terça-feira, 10 de dezembro de 2024

A Bruxaria dos “Stellamare”

Por Draco Stellamare


A Tradição Stellamare tem suas raízes principais distribuídas entre a região do rio Livenza, que divide o Veneto e o Friuli, e a cidade de Udine, onde podem ser encontrados diversos processos inquisitoriais relativos à bruxaria histórica. Cidades onde nasceram e viveram alguns de nossos antepassados entre 1800 e 1900 incluem Annone Veneto, Motta di Livenza, Pordenone e Fontanafredda. Acreditamos que nossa linhagem retorna às sobrevivências oitocentistas da bruxaria praticada pelos Malandanti friulanos e da magia curativa e apotropaica executada pelos seus rivais Benandanti, ligando assim nosso passado (ainda que de forma indireta) com a “sociedade bruxa” operante na região entre os anos de 1500 e 1700. Dentre os membros importantes dessa rede local de praticantes de magia que tiveram seus nomes gravados na história inquisitorial, podem ser notados Aquino Turra, o bruxo sedutor pordenonês, o benandante Andrea Cattaros e muitas bruxas como Lucrezia Montereale Mantica, Maddalena Locatelli, Elisabetta Grimaldi e Aurora de Rubeis. Sobre alguns destes personagens escrevi dois extensos artigos para a edição de dezembro de 2024 da revista digital A Língua da Serpente.

Apesar da consciência sobre essas raízes e do fato de que mantemos a simbologia tradicional, as palavras de poder, os costumes e muitas outras coisas deixadas pelos que nos precederam, o todo do que praticamos hoje não é exatamente igual àquilo que se praticou em gerações passadas, dados os inúmeros percalços do destino e a própria adaptação natural que acontece com o tempo nas práticas de qualquer tradição. Particularmente, o processo pelo qual a Tradição Stellamare se reorganizou a partir de mim foi viabilizado pelos meus estudos da stregoneria e pela exploração do universo “sabático” contido nos mitos que recebi. O berço da tradição está no folclore familiar e na sabedoria espiritual transmitida por minha nonna Assunta, algo que ela herdou como pôde de nossa matriarca Marietta, mas o seu corpo e desenvolvimento atual é inseparável da minha jornada pessoal no caminho mágico. A história da linhagem, como se pode expor sem falar demais, está nesse outro texto que publiquei para sanar a curiosidade dos colegas que me acompanham pelas redes.



Isto posto, a tradição hoje se amplia e se fortalece através de um grupo operante, o Círculo Stella Maris. O processo de elaboração do Círculo, sua fundação mágica e a determinação do seu modus operandi foram diretamente instruídos pelos Antigos de nossa linhagem, apoiados por alguns dos meus familiares e supervisionados pelos meus mentores em outras vertentes da bruxaria. O processo de nascimento do nosso primeiro “grupo formal”, portanto, foi conduzido por muitas mãos.

Quanto ao alinhamento religioso, a Tradição Stellamare se enquadraria entre aquelas que praticam a veneração de duas-mãos, de um lado tendo um caráter “cristo-pagão” ou “cristão-herético” que é mais exposto e visível, e do outro lado um viés diabolista reservado às práticas mais fechadas, sem abandonar uma preocupação de alinhamento a preceitos tradicionais do esoterismo. No processo de busca por entendimento das influências esotéricas que nossa linhagem teve, busquei estudos de esoteristas tradicionais italianos e acabei me afeiçoando muito a alguns aspectos de suas obras, entre estes autores posso citar Arturo Reghini e Giuliano Kremmerz. Por isso podemos dizer hoje que o Círculo Stella Maris toma alguns dos ensinamentos sobre tradição dessa escola de esoterismo, mesmo que não sejamos inteiramente contemplados por ela. Afinal, a bruxaria sempre ocupou um local de marginalidade frequentemente evitado pelos esoteristas mais eruditos (muitos dos quais até mesmo consideram a bruxaria uma prática camponesa e vulgarizada). É por preservar a linhagem e uma preocupação com o sentido tradicional do esoterismo que consideramos nossas práticas como “bruxaria tradicional”.


Em sentido político e social, nossa tradição sobreviveu até aqui graças à resiliência de pessoas do campo – sobretudo mulheres – que atravessaram diversos mecanismos de exploração, razão pela qual por uma questão de coerência básica, nossa posição enquanto coletividade é marcadamente contrária à extrema-direita e qualquer outro tipo de ideologia política que promova a opressão, o preconceito e a precarização de direitos do ser humano. À parte essa cautela, nós não atrelamos obrigatoriamente a prática da bruxaria a qualquer posição política específica ou a qualquer movimento social, por entender que o foco da tradição, para que ela sobreviva adequadamente, deve permanecer sendo o trabalho tradicional, que pode andar em paralelo a uma militância, mas não deve se confundir com ela.

Atualmente, ainda somos mais focados em operações mágicas quotidianas e na comunhão com nossos espíritos, mas o estudo das formas antigas de magia é uma constante que se desenrola através da pesquisa sobre a bruxaria histórica e sobre grimórios ligados ao nosso contexto de origem. Nossos rituais vinculados à Assembleia das Bruxas podem ser mais cerimoniais ou mais intuitivos, a depender do contexto e da necessidade. Apesar de serem simples em essência, o entendimento de formas mais cerimonais de trabalho aplicáveis a tais rituais pode sempre ser encorajado e desenvolvido, dentro dos ditames da simbologia tradicional. Quanto aos mistérios trabalhados nessas ocasiões, nos diferenciamos bastante de outras tradições no que tange o entendimento sobre polaridades sexuais e suas implicações litúrgicas. Enquanto por razões pragmáticas algumas práticas pontuais podem ser diferentes para quem possui útero e para quem possui falo, o gênero per se é irrelevante e assim também o é a orientação sexual do praticante, a etnia, e demais características pessoais que não impeçam o indivíduo de fazer o que precisa ser feito.



A ética própria de nosso caminho preserva a amoralidade, o pragmatismo, e a procura por equilíbrio interior e exterior. Não nos chafurdamos em malefica, e nem nos banhamos desnecessariamente com sangue, mas todas as práticas tidas pelo senso comum como mais “densas” podem ser feitas se assim for necessário.

Sintetizando e esclarecendo, a bruxaria da Tradição Stellamare é a preservação de conhecimentos e correntes de poder advindos da região liventina do Friuli, existentes em linhagem iniciática mapeada até cerca de 1814 (ano de nascimento aproximado dos praticantes mais velhos de que se tem ciência). Estes conhecimentos e correntes foram amadurecidos no Brasil em convivência com práticas populares locais e reificados em formato clânico graças ao nosso trabalho recente. Nossos Antigos – os mortos poderosos da tradição, por assim dizer – detém o julgamento sobre quem pode ou não adentrar o círculo iniciático. Tomar os vislumbres de práticas da tradição expostos nas redes como combustível para alguma construção pessoal é uma experiência cujo risco de sucesso ou fracasso (acompanhado de prejuízo) pertence única e exclusivamente aos que ousarem tamanha empreitada.

Essa é a bruxaria dos “Stellamare”.

Tradicional por pertencer aos conceitos populares e esotéricos de tradição. Sincrética e carregada de elementos marginalizados na mesma medida em que valoriza a transcendência espiritual. Independente de conceitos anglo-saxônicos (já que é uma tradição ítalo-brasileira que passou longe das Ilhas Britânicas...) e voluntariamente desassociada dos modismos do cenário ocultista moderno.

E por fim, viva e operante para os que se dedicam a ela.




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