quarta-feira, 22 de abril de 2020

Sobre a Bruxaria Italiana - Parte 2


Parte 2 – Stregoneria, entre êxtases angelicais e sonhos diabólicos


A voz mais conhecida ao falar de bruxaria na história da Itália é o historiador Carlo Ginzburg, que abordou o tema principalmente em seus livros O Queijo e os VermesCaminhantes do Bem e História Noturna: Decifrando o Sabá.

 Os dois últimos títulos tratam com ênfase especial fenómenos extáticos e oníricos que culminaram no surgimento da ideia do Sabá das Bruxas, um tipo de reunião diabólica no qual as bruxas supostamente se encontrariam com o Diabo e performariam ritos avessos à liturgia cristã.


Figura 6. Pintura "El Akelarre", de Francisco Goya, retratando o imaginário do Sabá das Bruxas.

O autor estabelece no História Noturna uma série de conexões no tempo e no espaço geográfico da Europa entre os séculos XI e XIX através das quais busca evidenciar que muitas crenças populares confluíram para a visão inquisitorial cristã que se formaria do Sabá das Bruxas, e que tais crenças provavelmente provém de substratos culturais comuns a alguns povos europeus. Tais crenças populares expressas nos relatos obtidos pela Inquisição revelariam, pelas similaridades entre si, a existência de toda uma estrutura de crença e de prática espiritual subliminar àquela imposta pelo cristianismo hegemônico. Não uma religião pagã e secreta propriamente dita – como defenderam Margareth Murray e Gerald Gardner –, mas algo mais próximo do inconsciente e da herança ancestral manifesta através dos atavismos, fantasias e experiências oníricas de populações diversas em tempos e locais distintos, porém unidos por elementos simbólicos e impulsos psíquicos semelhantes.


 Já em Caminhantes do Bem, Ginzburg avalia em especial os registros do Santo Ofício acerca dos Benandanti e dos Malandanti, dois grupos de pessoas de diversas classes sociais e localidades do nordeste da Itália, concentradas majoritariamente na região do Friûl, cujas práticas consideradas heréticas pela Igreja envolviam o voo espiritual durante a noite para reuniões oníricas e batalhas nas quais se disputava pela fertilidade ou infertilidade dos campos, e em última instância, pela saúde e vida das pessoas e animais.

 A princípio, os Benandanti (cujo nome se traduz da língua friulana antiga como “caminhantes do bem”) gozavam de certo reconhecimento social e liberdade para assumir publicamente seus feitos. Eles eram conhecidos como pessoas que tinham o poder de, entre outras coisas, curar enfermidades e contatar os mortos para abençoar os vivos. Já os que eram apontados pelos Benandanti como Malandanti (caminhantes do mal) possuíam a fama de serem pessoas envolvidas com feitiçaria maléfica, frequentemente descritos como associados ao Diabo enquanto os Benandanti clamavam agir em nome de Cristo.

 A figura dos Malandanti – envolvidos com maldições e causadores da morte de pessoas e plantações – não demoraram a ser associados ao ideário que a Inquisição vinha construindo sobre o arquétipo das bruxas como criaturas demoníacas. Porém com os Benandanti houve mais dificuldade, pois estes perseveraram por algum tempo em suas narrativas sobre utilizarem seus poderes para o bem e em honra a Cristo, um discurso semelhante ao que se ouvirá ainda hoje ao questionar um guaritore (curador) sobre a natureza moral de suas práticas. Os próprios registros históricos demonstram que tanto Benandanti quanto Malandanti eram versados na magia vernacular existente naquela época e local.

 Como Ginzburg demonstra no História Noturna, há inúmeros casos por toda a Itália – e regiões próximas – de clãs “benéficos” e “maléficos” performando narrativas semelhantes às dos Benandanti e dos Malandanti, o que é um ponto a favor de sua tese sobre a conexão subliminar e possivelmente ancestral entre essas manifestações psíquicas e sociais.

 Podem ser citadas como exemplo as denominadas “Mulheres de Fora”, cujo papel nos relatos da Sicília era semelhante ao dos Benandanti do Friûl, havendo inclusive a rivalidade entre elas e um grupo inimigo, cujos voos noturnos eram voltados à maledicência e à perturbação da vida alheia.

 Os Mazzeri, por outro lado, são um grupo de indivíduos que desempenharam e ainda desempenham um papel próximo ao dos Malandanti na ilha da Córsega – que atualmente é território da França. O mazzeru é um ser humano que caça um animal em seus próprios sonhos e, ao abatê-lo, causa a morte real de uma pessoa próxima a ele no período de até um ano após a ocorrência do sonho. Há relatos folclóricos de guerras oníricas entre clãs Mazzeri nos quais venceria quem causasse o maior número de mortes na comunidade do grupo adversário.

 Outros exemplos poderiam ser citados para demonstrar a recorrência dos temas do êxtase e do sonho no misticismo popular italiano ao longo da história, mas os que citei já ilustram bem esse cenário. Fato é que, por mais que num determinado período já próximo ao fim da Inquisição cessem os depoimentos processuais deste tipo de caso, os episódios de transes, visões, viagens em êxtase para outros mundos – como o Inferno e até mesmo o mundo das fadas – e voos noturnos em espírito, todos tidos como claras reminiscências de práticas xamânicas pela obra de Ginzburg, são ocorrências passíveis de serem encontradas em determinadas expressões da religiosidade popular italiana até os dias de hoje.

 Tanto no artigo Vernacular Magic de Magliocco quanto em Sud e Magia de DeMartino a menção à obtenção dos poderes mágicos de uma bruxa ou bruxo pela comunhão com seres e planos espirituais é algo presente. Por vezes, a forza (a “força” ou “poder”, significando a capacidade de fazer magia) é concedida a um praticante de magia vernacular – denominada como stregoneria ou não – através de uma viagem espiritual extática e espontânea realizada pelo indivíduo, na qual este obtém os poderes pela interação com uma entidade superior, na maior parte das vezes relatada como sendo a Madonna e os Santos, mas por vezes outras figuras mais próximas dos espíritos folclóricos de uma região ou do próprio demônio (mais raramente) são mencionados.

 Há uma coletânea extremamente diversificada e plural de mitos correntes dentro das tradições de magia vernacular. Essas histórias muitas vezes tem a função de legar a diante algum conhecimento sobre o ofício, as alianças espirituais dos portadores da tradição, ou mesmo a origem real ou apenas folclórica dos poderes dos praticantes. Em determinadas tradições desse amplo espectro, existem histórias que narram explicitamente ou fazem alusões nada discretas aos processos de voo noturno das bruxas e as reuniões que elas realizam entre si.


Figura 7. Outra pintura de Goya, retratando práticas das bruxas como o uso de bonecos para feitiços e o voo noturno. Observa-se que em vários países o voo noturno em cima de montarias ou em forma animal ou de neblina é um elemento comum ao imaginário das bruxas.

 Não se pode justificar uma igualdade entre essas histórias a fim de dizer que todas elas preceituam um mesmo significado. Elas variam tanto quanto as práticas oficiosas da magia vernacular, muitas vezes tendo versões diferentes de uma mesma história correndo paralelamente dentro de uma mesma família e, por vezes, como eu pude averiguar por experiência própria, uma história passada dentro do costume italiano pode se revelar extremamente semelhante a uma história contada numa tradição de misticismo pertencente a outra região da Europa (no caso, encontrei uma versão semelhante a uma história corrente no lado friulano da minha família, que nunca havia visto em outro lugar, relatada dentro de um livro que trazia depoimentos de bruxas eslovenas e sérvias).

 Não é necessário muito empenho para chegar à conclusão de que existe um ideário presente na magia vernacular em que se compreende a existência dos voos noturnos, das viagens a outros planos e de reuniões astrais com entidades diversas. A execução prática ou não de tais processos pelas bruxas italianas em caráter tradicional (isto é, legado de maneira ininterrupta entre gerações) é controversa entre estudiosos do tema, mas a existência de folclore, receitas e instruções para realização de tais processos no arcabouço de conhecimentos das tradições de magia vernacular é uma realidade.

 Levando em consideração que existe um tabu social especialmente severo com relação às práticas que caracterizam a magia vernacular como stregoneria – sendo o voo noturno, os êxtases e os transes em geral algumas delas – creio que basta somar dois mais dois para chegar a uma conclusão do que pode ter feito os pesquisadores concluírem que esse tipo de coisa não é mais praticada.

 Agora faço um parêntesis apenas para estimular uma reflexão que poderá ser objeto de um novo texto no futuro:

 Recentemente na história, com o empurrão do renascimento midiático do paganismo e do surgimento da Wicca e outras formas de bruxaria moderna alguns grupos que reivindicam serem praticantes de formas tradicionais de bruxaria tem saído das sombras, e buscado um reconhecimento público que em tempos remotos seria praticamente suicídio. Alguns destes grupos são profundamente imersos no conceito do Sabá das Bruxas tal como foi modelado pelo processo inquisitorial na Baixa Idade Média, e embora as tradições destes grupos não sejam todas iguais, é possível chamar o fenómeno da ênfase que quase todos possuem na reunião noturna  das bruxas de “corrente sabática”, tal como faz o autor da famosa Cultus Sabbati inglesa, Andrew Chumbley, em sua Oppuscula Magicka.

 Pensar em termos de corrente sabática me agrada, pois salvo engano de minha parte considero possível compreender o conceito como um fenómeno espiritual que se manifesta (ou é buscado e instado a se manifestar pelos praticantes) em várias tradições diferentes de bruxaria, adaptando-se e tomando contornos próprios a cada substrato cultural e arcabouço simbólico, porém sem deixar de reservar elementos muito próprios de sua essência, que podem ser vislumbrados em todos os caminhos que trabalham com a referida corrente.

 Fechando agora o parêntesis carregado de subjetividade, pode-se dizer com segurança que o voo noturno em suas múltiplas formas, o Sabá das Bruxas (chamado também de Convenção ou Assembleia), bem como outros eventos extáticos e oníricos como a Procissão dos Mortos e a Caçada Selvagem – amplamente debatidos na obra de Ginzburg – fazem parte do conjunto de estruturas simbólicas e folclóricas de ao menos uma parte das tradições de stregoneria italiana. O que isso efetivamente significa na prática para cada uma dessas tradições infelizmente (ou felizmente) fica a cargo do entendimento interno de cada uma delas e daqueles que vivenciam seus mistérios e os transmitem dentro de suas linhagens.

 Já temos até aqui duas concepções traçando um amplo contorno do que é stregoneria italiana: (1) um conjunto diversificado de tradições de magia vernacular nas quais se reúnem elementos que caracterizam a figura da bruxa como pessoa capaz de fazer o mal – assim como o bem – através de poderes mágicos, que reúne em suas práticas os elementos que comumente são associados ao que se entende por bruxaria, como necromancia, magia, sabedoria acerca da natureza e os seus usos medicinais e espirituais, marginalidade social e associação a símbolos noturnos ou obscuros, sendo que dentre estes elementos podem – ou não – ser encontrados (2) elementos extáticos como o voo noturno, a participação em procissões de almas dos mortos, a transfiguração animal, etc.

 Tendo criado uma ideia já razoavelmente consistente do ponto de vista bibliográfico e cultural do que é bruxaria italiana, passo a abordar na próxima parte desse texto as ressalvas quanto às origens étnicas e regionais de cada tradição, que podem ocasionar severas divergências entre as tradições e seus costumes e valores.

~


* Continua na Parte 3 *


REFERÊNCIAS DA PARTE 2:

Witchcraft, healing and vernacular magic in Italy – Sabrina Magliocco. Disponível em inglês aqui.

Sud e Magia – Ernesto DeMartino.

La Terra del Rimorso – Ernesto DeMartino.

O Queijo e os Vermes – Carlo Ginzburg.

Os Caminhantes do Bem – Carlo Ginzburg.

História Noturna: Decifrando o Sabá – Carlo Ginzburg.

Trecho de documentário corso sobre os Mazzeri, entitulado "I mazzeri ou Les faiseurs de mort". Observação: da primeira vez que encontrei este documentário ele estava disponível por completo e com legendas para o italiano standard. Quando o busquei novamente para citação neste post o vídeo havia sido removido. Este trecho foi o único que encontrei, e demonstra inicialmente um ritual simples de bruxas da Córsega vinculadas aos Mazzeri, e posteriormente uma entrevista de uma delas, falada em corso e com legenda em francês, sobre o fenómeno da caçada noturna do mazzeru.



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