quarta-feira, 22 de abril de 2020

Sobre a Bruxaria Italiana - Parte 1



Contextualização e análise sobre o passado, o presente, o real e o imaginário construído



 O que mais impera no debate público sobre bruxaria e em especial sobre bruxaria italiana é a desinformação. O desconhecimento, ou melhor, o conhecimento pela metade propicia que o absurdo seja dito e propagado por quem bem desejar e para os mais variados fins. Então esse texto e a indicação de bibliografia ao final dele são minha pequena e humilde contribuição na tentativa de diminuir a quantidade de desinformação circulando e seus consequentes aproveitadores.

 A minha vivência pessoal no caminho que eu sigo – que envolve também o contato e troca de informações com pessoas de caminhos semelhantes – é algo que poderá ser visto em alguns trechos, mas de modo geral procurei me ater ao que possui respaldo histórico ou antropológico.

 A primeira questão enfrentada ao falar de qualquer tipo de bruxaria será conceituar o que é bruxaria, e este seria um tópico muito extenso para incluir aqui. Por isso, simplifico estabelecendo para os efeitos dessa discussão que Bruxaria é um termo amplo que designa um fenómeno humano e social normalmente delineado nas descrições de diversos autores por: prática de magia e necromancia, conhecimento e utilização de poderes e recursos naturais para diversos fins, associação com simbologias obscuras ou noturnas e marginalidade social. Essa definição genérica proposta aqui atende ao que se convenciona como bruxaria de modo geral e também segundo os pontos de vista que devem ser levados em conta quando se fala de bruxaria de raiz italiana: os dos italianos e seus descendentes.

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Parte 1 – Stregoneria como Magia Vernacular

 O termo correlato a “bruxaria” na língua italiana padrão é stregoneria. O significado dado a essa palavra pelo maior e mais respeitado dicionário online da língua italiana, o Treccani, é o seguinte:

stregonerìa s. f. [der. di stregone]. – 1. L’arte di streghe e stregoni, come facoltà di operare, attraverso poteri soprannaturali o con l’intervento di forze demoniache, in danno di altri, e l’esercizio stesso di tale arte: la dura persecuzione della s. dal medioevo fino al Settecentoaccusare qualcuno di stregoneriaessere condannato al rogo per stregoneriacredere nella stregoneria. In antropologia sociale, influsso malefico che molti popoli ritengono derivi da caratteristiche fisiologiche di certe persone, con effetti indipendenti dalla loro volontà, del quale influsso tuttavia, quando esse ne fossero consapevoli, si servirebbero per disseminare paura e conseguire scopi malvagi di potere e profitto. 2. Con valore concr., operazione di streghe e stregoni, pratica magica ai danni di qualcuno; maleficio, fattura: fareoperare o mettere in opera una s.credono che il figlio si sia ammalato per una stregoneria. In senso fig., azione misteriosa, diavoleria e sim.: deve aver certamente inventato una s. per essere riuscito così facilmente nel suo intento; anche, cosa strana, bizzarra, imprevedibile: quale s. ti ha fatto cambiare così repentinamente opinione?

Traduzindo as partes principais:

 stregonerìa s. f. [der. di stregone]. – 1. A arte das bruxas e bruxos, como faculdade de operar, através de poderes sobrenaturais ou com a intervenção de forças demoníacas, em prejuízo de outrem, e o exercício dessa mesma arte. (...) 2. Com valor concreto, operação de bruxas e bruxos, prática mágica voltada ao dano de alguém; malefício, feitiço (...) Em sentido figurado, ação misteriosa, diabolismo (...).

 A definição dada pelo Treccani demonstra levemente como os termos strega e stregoneria tem uma conotação muito negativa na cultura italiana. Essa conotação negativa tem papel fundamental na confusão que é feita quanto aos contornos da bruxaria italiana sobretudo nos países que receberam imigrantes italianos, como o Brasil, a Argentina e os Estados Unidos.

 Culturalmente, a palavra stregoneria refere-se não apenas a práticas maléficas intentadas contra outras pessoas, mas também a qualquer atuação espiritual ou mágica que seja diabólica ou reprovável do ponto de vista da moralidade cristã e vinculada aos elementos que enumerei no início desse texto – magia, necromancia, domínio de recursos e poderes naturais, associação a símbolos noturnos e marginalidade social. A strega é socialmente vista como a figura da pessoa que detém capacidades mágicas que a permitem comunicar-se com espíritos e alterar a realidade (muitas vezes para o mal) e por estes fatores está à margem da sociedade, vivendo “nas sombras”.

 Observando o uso corrente do termo strega e stregoneria entre as gerações mais velhas de italianos e descendentes de italianos, não se percebe uma diferença tão grande entre esse uso e o uso que gerações também mais velhas de portugueses e brasileiros faziam das palavras “bruxa” e “bruxaria”. Raros são os curadores, rezadores, benzedeiras ou feiticeiros do povo que abertamente se denominam como bruxos e bruxas. De um modo geral, o termo só é utilizado quando se busca ofender uma dessas pessoas ou acusá-la de praticar o mal através de seus poderes.

 Na Itália, país mais católico do mundo, sobrevive uma grande variedade de práticas espirituais domésticas voltadas à cura, à feitiçaria, ao contato com os antepassados e com espíritos folclóricos, práticas essas frequentemente revestidas de forte simbologia católica, ainda que contendo, em maior ou menor número, elementos enraizados em formas mais antigas de espiritualidade. Estas práticas foram objeto de estudo de diversos antropólogos, entre os quais se pode citar Sabrina Magliocco, autora do artigo Witchcraft, Healing and Vernacular Magic in Italy cujo link de acesso se encontra nas referências deste texto, e Ernesto DeMartino, autor que desbravou academicamente as tradições do tarantismo da região do Salento na Puglia e das práticas de cura em diversos locais do sul da Itália, o chamado Mezzogiorno, ainda nos anos 60.


Figura 1 Altar com elementos de magia vernacular italiana voltados ao corte do mau-olhado. Fonte: Rue's Kitchen (link nas referências)


Figura 2. Os santos católicos são alguns dos principais espíritos evocados nas tradições de magia vernacular italiana, e o uso das suas imagens para devoção e para atos de magia é um elemento arraigado fortemente nessas tradições. Foto particular.

 As práticas mágicas domésticas, por vezes hereditárias e por vezes inspiradas pelo contato do indivíduo com entidades espirituais diversas, são mantidas em muitos contextos como um papel social necessário que se pode observar em maior ou menor grau até hoje, embora alguns estudiosos – o próprio DeMartino incluso – alertem que elas estão desaparecendo velozmente com o avanço da pós-modernidade e o crescente desinteresse das novas gerações em legar a diante tradições ancestrais e familiares.

 O papel social dos praticantes dessas artes curativas e feiticeiras é de, em certa medida, cuidar das suas famílias e comunidades de maneiras que a medicina e a Igreja Católica não são (ou ao menos não costumavam ser) capazes de cuidar. Nisto estão inclusos remédios para a cura de doenças, tratamento de parasitoses, exorcismos, e a resolução através da magia de toda a sorte de problemas cotidianos.


Figura 3. Cornicello e manu cornuta, amuletos tradicionais contra o mau-olhado em boa parte das tradições de magia vernacular italianas. Fonte desconhecida.

 Este conjunto de tradições, em geral familiares e domésticas, muito diferentes entre si mas interligadas por elementos comuns a grande maioria delas, nunca receberam um único nome que pudesse defini-las de maneira concreta e perante todo o território italiano. Em algumas regiões o termo para essas práticas – quando elas são voltadas para o bem – é guarigione, que significa algo como “ofício de proteção” ou “ofício de cura”.  Em outras regiões, termos como fa lu santucio (fazer a coisinha santa) e benedicere (abençoar) são utilizados, mas nenhum destes mencionados é mais do que uma nomenclatura regional.

 Deste modo, a forma mais assertiva de se referir de modo genérico a essas tradições é, nas palavras da antropóloga Sabrina Magliocco, “magia vernacular”, pois são tradições de magia intimamente ligadas ao vernáculo, à linguagem e à vivência doméstica de seus praticantes. Outra possibilidade é defini-las como “magia folclórica italiana”, como se tornou comum nos Estados Unidos com “Italian Folk Magic”. Este é inclusive o título de um livro muito recomendável, da autoria de uma escritora chamada Mary Grace Fahrun, que relata de maneira bem intimista e direta o aprendizado destas tradições familiares por descendentes dos imigrantes italianos nos Estados Unidos.

 Pois bem, mas qual a relação dessas tradições com a stregoneria?

 Vou partir do exemplo do termo guarigione, cujo significado inclui necessariamente proteger, cuidar e curar. Quando um praticante de magia vernacular a utiliza para o bem das pessoas de sua comunidade, ele costuma ser reconhecido como um guaritore (se traduz como curador ou guardião) ou qualquer outro termo correlato. Mas, quando o uso das práticas mágicas se volta ao malefício de outras pessoas, quer concretamente ou apenas na imaginação da comunidade, o praticante passa a ser visto como um stregone (ou uma strega, se uma mulher, lembrando também que existem denominações locais e dialetais equivalentes a strega e stregone que podem ser melhor explicadas em outro texto).

 É suficientemente verdadeiro dizer, portanto, que quando existe a presença do malefício numa tradição de magia vernacular ela será considerada socialmente stregoneria/bruxaria.

 Amarrações (ou ligature, como se diz), feitiços de vendetta (vingança), maldições, vampirismo – aqui entendido como subtrair para si a vitalidade de outra pessoa –, o famoso malocchio (mau-olhado) intencionalmente projetado contra uma vítima, dentre inúmeros outros elementos que fazem parte da magia vernacular, juntamente com seus respectivos antídotos, são elementos que caracterizam aos olhos da cultura italiana uma prática como stregoneria.


Figura 4. Uso do limão com alfinetes ou pregos para maldições é um elemento comum nas várias vertentes de stregoneria. Foto particular.


Figura 5. O uso de corações de aves ou outros animais para malefícios também é um elemento encontrado nas práticas de stregoneria. Foto particular.

 Existe assim uma possível diferenciação entre as práticas como a guarigione spirituale (que nos EUA receberam de alguns praticantes o nome de benediccaria), voltadas exclusivamente à cura e à proteção da comunidade, e práticas tidas como stregoneria, que englobam um amplo espectro moral e viabilizam aos praticantes tanto provocar o bem quanto o mal daqueles que o cercam.

 Ou seja, aqui temos um primeiro contorno da bruxaria italiana como tradições de magia vernacular, que lidam diretamente com elementos socialmente vinculados ao arquétipo da bruxa enquanto pessoa perigosa, de moral ambivalente, dotada de poderes mágicos e habilidades espirituais que tem o POTENCIAL de serem utilizados em malefício das pessoas comuns.

 Este primeiro contorno é válido e uma perfeita pedra inicial no caminho que estamos construindo neste texto, mas outras concepções também arraigadas na cultura italiana e diversas ressalvas quanto à diversidade regional e étnica devem ser mencionadas para que tenhamos uma visão mais abrangente sobre o assunto. E a primeira dessas outras concepções é uma visão de certa forma “xamânica” e extática da bruxaria, que abordarei na próxima parte deste texto.

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* Continua na parte 2 *



REFERÊNCIAS DA PARTE 1:

Witchcraft, healing and vernacular magic in Italy – Sabrina Magliocco. Disponível em inglês aqui.

Sud e Magia – Ernesto DeMartino.

Italian Folk Magic – Mary Grace Fahrun.

Site “Rue’s Kitchen”, da autora do livro Italian Folk Magic.

Site “Italian Folk Magic” escrito por Mallorie Vaudoise.

Página no facebook sobre Stregoneria Siciliana.

Documentário  em italiano sobre as bruxas da cidade de Triora na Ligúria.





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