Parte 3 – Stregoneria e suas nuances culturais
A Itália apenas adquiriu unidade nacional enquanto país após a Guerra da Unificação (Risorgimento) finalizada totalmente apenas em 1870.
Até então, a região era um aglomerado de diferentes povos com diferentes concepções de nacionalidade e que guardavam semelhanças uns com os outros, porém, possuíam diferenças muito expressivas tanto em termos de língua quanto em termos de cultura.
Figura 8. Mapa do território da Itália em 1843, ainda dividido em oito estados distintos. Fonte: Wikipédia.
Tanto isto é verdadeiro, que é possível observar que houve um grande esforço por parte do governo pós-unificação para reprimir o uso dos inúmeros dialetos locais falados pelas populações das diferentes regiões italianas. As crianças que tinham acesso ao estudo passaram a ser alfabetizadas pela escola unicamente no dialeto fiorentino que foi eleito como italiano “standard”, ao passo que quase todos os meios de comunicação também eram forçosamente em italiano standard. A mera fala dos dialetos locais nas ruas, em algumas regiões, podia ser punida com severidade pelas autoridades, e é justo dizer que por um tempo um grande estigma social se formou com relação aos dialetos, sobretudo os do sul da península.
Acompanhando essas movimentações de repressão à pluralidade étnica e cultural da população, começou uma tentativa de criação de um sentimento de nacionalismo que assumiria sua mais forte faceta algum tempo depois, durante o governo fascista de Benito Mussolini. Esse sentimento de nação italiana foi arraigado com sucesso entre o povo, mas é observável ainda hoje que as diferentes regiões da Itália possuem características linguísticas (os dialetos sobrevivem!), culturais e – aqui é onde eu quero chegar – místicas muito diversificadas.
A magia vernacular da qual já falei neste texto é presente em todas as regiões da Itália, bem como nos países para os quais houve grande imigração de italianos. De um modo geral, semelhanças e elementos unificadores podem ser observados em grande parte dessas tradições não importando a localidade da qual elas provém. É o caso da crença no malocchio, no uso de determinados dias do ano litúrgico católico para a transmissão de conhecimentos às novas gerações, no uso de alguns tipos de amuletos e instrumentos de proteção, feitiços de vingança com uso do limão, o ritual de limpeza da casa com o derramamento de sal, dentre outras práticas, símbolos e crenças que são similares e denotam a boa parte dessas tradições uma impressão de “parentesco”.
Entretanto, também é verdade que existem elementos nessas tradições que são profundamente regionais, vinculados à história da terra ou dos povos que nela habitaram, e estes podem trazer características únicas ou diferenciais para cada tradição.
A título de exemplo, posso citar o culto da Madonna di Montevergine, muito forte tanto em Napoli quanto em algumas localidades da Campania e da Basilicata. A Madonna di Montevergine é uma imagem de Nossa Senhora que repousa numa capela situada no topo de uma montanha – no Monte Avellino – onde antigamente existia um templo da deusa Cibele.
Figura 9. Procissão de devotos da Madonna di Montevergine no Monte Avelino. Fonte: L'Occhio di Avellino.
A devoção à Madonna di Montevergine atrai um número impressionante de LGBT’s, principalmente homens gays, travestis, mulheres trans e pessoas do sexo masculino que se identificam como gênero fluído. É tradicional a peregrinação de muitas dessas pessoas todos os anos ao santuário de Monte Vergine durante a Festa da Candelária (02 de fevereiro) quando se comemora a Madonna di Montevergine. Na celebração, muitas pessoas deixam à Madonna oferendas e performam cânticos e danças com tambores, cistros e castanholas, de uma forma que relembra as danças extáticas performadas no culto de Cibele que existiu naquela região. É justo dizer, e muitos ali reconhecerão isto como verdadeiro, que a devoção à Madonna di Montevergine é a continuidade da devoção a Cibele sob uma roupagem cristianizada. Existem, e não vou entrar em detalhes aqui para não alongar mais do que o necessário este texto, tradições próprias de magia vernacular que se utilizam destes elementos – como o toque da tamorra (tambor característico da região da Campania) – para a operação mágica e para obtenção de curas, exorcismos, etc.
Figura 10. Danças à Madonna di Montevergine no festival da Candelária. Fonte: orticalab.it
Figura 11. Tammuriatta, dança folclórica da Campania, realizada no santuário de Monte Vergine. Fonte: Napoli Turistica.
Do mesmo modo, o uso do tamburello (uma espécie de tambor semelhante a um pandeiro brasileiro) é característico das tradições mágicas da Puglia e da Calabria, com fins diversos que vão desde o exorcismo do veneno da tarântula mítica presente no tarantismo (derivado dos cultos de Dionísio) quanto ao exorcismo de entidades maléficas e a realização de encantos para atrair prosperidade e amor. Esses elementos musicais são raramente encontrados nas tradições de magia do centro e do norte da Itália, e quando estão presentes normalmente envolvem contextos e significados diferentes dos observados, por exemplo, nas cidades de Galatina, Taranto e no Salento, onde DeMartino conduziu seus estudos sobre as tradições do tarantismo.
Figura 12. Registro do ritual de exorcismo musical do veneno da tarântula, segundo a tradição mística do Tarantismo. Fonte desconhecida.
Outro ponto de destaque quando se fala da pluralidade nas práticas mágicas italianas é a inclusão oportuna de tradições provenientes de minorias étnicas e imigrantes de outros países. Até aqui abordei as práticas de italianos que, a despeito de suas peculiaridades místicas que os colocam na marginalidade social, são parte da maioria étnica italiana. No entanto, sempre houve povos que vieram para a Itália a partir de outras localidades e que são tão italianos hoje quanto a população originária da península.
É o caso dos imigrantes albaneses que constituíram verdadeiras comunidades próprias em determinadas regiões italianas, trazendo suas próprias tradições espirituais consigo.
É também o caso das diferentes denominações romani (ciganas) que adentraram a Itália em períodos diferentes da história, também trazendo consigo tradições de conhecimento mágico, de oráculos e feitiçaria, que podem guardar semelhanças, mas possuem expressivas diferenças – sobretudo em costumes e valores – com relação às tradições de magia vernacular dos italianos “gadge” ou “não-ciganos”.
É o caso também de influxos fronteiriços de pessoas de outros países ao longo dos tempos, que trouxeram influências de outras etnias, e como exemplo concreto disso posso citar a presença de inúmeros elementos da bruxaria eslava na stregoneria friulana. O Friûl é uma região italiana que faz divisa com a Áustria ao norte e com a Eslovênia ao leste, e há nas cidades próximas a esta divisa leste alguma quantidade de falantes de esloveno. Lembrando o significado de “vernacular”, a bruxaria presente nesta localidade (tanto a praticada efetivamente quanto a folclórica) recebem uma influência direta dessa linguagem e de seu contexto cultural de origem. Isto será verdadeiro para outras fronteiras, em maior ou menor grau, e também para áreas da Itália que foram conquistadas no passado por outros países, como é o caso da observável influência espanhola em Napoli e em alguns locais da Sicília.
Creio que já é possível compreender a natureza plural e diversificada da stregoneria e da própria magia vernacular na Itália a partir destes exemplos.
Temos, então, uma concepção de stregoneria como: (1) um conjunto amplo de tradições de magia vernacular nas quais se reúnem elementos que caracterizam a figura da bruxa como pessoa capaz de fazer o bem e o mal através da magia, que reúne em suas práticas os elementos que comumente são associados ao que se entende por bruxaria, sendo que dentre estes elementos podem – ou não – ser encontrados (2) elementos extáticos como o voo noturno, a participação em procissões de almas dos mortos, a transfiguração animal, dentre outros; sendo que também é necessário frisar que (3) estas práticas podem variar enormemente de uma região geográfica para outra, ou de uma etnia para outra, assumindo valores, costumes, símbolos e narrativas próprias e singulares, todas elas válidas enquanto expressões da espiritualidade e da ancestralidade humanas.
Agora que temos um panorama mais completo e realista das tradições comprovadamente ancestrais e enraizadas na história e cultura italianas, passo a abordar as criações e reinterpretações modernas e pós-modernas da bruxaria italiana e como tais criações e reinterpretações impactam o entendimento e o significado atuais da bruxaria na Itália e em países que receberam levas de imigrantes italianos, principalmente os Estados Unidos e o Brasil.
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* Continua na Parte 4 *
REFERÊNCIAS DA PARTE 3:
Sud e Magia – Ernesto DeMartino.
La Terra del Rimorso – Ernesto DeMartino. *Especialmente relevante para o estudo do Tarantismo.
Gay Madonnas in Montevergine - Matéria em inglês sobre a presença LGBT no culto à Madonna di Montevergine.
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