Por Draco Stellamare
Há uma infinidade de assuntos de ordem esotérica em bruxaria tradicional que acabam sendo mal compreendidos pela falta de proximidade das pessoas com o tema. Dois deles, que em realidade se desdobram de uma mesma questão, ficam frequentemente em voga quando surgem as discussões sobre a legitimidade de uma linhagem ou sobre a bruxaria dita “hereditária” – que para muitos mentecaptos não existe (em que pese reconhecerem que existem hereditariedades de diversos outros ofícios e práticas mágico-religiosas). Esses assuntos são a própria compreensão sobre o que vem a ser uma linhagem iniciática, e o que vem a ser uma hereditariedade mágica. Neste texto, pretendo abordar esse assunto de modo direto, explicando como esses conceitos são compreendidos no bojo das tradições que recebi e da mentalidade tradicional como um todo.
A primeira coisa que se deve
pensar é que possui linhagem iniciática quem é iniciado de fato em
alguma tradição. Não há que se falar assim em linhagem iniciática de uma pessoa
“autoiniciada”, até porque autoiniciação não existe – o que existe é iniciação
solitária/vertical, conforme falei neste texto.
Em termos de senso comum, uma iniciação poderia ser tida como a primeira vez
que você faz alguma coisa, ou como um simples aprendizado, ou ainda como uma
outorga social de pertencimento a algum coletivo. Essas ideias podem todas ser
descartadas quando analisamos o assunto sob um viés tradicional. Em termos
esotéricos, uma iniciação é o recebimento de um poder ou influência legado por um
predecessor do iniciado numa tradição específica, que concede os acessos
espirituais da tradição a esse iniciado, conduzindo ampliação de consciência e conhecimento
dos mistérios que estão velados aos não-iniciados, que alguns chamam “profanos”.
Logo, percebe-se que a tradição já consolidada está embasada na transmissão de
um poder e de uma simbologia de uma pessoa a outra, formando uma cadeia
sucessória. Essa cadeia, que vai desde o primeiro ser humano iniciado
verticalmente (o ponto-zero da tradição, por assim dizer) até o mais recente
iniciado, é o que se chama linhagem iniciática.
No texto sobre culto ancestral
eu abordo a ideia da Árvore de Sangue e Espírito como uma das formas possíveis
de concebermos o que é uma linhagem familiar ancestral. Nela enfatiza-se que da
perspectiva de um tempo não-linear todos os indivíduos da árvore genealógica
são partes de um mesmo organismo de sangue e alma, que se ramifica tal como uma
planta pelo tempo e pelo espaço. O sangue faz os membros de uma família serem
um só organismo, formado por consciências individuais interconectadas que
sucedem umas às outras na nossa perspectiva de tempo linear. É através desse
laço sucessório, desse haver-em-comum, que traços genéticos e influências
psíquicas e espirituais são transmitidas de pais para filhos repetidamente. Em
termos iniciáticos, ou seja, de uma linhagem puramente espiritual, o mesmo
acontece, de modo que se pode conceber a linhagem iniciática como uma Árvore
de Espírito, na qual o poder que habita em todos os iniciados existe
enquanto um organismo próprio, ramificado pelo tempo e pelo espaço, tal como o
sangue e as influências psíquicas e espirituais do laço familiar. Enquanto o
sangue remonta aos primórdios da própria vida na terra, o poder iniciático
remonta à fonte iniciadora do primeiro iniciado da linhagem. Tal poder
iniciático é carregado na alma e no corpo físico em um constante amálgama com
as estruturas espirituais e psíquicas da pessoa iniciada, em outras palavras: o
poder iniciático é amalgamado à Árvore de Sangue e Espírito. Essa é a razão
pela qual a linhagem iniciática comporta-se como uma linhagem familiar, e
também a razão pela qual existem “bruxas hereditárias”, dado que é o poder que
faz a bruxa ser uma bruxa, e não apenas a iniciação. Explicarei isso em maior
detalhe...
Quando uma iniciação acontece,
o laço iniciático que transmite o poder permeia o indivíduo em diversos níveis
do seu ser. Em determinados casos como o de muitas bruxarias nas quais não
existe um filtro para a passagem do poder pelo sangue, o poder que é acumulado
no corpo e na alma é transmitido naturalmente através da concepção de um filho,
que passa a carregar uma parcela do poder tal como carrega aspectos genéticos e
psíquicos herdados dos pais. Isso NÃO significa que todos os descendentes de
uma pessoa iniciada nascerão com o poder, pois existe a variação “genética” em
jogo, e NÃO significa também que aqueles que nascem com o poder da tradição
podem ser considerados iniciados. Como já dito em textos precedentes, existe
nascer bruxo, mas não existe nascer iniciado. O descendente de uma bruxa que
carrega a magia no sangue ainda precisará receber oficialmente a transmissão do
laço iniciático para que integre a árvore espiritual da linhagem da tradição.
Nestes casos, a iniciação é importante inclusive para dar “forma” ao poder que
organicamente reside na pessoa, e ensiná-la a fazer bom uso desse poder,
explorando os acessos espirituais pertinentes. Em determinadas famílias, a
iniciação opera-se de forma orgânica através de presentes dados aos mais
jovens, que são então escolhidos pelo poder ancestral para serem iniciados
verticalmente. Em outras famílias, a transmissão formal de pessoa-a-pessoa ainda
se mantém, sendo assim percebida uma distinção mais clara entre o laço familiar
e o laço tradicional. Isso se verifica da mesma forma na passagem do legame
(laço) que autoriza o benzimento ou a habilidade de controlar o malocchio,
transmitidos em linhagem familiar sempre à meia-noite da véspera de Natal ou de
São João Batista.
Isto posto, temos algumas
questões que ficam em aberto e uma delas é o comportamento dos laços
iniciáticos quando uma pessoa é iniciada em mais de uma tradição. Via de regra,
quando se trata da transmissão de uma linhagem espiritual, é impossível ao
iniciador reter o poder de todos os laços que ele recebeu de modo a transmitir
apenas o poder de um deles. Na transmissão iniciática – salvo algumas exceções
como as linhagens que se transmitem exclusivamente através da comunhão de
sangue – o iniciado recebe o poder de todas as linhagens carregadas pelo
iniciador. Isso não significa que a iniciação será automaticamente válida para
todas as tradições às quais o iniciador pertence, mas sim que o iniciado
carregará essas linhagens como linhagens “indiretas”, tendo consigo o poder
inerente a elas. Esse é o motivo pelo qual a transmissão iniciática feita por
uma pessoa com diversas iniciações costuma ser mais poderosa do que a de uma
pessoa iniciada em uma única tradição. Para que a iniciação seja válida para
formar o pertencimento pleno do iniciado a todas as linhagens do iniciador,
contudo, é necessário que todos os ritos de passagem dessas tradições sejam
executados, ou que se encontre uma maneira de transmitir de uma vez só todas as
outorgas iniciáticas pertinentes (o que é possível, mas nem sempre
recomendável).
Falando mais especificamente da
convivência de múltiplas linhagens iniciáticas na vida de um iniciado, é
elementar e fundamental que as linhagens recebidas tenham compatibilidade entre
si, pois não se trata somente de acúmulo de poder, mas também do trato com
diversas ancestralidades. A sobreposição incriteriosa de linhagens sem os
cuidados do relacionamento ético e respeitoso com as ancestralidades das quais elas
provêm pode ocasionar diversos prejuízos na vida de uma pessoa, pois cada
ancestralidade poderá exigir algo do iniciado, que terá de dar conta de atender
a diversas exigências e cobranças do mundo espiritual. Quando as linhagens são
compatíveis entre si, contudo, esse processo tende a ser muito mais fluído e
harmonioso, e frequentemente duas ou mais tradições de bruxaria se fundem por
esse mecanismo, tornando-se uma única tradição. Em tempos de gerações passadas,
o enlace de linhagens ocorria de maneira extremamente orgânica, não sendo
incomum que muitos de nós ao traçar suas árvores iniciáticas se deparem com
bifurcações no meio do caminho, onde duas ou mais tradições convergiram para
gerar a tradição que existe no presente. Esse é, contudo, um processo que não
pode ser coagido ou elaborado de modo artificial, ao bel prazer do praticante.
Lembre-se: uma linhagem iniciática é uma linhagem ancestral, e todos os
cuidados e pormenores do culto à ancestralidade familiar pendem sobre as
relações que tecemos com nossos ancestrais iniciáticos.
Todas essas compreensões são aptas a dialogar com um esoterismo bem fundamentado, e não são alheias à bruxaria tradicional. Compreender como funciona a transmissão iniciática, aliado ao conhecimento de como são as tradições mais antigas de bruxaria, pode finalmente levar ao encerramento o tipo de polêmica besta que as estrelinhas modernistas gostam de provocar na internet ao debochar de bruxarias familiares ou da própria existência da bruxaria tradicional como um todo. Afinal, a própria Wicca gardneriana advém de uma linhagem de bruxaria tradicional e regula-se por bases esotéricas bem similares às dos bruxos tradicionais mais eruditos. E indo um pouco além, a senhora italiana que transmite para a neta o poder de conjurar o malocchio na véspera de Natal também entende – ao seu modo provavelmente mais rudimentar – a relevância e as características da transmissão iniciática e da própria hereditariedade. O poder iniciático não costuma ser transmitido para os descendentes que já não possuam um poder inato!
Desse modo, esperamos
francamente que um maior entendimento sobre estas questões nos leve a elucidar
as pessoas ao nosso redor que são cognitivamente capazes de acompanhar este
nível de discussão. Quanto às outras, espero que a sua incapacidade de lidar
com os aspectos da realidade que lhe são desconfortáveis ou desconhecidos as
mande para bem longe de nós.
Nephilim - Emile Corsi, 1889. |
“A
Hereditariedade Espiritual do Anjo Brilhante, chamada por alguns de ‘sangue-bruxo’
e por outros de Filhos e Filhas da Luz, é a sensibilidade para a interação
livre com o Mundo dos Espíritos, chamada de Bruxaria. A fonte oculta do Jardim
do Prazer flui com o sangue das fadas e nutre seu Poder; quando se invoca os
Guardiões do Éden da Meia-Noite, os carrilhões desta Santa Hereditariedade ecoam
dentro da Bússola do Tempo, e a Luz é trazida à tona do Primeiro Momento de
Iluminação”. – Daniel Schulke, Magister da Cultus Sabbati, em
Viridarium Umbris.
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