quinta-feira, 23 de abril de 2020

Sobre a Bruxaria Italiana - Partes 4 e 5 (final)



Parte 4 – Stregoneria e as narrativas modernas que nela se inspiraram


 A concepção pública da bruxaria começou a tomar contornos um pouco distintos daqueles ideais populares que foram abordados na primeira parte desse texto em meados do Séc. XIX e primeiras décadas do Séc. XX, quando alguns acadêmicos voltaram seus olhos ao estudo do que pareciam ser indícios de um culto pagão sobrevivente por toda a Europa (hipótese desacreditada atualmente) e quando, paralelamente, as grandes ordens ocultistas da modernidade começavam a aparecer e se manifestar publicamente. Foi o início de uma longa era que nos trouxe a Golden Dawn – Ordem Hermética da Aurora Dourada, a Teosofia de Blavatski, a criação da Thelema e da Wicca Gardneriana, e o surgimento de figuras como Aleister Crowley, MacGregor Mathers, Gerald Gardner e outros tantos nomes do esoterismo moderno.

 Nesse contexto, um dos principais escritores ainda no Séc. XIX que iniciará um processo de ressignificação da bruxaria aos olhos do público é Charles Godfrey Leland, um folclorista norte-americano que publicou um livro com o título de Aradia: O Evangelho das Bruxas. Tratava-se de um compêndio de mitos, receitas e depoimentos supostamente colhidos de uma bruxa chamada Maddalena Talutti que, segundo Leland afirma, recolheu as informações de diversas outras bruxas atuantes na região da Toscana no centro-norte na Itália.


Figura 13. Capa da primeira edição do "Evangelho das Bruxas" de Charles G. Leland. Fonte: Wikipédia.

 O conteúdo do Vangelo (evangelho) de Leland é até hoje controverso, pois trouxe várias narrativas que sugerem uma sobrevivência ininterrupta de mitos e práticas pagãs na modernidade sem influencia alguma do catolicismo romano – religião profundamente entranhada em grande parte das práticas de magia do povo italiano. Além disso, não há outros indícios que corroborem a existência – naquela época – de um culto organizado às deidades pagãs na Toscana além daqueles que são trazidos pelo próprio Leland em outros escritos seus como Etruscan Roman Remains Legends of Florence, que também falam de lendas camponesas de cunho pagão na Toscana e na região da Emilia Romagna.

 Entretanto, embora não existam evidências de um culto organizado, muitos indícios isolados de sobrevivências de um imaginário pré-cristão são presentes na sociedade italiana até hoje, como trabalhos de Ginzburg e DeMartino sugerem. Deste modo, não se pode afirmar com certeza que cem por cento do trabalho de Leland é falso, mas também não se pode confirmar que cem por cento do material contido no Vangelo é verdadeiro ou inalterado do seu formato original.

 Muitos supõem, e não entrarei no mérito sobre eles estarem certos ou não, que Leland recebeu de fato manuscritos e contos transmitidos oralmente pelas bruxas da Toscana, porém, editou e alterou o formato e a estética daquilo que recebeu de modo a produzir uma narrativa que confirmasse seu viés interpretativo da bruxaria como uma sobrevivência imaculada do paganismo romano-etrusco. Outro ponto problemático que alguns identificam nos escritos de Leland, é que ele busca apresentar como um todo coeso de crenças e mitos uma série de fragmentos de tradições de magia vernacular e folclore diversas, que não necessariamente possuem coesão cosmológica, teológica ou mesmo pragmática entre si.

 Fato é que, certo ou errado, Leland estimulou em muitos níveis o desenvolvimento das narrativas da bruxaria moderna que nasceriam anos depois com Gerald Gardner e Alex Sanders na Inglaterra. Elementos de seu Vangelo, como a nudez ritual, o culto a uma deusa nas noites de lua cheia e a magia sexual foram pedras fundadoras da criação da Wicca e estímulos ao surgimento de outras tradições como as espiritualidades do sagrado feminino e outras vertentes do neopaganismo.

 A apresentação do Vangelo de Leland como um testemunho real da bruxaria italiana foi o que estimulou, finalmente, a criação de tradições modernas de bruxaria nos Estados Unidos que clamam para si raízes italianas. Os principais nomes deste movimento de reestabelecimento de uma suposta bruxaria italiana fundada nos mesmos preceitos publicados por Leland foram Raven Grimassi, consagrado autor do meio wiccano e esotérico norte-americano, e Lori Bruno, fundadora da Trinacrian Rose Church em Salem.

 A nomenclatura que Bruno e Grimassi trouxeram para nomear suas tradições foi “Stregheria”, um termo arcaico para “bruxaria” que de modo geral não é corrente na língua italiana padrão há séculos [*Sobre este termo vide observação ao fim dessa publicação]. A escolha deste termo demonstra um intuito de ressignificar o conceito da bruxa no imaginário ítalo-americano, uma vez que ambos os autores estabelecem uma diferenciação entre Stregheria e Stregoneria, definindo a primeira como o que eles defendem ser a “verdadeira” bruxaria italiana, e definindo a segunda como práticas diabólicas ou mera feitiçaria popular que não tem o aval de uma “verdadeira” linhagem bruxa.


Figura 14. Símbolo utilizado na Stregheria proposta por Grimassi. Fonte: Stregheria.com

 Os problemas dessa definição devem ser denunciados, pois é através dessas publicações visando a reivindicação de uma falsa legitimidade tradicional exclusiva da Stregheria que uma parte da confusão pós-moderna com relação à stregoneria italiana se origina.

 O primeiro problema é que a estrutura ritualística e cosmológica das tradições de Stregheria publicadas por estes autores é basicamente uma releitura da estrutura da Wicca Gardneriana com inclusões pontuais de elementos do paganismo romano-etrusco e de termos e alguns poucos conceitos provenientes da magia vernacular italiana. Isto não seria um problema se houvesse transparência quanto a essa adaptação dos conceitos wiccanos, mas se torna extremamente problemático quando os autores buscam apresentar o seu corpo de rituais como uma derivação direta das práticas tradicionais italianas e pior, desmerecendo as tradições de magia vernacular – essas sim passadas como um legado de muitas gerações – como formas de bruxaria que não seriam legítimas em comparação à Stregheria.

 Este discurso nubla a identificação das tradições de stregoneria como tradições genuínas de bruxaria de raiz italiana, além de desacreditar a Stregheria (que é uma religião tão válida e respeitável quanto outras religiões neopagãs) frente a olhares um pouco mais críticos e dotados de conhecimento histórico ou antropológico. Em resumo, é um desserviço a ambas as partes.

 Em segundo lugar, as tradições que hoje compõem a Stregheria utilizam-se largamente dos escritos de Charles Godfrey Leland para embasar os seus mitos, crenças e práticas, o que não é um problema a princípio, mas passa a ser quando estes escritos são instrumentalizados para deslegitimar tradições que possuem bases mais concretas e confiáveis, porém não relacionadas diretamente ao imaginário construído no Evangelho das Bruxas. Isto é, um livro cuja confiabilidade é incerta acaba sendo usado por alguns indivíduos para deslegitimar tradições que tem um embasamento muito mais concreto na realidade cotidiana de seus praticantes e em sua memória ancestral. Penso eu que aqui cabe o ditado brasileiro “quem tem telhado de vidro não brinca de jogar pedra”.

 Em terceiro lugar, esse discurso da legitimidade exclusiva da Stregheria de Raven Grimassi como bruxaria italiana confunde e afasta muitas pessoas que buscam estudar e aprender sobre o tema (em geral essas pessoas são os descendentes de italianos nos Estados Unidos, no Brasil e em alguns outros países). Enquanto alguns ignoram conhecimentos de magia vernacular que poderiam ser encontrados em suas famílias e comunidades para estudar os sistemas propostos por Grimassi, as tradições ancestrais de magia vernacular e stregoneria por vezes se perdem, pois estas novas gerações deixam de aprendê-las. A confusão atrapalha também na transmissão e continuidade da sabedoria e das práticas tradicionais, já em declínio na pós-modernidade.

 Preciso ressaltar (para evitar de ser mal interpretado) que meu intuito não é invalidar a Stregheria de Grimassi e de outros autores de maneira alguma. Considero que são tradições importantes ao seu modo e que devem ser respeitadas, tanto por serem um conjunto de crenças e práticas religiosas tão válidas quanto quaisquer outras, quanto por reconhecer que elas fazem parte da história do desenvolvimento da bruxaria da comunidade italiana fora da Itália e a partir do século XX. Meu intuito aqui é, sem fazer um juízo de valor da prática em si, esclarecer que a Stregheria é uma tradição moderna de bruxaria ítalo-americana, e que não deve ser vendida como a “única e verdadeira” bruxaria italiana pois isso cria problemas para as práticas verdadeiramente tradicionais, às quais, diga-se de passagem, a Stregheria deve parte de seus elementos formadores.

 Stregheria moderna reúne em si os elementos que convencionamos como definidores de uma prática como bruxaria e, além disso, engloba sim alguns elementos oriundos da magia vernacular italiana e da stregoneria (que provavelmente eram do conhecimento das famílias de Raven Grimassi e Lori Bruno), então não se deve invalidá-la enquanto forma de bruxaria com raízes italianas. Mas é preciso reconhecer que a Stregheria como é apresentada publicamente não é inteiramente tradicional e não reflete as práticas ancestrais que eram e ainda são praticadas tanto na Itália, quanto nos EUA e no Brasil. Ou seja, podemos dizer que atualmente a Stregheria é parte do amplo espectro de bruxaria de raízes italianas nos Estados Unidos (e com sua expansão bibliográfica, também no Brasil e em outros países) mas não é um conjunto de práticas ou crenças tradicionais. Ela é parte do espectro da bruxaria italiana no mundo como uma adição recente, criada nos EUA do Séc. XX, que busca resgatar uma relação devocional com certas deidades e a contemplação de certos mistérios pré-cristãos, semelhantes aos que são trabalhados na Wicca Gardneriana, e não mais do que isto pode ser dito por mim para fazer jus à realidade.

 Após essas colocações sobre a Stregheria norte-americana, podemos continuar algumas reflexões sobre o que pode ser considerado bruxaria italiana atualmente e como esse amplo espectro de práticas se subdivide em linhagens tradicionais, tradições modernas oriundas de outros locais e também tradições modernas que surgem na própria Itália.

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Parte 5 – Conclusões finais


 O grande mal que eu observo nos debates sobre bruxaria é um pensamento restritivo. Ou só o que é rigidamente tradicional e observa preceitos mistéricos é bruxaria, ou só o que é inspirado em Gardner é bruxaria, ou qualquer criação pós-moderna que se denomine bruxaria é bruxaria, e por aí vão os delírios... Então a minha abordagem final aqui será a mais aberta e lúcida possível, conservando, logicamente, o bom senso.

 As linhagens familiares (e mais raramente iniciáticas) de stregoneria italiana são o que se pode com alguma segurança histórica e antropológica definir como uma “Bruxaria Tradicional Italiana” na acepção de tradição como algo legado de uma geração à outra num contexto étnico e cultural específico.

 Essas linhagens são todas uma coisa só?

 Não. Já vimos que não.

 Há uma diversidade imensa de costumes, valores, práticas, saberes e folclore envolvidos nas incontáveis manifestações que cabem na definição de bruxaria tradicional italiana.

 Por outro lado, suponhamos que um corpo de crenças e práticas novo seja criado na Itália este ano e passe a ser vivenciado por italianos (algo que já vi acontecer). Isso também é bruxaria italiana, afinal, foi desenvolvida na Itália. Ela é tradicional? Não por hora, mas sem dúvida será quando várias gerações houverem transmitido esses conhecimentos dentro de seu contexto étnico e cultural.

 Da mesma forma, as tradições de bruxaria moderna inspiradas em parte ou totalmente nos costumes italianos que foram desenvolvidas nas Américas também fazem parte do que se considera como bruxaria de raízes italianas, embora elas não sejam geograficamente italianas de fato e nem, por hora, tradicionais. A Stregheria de Grimassi cabe neste conceito.

 Outra observação importante é que também foram possíveis sincretismos e uniões entre linhagens de stregoneria e elementos da espiritualidade ibérica, norte-americana, africana e indígena graças à imigração de italianos a países como Estados Unidos, Brasil e Argentina. Nunca encontrei material de estudo sobre estes “encontros de tradições”, mas – e aqui fica ressaltado que eu falo apenas do meu ponto  de vista pessoal – a assimilação de elementos norte e sul-americanos nas práticas de linhagens de stregoneria e magia vernacular italiana por parte dos descendentes de italianos nas américas é uma realidade observável.

 Isso vai desde a inclusão pelos praticantes ítalo-americanos do relacionamento com deuses, santos, guias, espíritos folclóricos, entidades, conceitos folclóricos e pragmáticos presentes nas culturas americanas em suas práticas – refletindo a adaptação da tradição mágica à terra onde o praticante se encontra – até mesmo ao aprendizado por parte destes praticantes de tradições mágicas dos países em que se encontram – poderia citar aqui o Catimbó, a benzedura, a Umbanda, o Hoodoo estadunidense, etc. – e uma consequente fusão ou intercâmbio de vivências entre as duas realidades.


Figura 15. Foto da procissão da comunidade italiana para San Gennaro em Nova Iorque, EUA. Fonte desconhecida.

 Até que ponto uma linhagem se mantém tradicional após estas interferências? Isso é um assunto também extenso e complexo, que prefiro abordar em outro momento. Mas, é seguro dizer resumidamente que mesmo recebendo influências de outras fontes, as linhagens que mantém seus conhecimentos étnicos originais e os transmitem à diante, conservam-se parte do amplo espectro de vertentes compreendidas como bruxaria tradicional italiana e, penso eu, poderão ser também denominadas como bruxarias ítalo-americanas, sejam elas modernas ou tradicionais. Isso, contudo, é um ponto para um outro debate.

 Assim chego ao fim deste texto que é uma tentativa de fornecer uma visão menos enviesada por aspirações particulares e confundida por devaneios midiáticos da bruxaria italiana e mais pautada em estudos e naquilo que pode ser argumentado com base na história e na ancestralidade.

 Espero que seja um texto útil ao fornecer referências e contextualizações gerais acerca do tema, e que ele possa ajudar sobretudo que as pessoas interessadas em conhecer essas práticas possam compreender onde buscar o conhecimento sobre cada uma delas, acima de tudo sem ignorar ou desvalorizar os saberes ancestrais possivelmente presentes em suas famílias e comunidades.

 Deixo abaixo as referências citadas no texto e alguns links úteis, com meu desejo sincero de que nossos caminhos ancestrais possam ser honrados e perpetuados da maneira que merecem.


Cidade de Santo André, Brasil, 23 de abril de 2020.




*P.S: Uma observação pessoal minha deve ser feita sobre o termo "stregheria". Tenho conhecimento de ao menos um grupo de pessoas no Brasil que se denominam praticantes de Stregheria, e cuja prática é oriunda da Itália, sem ligações com o material desenvolvido por Grimassi nos EUA. Esse fato indica a possibilidade de que outros praticantes de Bruxaria Tradicional Italiana tanto aqui no Brasil quanto em outros países utilizem o termo para denominar suas respectivas vertentes. Apesar dessa ressalva, o quadro geral (no qual me apoiei para escrever este texto) é que o termo stregoneria ainda é o mais utilizado na língua italiana para referir-se à bruxaria, enquanto stregheria é um termo arcaico que foi em sua maioria reivindicado pelas tradições modernas ítalo-americanas.



REFERÊNCIAS DE TODAS AS PARTES DO TEXTO:

Witchcraft, healing and vernacular magic in Italy – Sabrina Magliocco. Disponível em inglês aqui.

Sud e Magia – Ernesto DeMartino.

La Terra del Rimorso – Ernesto DeMartino.

O Queijo e os Vermes – Carlo Ginzburg.

Os Caminhantes do Bem – Carlo Ginzburg.

História Noturna: Decifrando o Sabá – Carlo Ginzburg.

Italian Folk Magic – Mary Grace Fahrun.

Site “Italian Folk Magic” escrito por Mallorie Vaudoise.

Portal da Stregheria proposta por Raven Grimassi.

Bruxaria Hereditária – Raven Grimassi (em inglês Hereditary Witchcraft).

The Book of the Holy Strega - Raven Grimassi.

Aradia: o Evangelho das Bruxas - Charles Godfrey Leland.

Legends of Florence - Charles Godfrey Leland.

Etruscan Roman Remains - Charles Godfrey Leland.

Documentário  em italiano sobre as bruxas da cidade de Triora na Ligúria.

Trecho de documentário corso sobre os Mazzeri, entitulado "I mazzeri ou Les faiseurs de mort".

Site “Rue’s Kitchen”, da autora do livro Italian Folk Magic.

Gay Madonnas in Montevergine - Matéria em inglês sobre a presença LGBT no culto à Madonna di Montevergine.

Reportagem em italiano com filmagem da dança tradicional (tammuriatta) no culto da Madonna di Montevergine no Avellino, mostrando a presença do elemento queer na devoção popular, caracterizado pela figura dos femminielli.


2 comentários:

  1. Textos perfeitos! Parabéns pela forma sucinta mas profunda de abordar o tema com seriedade. Feliz demais que você voltou a publicar, estarei lendo todos textos do blog.

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