as outras sensações passam
despercebidas. Então é uma questão de escutar: normalmente o som melodioso dos
violinos tocando comandam toda a atenção do ouvinte, enquanto o som dos cellos
e baixos passa despercebido. Talvez seja também a monotonia de suas notas
graves e profundas que as esconde da percepção ordinária. Eu me lembro
claramente da sensação surpreendente que eu experimentei um dia nas montanhas,
quando, estando no meio de um vasto campo de flores, de repente o zumbido
abafado e monótono produzido por incontáveis insetos atingiu meus ouvidos. Por
acaso, de uma vez e sem aparente razão, eu me tornei consciente do zumbido que
certamente existia ali antes de minha súbita percepção.
A resposta, como podem ver, pode ser encontrada apenas em comparação com fenômenos similares, e ela provavelmente não irá satisfazer o leitor. Assim, eu receio que não serei capaz de dar mais respostas satisfatórias para outras questões. Por isso eu devo terminar este ensaio, em obediência aos limites do tempo senão aos da discrição.
Arturo Reghini foi um
esoterista, mago e matemático italiano que publicou textos, sob o pseudônimo de
“Pietro Negri”, junto aos trabalhos do Gruppo di Ur, sob a direção de Julius
Evola, durante o período fascista. Foi iniciado por Amedeo Rocco Armentano na
tradição pitagórica, sendo também membro da maçonaria italiana e diversas
outras sociedades secretas, e o editor de revistas de esoterismo como Ignis
e Atanòr. Traduziu obras literárias importantes, dentro e fora do esoterismo,
dentre as quais se destacam os livros de Filosofia Oculta de Cornelius Agrippa.
Alguns estudiosos creditam a ele, assim como a Julius Evola e outros do seu
tempo, uma responsabilidade pelo surgimento da “metafísica do fascismo” –
sobretudo levando em consideração a teoria das raças espirituais, tomada por partidários
da extrema-direita como um fundamento para eugenia e supremacia racial. A
perseguição sofrida por Reghini em função de suas associações maçônicas e as
críticas posteriores de Evola ao regime, contudo, devem ser levadas em
consideração ao discutir o tema. Reghini também foi – junto a outros
esoteristas e tradicionalistas italianos do seu tempo – um dos precursores da
retomada do politeísmo romano enquanto culto devocional e enquanto caminho
iniciático.
O texto que traduzi acima foi
publicado tardiamente na obra de Evola intitulada Introduzione alla magia quale
scienza dell’Io (Introdução à magia enquanto ciência do Eu).
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