Fé
não é a mesma coisa que crença.
Pode
parecer estranho afirmar isso sendo que a maior parte das pessoas utiliza estas
duas palavras como sinônimos, mas sob o meu ponto de vista elas representam
coisas muito distintas.
A
palavra “fé” vem de fides no latim e significa confiança, mesma raiz de “fiducia”.
O ato da fé é um ato, portanto, de confiança. Já a palavra “crença” vem de credentia,
no sentido de acreditar, dar crédito a alguém ou alguma coisa. E por mais que
confiar e dar crédito tenham o mesmo sentido em determinados contextos, entendo
que confiar é ligeiramente diferente de acreditar no que tange os mundos
invisíveis da espiritualidade.
A
crença se manifesta na validação pessoal de uma premissa, de uma narrativa ou
de um fato que não podemos verificar pelas nossas próprias percepções. Exemplo:
eu acredito que a Terra é um globo mesmo sem ter eu mesmo realizado todos os experimentos
que seriam necessários para que eu comprovasse pela minha própria percepção que
isto é verdadeiro. Nenhuma pessoa que não trabalhe com astronomia,
geoprocessamento e áreas correlatas possui o tempo, os conhecimentos e os
recursos necessários para colocar o conceito da terra redonda à prova e comprová-lo
por si próprio. Nós recebemos um conjunto razoavelmente coeso de evidências de
que a terra é redonda e por isso acreditamos que ela de fato o é. O bom senso
nos leva a isto, pois é muito mais lógico e plausível acreditar (dar crédito à
narrativa de) que todas as evidências da terra redonda sejam reais do que acreditar
(dar crédito à narrativa de) que existe uma grande conspiração Illuminati que
busca esconder da população a verdadeira forma da terra.
Quando migramos para o campo da
espiritualidade estamos lidando com coisas que assumem dimensões mais abstratas,
não porque elas de fato o sejam, mas porque a percepção humana acostumou-se a
tratá-las como se fossem.
Crer em Deus (ou Deuses) significa dar crédito
à narrativa de sua existência, e isso pode ocorrer pelos mesmos motivos pelos
quais alguém acredita que a terra é redonda. Evidências suficientes foram
demonstradas ou uma explicação lógica o bastante foi elaborada, de modo que a
pessoa admite a existência de um sagrado como algo real, ou seja, dá credito a
essa possibilidade. A crença não advém, neste caso, de uma íntima comunhão ou de
um conhecimento de causa, mas sim de uma dedução, de um jogo de raciocínio (ou
até da preguiça ou incapacidade de raciocinar, que pode levar o indivíduo a
satisfazer os próprios questionamentos com as simples e fundamentalistas
respostas da religião dogmática).
Ter Fé, por outro lado, significa confiar,
algo que por definição requer ausência de dúvida ou hesitação, além da genuína
espera de uma resposta da outra parte da equação, seja ela qual for. Não se
confia sem entrega real de si mesmo ao objeto da confiança. E aí chegamos no
ponto central desta discussão: será que a Fé necessita da crença para existir?
A resposta é complexa e não vejo uma conclusão
satisfatória dentro dela.
Pintura: Incredulità di San Tommaso - Guercino (1621).
É possível que toda Fé leve a uma crença, nem
que seja uma crença pessoal e sui generis. Mas me parece óbvio que, pela
via contrária, nem toda crença leva à Fé. Observe-se o povo de um modo mais criterioso
e será nítido que uma parcela dos indivíduos admite Deus como um valor moral ou
uma ideia da qual necessitam em suas narrativas pessoais, seja para explicar essas
narrativas de maneira que façam sentido ou para se adequar ao que é esperado
deles pelo costume da comunidade (em ambos os casos, “crença”), mas quando se
trata da fidúcia (ou mesmo de uma relação mais profunda em caráter devocional
com a divindade) as “certezas” da crença desaparecem. Vide a desilusão de
muitos com o sagrado ao enfrentar momentos de crise.
O resumo da ópera aqui é que acreditar
resume-se a considerar a existência do Divino como verdadeira, enquanto ter
Fé significa saber a nível íntimo e profundo da existência do sagrado a ponto
de ser capaz de entregar-se a ele, doar-se a ele, com CONFIANÇA.
E mais, a meu ver a verdadeira Fé não está numa
vã esperança de retorno material como prega a asquerosa “teologia da
prosperidade” dos templos neopentecostais, herdeira da predestinação calvinista,
mas sim numa sabedoria inerente à comunhão da alma (ou do nosso ser mais íntimo)
com a sacralidade presente no Cosmos e além dele, sem esperar um milagre em
troca desta convicção, como se os Deuses fossem subornáveis ou dependessem da
nossa minúscula atividade devocional para existir, mas sim adotando antes de
tudo uma postura de serenidade e gratidão pela própria existência desta comunhão
sagrada, da qual as bençãos que você precisa podem ou não advir da forma como
você deseja.
Ter Fé não depende tanto da lógica, mas sim da
capacidade de abrir a si mesmo para perceber o sagrado, e essa capacidade pode
ser estimulada pela crença, pelo exemplo, pela vivência, enfim, por uma série
de coisas.
Por fim, é justo à luz dos meus olhos fazer a
seguinte comparação:
A crença é narrativa que você adota ou
constrói sobre o sagrado.
A Fé é o quanto você verdadeiramente o sente queimando em seu coração.
A Fé é o quanto você verdadeiramente o sente queimando em seu coração.
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