Por Draco Stellamare
A Tradição Stellamare tem suas raízes principais distribuídas entre a região do rio Livenza, que divide o Veneto e o Friuli, e a cidade de Udine, onde podem ser encontrados diversos processos inquisitoriais relativos à bruxaria histórica. Cidades onde nasceram e viveram alguns de nossos antepassados entre 1800 e 1900 incluem Annone Veneto, Motta di Livenza, Pordenone e Fontanafredda. Acreditamos que nossa linhagem retorna às sobrevivências oitocentistas da bruxaria praticada pelos Malandanti friulanos e da magia curativa e apotropaica executada pelos seus rivais Benandanti, ligando assim nosso passado (ainda que de forma indireta) com a “sociedade bruxa” operante na região entre os anos de 1500 e 1700. Dentre os membros importantes dessa rede local de praticantes de magia que tiveram seus nomes gravados na história inquisitorial, podem ser notados Aquino Turra, o bruxo sedutor pordenonês, o benandante Andrea Cattaros e muitas bruxas como Lucrezia Montereale Mantica, Maddalena Locatelli, Elisabetta Grimaldi e Aurora de Rubeis. Sobre alguns destes personagens escrevi dois extensos artigos para a edição de dezembro de 2024 da revista digital A Língua da Serpente.
Apesar da consciência sobre
essas raízes e do fato de que mantemos a simbologia tradicional, as palavras de
poder, os costumes e muitas outras coisas deixadas pelos que nos precederam, o
todo do que praticamos hoje não é exatamente igual àquilo que se praticou em
gerações passadas, dados os inúmeros percalços do destino e a própria adaptação
natural que acontece com o tempo nas práticas de qualquer tradição.
Particularmente, o processo pelo qual a Tradição Stellamare se reorganizou a
partir de mim foi viabilizado pelos meus estudos da stregoneria e pela
exploração do universo “sabático” contido nos mitos que recebi. O berço da
tradição está no folclore familiar e na sabedoria espiritual transmitida por
minha nonna Assunta, algo que ela herdou como pôde de nossa matriarca
Marietta, mas o seu corpo e desenvolvimento atual é inseparável da minha
jornada pessoal no caminho mágico. A história da linhagem, como se pode expor
sem falar demais, está nesse outro texto que publiquei para sanar a curiosidade
dos colegas que me acompanham pelas redes.
Isto posto, a tradição hoje se
amplia e se fortalece através de um grupo operante, o Círculo Stella Maris. O
processo de elaboração do Círculo, sua fundação mágica e a determinação do seu modus
operandi foram diretamente instruídos pelos Antigos de nossa linhagem, apoiados
por alguns dos meus familiares e supervisionados pelos meus mentores em outras
vertentes da bruxaria. O processo de nascimento do nosso primeiro “grupo
formal”, portanto, foi conduzido por muitas mãos.
Quanto ao alinhamento religioso,
a Tradição Stellamare se enquadraria entre aquelas que praticam a veneração
de duas-mãos, de um lado tendo um caráter “cristo-pagão” ou “cristão-herético”
que é mais exposto e visível, e do outro lado um viés diabolista reservado às
práticas mais fechadas, sem abandonar uma preocupação de alinhamento a
preceitos tradicionais do esoterismo. No processo de busca por entendimento das
influências esotéricas que nossa linhagem teve, busquei estudos de esoteristas
tradicionais italianos e acabei me afeiçoando muito a alguns aspectos de suas
obras, entre estes autores posso citar Arturo Reghini e Giuliano Kremmerz. Por
isso podemos dizer hoje que o Círculo Stella Maris toma alguns dos ensinamentos
sobre tradição dessa escola de esoterismo, mesmo que não sejamos inteiramente
contemplados por ela. Afinal, a bruxaria sempre ocupou um local de
marginalidade frequentemente evitado pelos esoteristas mais eruditos (muitos
dos quais até mesmo consideram a bruxaria uma prática camponesa e vulgarizada).
É por preservar a linhagem e uma preocupação com o sentido tradicional do
esoterismo que consideramos nossas práticas como “bruxaria tradicional”.
Em sentido político e social,
nossa tradição sobreviveu até aqui graças à resiliência de pessoas do campo –
sobretudo mulheres – que atravessaram diversos mecanismos de exploração, razão
pela qual por uma questão de coerência básica, nossa posição enquanto coletividade
é marcadamente contrária à extrema-direita e qualquer outro tipo de ideologia
política que promova a opressão, o preconceito e a precarização de direitos do
ser humano. À parte essa cautela, nós não atrelamos obrigatoriamente a prática
da bruxaria a qualquer posição política específica ou a qualquer movimento
social, por entender que o foco da tradição, para que ela sobreviva adequadamente,
deve permanecer sendo o trabalho tradicional, que pode andar em paralelo a uma
militância, mas não deve se confundir com ela.
Atualmente, ainda somos mais
focados em operações mágicas quotidianas e na comunhão com nossos espíritos,
mas o estudo das formas antigas de magia é uma constante que se desenrola
através da pesquisa sobre a bruxaria histórica e sobre grimórios ligados ao
nosso contexto de origem. Nossos rituais vinculados à Assembleia das Bruxas
podem ser mais cerimoniais ou mais intuitivos, a depender do contexto e da
necessidade. Apesar de serem simples em essência, o entendimento de formas mais
cerimonais de trabalho aplicáveis a tais rituais pode sempre ser encorajado e
desenvolvido, dentro dos ditames da simbologia tradicional. Quanto aos
mistérios trabalhados nessas ocasiões, nos diferenciamos bastante de outras
tradições no que tange o entendimento sobre polaridades sexuais e suas implicações
litúrgicas. Enquanto por razões pragmáticas algumas práticas pontuais podem ser
diferentes para quem possui útero e para quem possui falo, o gênero per se
é irrelevante e assim também o é a orientação sexual do praticante, a etnia, e
demais características pessoais que não impeçam o indivíduo de fazer o que
precisa ser feito.
A ética própria de nosso
caminho preserva a amoralidade, o pragmatismo, e a procura por equilíbrio
interior e exterior. Não nos chafurdamos em malefica, e nem nos banhamos
desnecessariamente com sangue, mas todas as práticas tidas pelo senso comum como
mais “densas” podem ser feitas se assim for necessário.
Sintetizando e esclarecendo, a bruxaria
da Tradição Stellamare é a preservação de conhecimentos e correntes de poder
advindos da região liventina do Friuli, existentes em linhagem iniciática
mapeada até cerca de 1814 (ano de nascimento aproximado dos praticantes mais velhos
de que se tem ciência). Estes conhecimentos e correntes foram amadurecidos no
Brasil em convivência com práticas populares locais e reificados em formato clânico
graças ao nosso trabalho recente. Nossos Antigos – os mortos poderosos da
tradição, por assim dizer – detém o julgamento sobre quem pode ou não adentrar
o círculo iniciático. Tomar os vislumbres de práticas da tradição expostos nas
redes como combustível para alguma construção pessoal é uma experiência cujo
risco de sucesso ou fracasso (acompanhado de prejuízo) pertence única e
exclusivamente aos que ousarem tamanha empreitada.
Essa é a bruxaria dos “Stellamare”.
Tradicional por pertencer aos conceitos
populares e esotéricos de tradição. Sincrética e carregada de elementos
marginalizados na mesma medida em que valoriza a transcendência espiritual. Independente
de conceitos anglo-saxônicos (já que é uma tradição ítalo-brasileira que passou
longe das Ilhas Britânicas...) e voluntariamente desassociada dos modismos do cenário
ocultista moderno.
E por fim, viva e operante para
os que se dedicam a ela.
Fiat Lux🔥 Velat Lux🔥
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