quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Figueira: a Árvore das Bruxas

"A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. Então os seus olhos abriram-se; e, vendo que estavam nus, tomaram folhas de figueira, ligaram-nas e fizeram cinturas para si." - Gênesis 3: 6-7.

Uma das árvores mais importantes da tradição espiritual do mediterrâneo é sem sombra de dúvidas a Figueira. Sua relevância atravessa culturas e religiosidades diversas, e acumula significados contraditórios que se complementam numa ideia “agridoce” de árvore sagrada, uma ideia que permite acompanhar e refletir a própria transição de perspectivas sobre o sagrado e o profano ao longo da evolução do ocidente.



Pipal des Banians - Pintura da Ficus religiosa por M. Achille Comte (1854).

    Com quase 800 variações de espécie, a figueira existe em todos os continentes à exceção da Antártida e possui uma grande diversidade de formatos, sendo a maioria deles árvores frondosas, mas existindo também arbustos e variantes trepadeiras. O fruto da figueira foi elementar na alimentação dos povos antigos pela sua facilidade para conservação e transporte em viagens, o que provavelmente contribuiu para o alastramento do gênero por todo o mundo antigo. Não poderia ser diferente, essa importância fez com que a figueira tivesse participação significativa em inúmeras tradições religiosas.



Afresco romano - figueira e serpente.

              No mundo helênico, a figueira foi a árvore sagrada do deus Dionísio (Dionysos), plantada por este na entrada do Hades. A madeira da figueira foi usada para forjar o falo com o qual o deus cumpre a promessa de luxúria feita a Prosymnos, o personagem que lhe ensinou o caminho para o mundo inferior. Já então, a figueira era vista como uma árvore da fertilidade que reunia em si mesma, por suas folhas que não raro apresentam tripla ponta e por seus frutos de semblante uterino, a união harmoniosa da genitália masculina e feminina. Enquanto a videira secava durante uma parte do ano, a figueira permanecia viva, de onde vem sua associação ao Dionísio ctônico, ao Hades dos mistérios de Elêusis. Não era apenas uma árvore ligada à vida por sua simbologia sexual, mas também ligada à morte pela sua conexão mitológica com o submundo. A hamadríade da árvore do figo era chamada Syke.



Mosaico romano retratando Dionísio, mais informações em https://www.theoi.com/Gallery/Z12.21.html 


          Já na península itálica, a figueira foi considerada um verdadeiro símbolo da firmeza e expansão de Roma, pois o local onde Rômulo e Remo são encontrados, após serem cuidados pela Lupa Capitolina, é à sombra da Figueira Ruminal, uma figueira que se erguia à entrada da caverna de Lupercal. Pode ser esta a origem da figueira sagrada mencionada como a Figueira de Alba Longa, cidade mítica de onde se originou a linhagem de Rômulo e Remo.

Devido a este evento mitológico a figueira torna-se, ao lado da loba, uma das figuras maternais mais proeminentes nas tradições de magia folclórica que remontam de alguma forma ao contexto romano. Convém lembrar que, não por acaso, o feminino de figo, “figa” ou “fica” é um termo de baixo calão em italiano para vagina (como se vê em manu fica, uma posição de mãos com significados tanto ofensivos quanto místicos). A figueira, na condição simbólica e lendária de uma das guardiãs de Rômulo e Remo, pode ser considerada, literalmente, uma das “vulvas” que deram a luz ao Ocidente.



La Lupa Capitolina - Autor desconhecido, Sec. XVI.

              Na tradição cristã, os valores se invertem radicalmente e a figueira passa a ser considerada por excelência a Árvore do Diabo, devido ao fato de ter sido a árvore cujas folhas serviram de primeira vestimenta a Adão e Eva após o Pecado Original, e também à passagem encontrada nos evangelhos de Mateus e Marcos:

Pela manhã, ao voltar à cidade, teve fome. Vendo uma figueira à beira do caminho, dela se aproximou, e não achou nela senão folhas; e disse-lhe: Nunca jamais nasça fruto de ti. No mesmo instante secou a figueira. Vendo isto os discípulos, maravilharam-se e perguntaram: Como é que repentinamente secou a figueira? Respondeu-lhes Jesus: Em verdade vos digo que se tiverdes fé e não duvidardes, fareis não só o que foi feito à figueira, mas até se disserdes a este monte: Levanta-te e lança-te no mar, isso será feito; e tudo o que com fé pedirdes em vossas orações, haveis de receber. (Mateus 21:18-22)

 

Com passar dos séculos, a figueira assumiu conotações demoníacas, tanto advindas da interpretação popular deste trecho bíblico quanto da demonização da própria sacralidade conferida a ela por tradições pagãs arcaicas e orientais. Dentre o vasto folclore acerca das bruxas em vários locais da Europa, a figueira manteve-se com frequência como a árvore ao redor da qual as feiticeiras realizavam seus ritos de magia, uma provável herança do culto às árvores da época clássica. A figueira, antes símbolo de fertilidade, agora torna-se a árvore das bruxas e dos diabos, e como não poderia deixar de ser, essa associação demoníaca resgata ao imaginário construído sobre esta árvore uma associação com os poderes da morte e do submundo, originando uma ligação entre a figueira e a infertilidade e o vampirismo, elementos próprios da bruxa caricata do medievo. Esta associação foi reproduzida dentro do folclore sobre as bruxas como ilustra o mural ao fim deste texto, no qual as bruxas são representadas como mulheres que roubaram os pênis dos homens e os penduram numa árvore, tal qual a descrição processualista do Malleus Maleficarum.



Jesus amaldiçoa a figueira - Autoria não encontrada.

              No Brasil pré e pós colonização, a Figueira foi uma árvore sagrada para algumas tribos indígenas do litoral, para as quais ela seria a árvore dos ancestrais, ou ainda a árvore das almas, por meio da qual os falecidos seguiriam deste mundo para o além. Já entre os africanos escravizados e seus descendentes, a figueira foi considerada uma das árvores mais propícias para realização de oferendas a certas divindades, o que remonta seu tempo de prestígio em solo africano, especialmente quanto ao sicômoro (ficus sycomorus), a chamada “figueira dos faraós”, cuja madeira era usada para confecção de sarcófagos.

              A figueira na tradição africana é ainda a sétima morada de Iyá Mi Oxorongá, as “Mães Ancestrais”, divindades da criação, sob as quais pesam, especialmente no Brasil, o rótulo sombrio de bruxas. Segundo o mito, é quando Iya Mi estão na figueira que uma pessoa pode ser por elas perdoada por suas faltas.



Figueira centenária do Parque Celso Daniel na cidade de Santo André, onde cresci. Foto de antes do seu adoecimento e morte.


Foto da mesma árvore depois de morta. Além de ter sofrido com a infestação de um fungo, a árvore sofreu inúmeras podas inadequadas após um galho ter despencado e causado a morte de uma transeunte em 2011. A morte da figueira centenária da cidade foi uma perda irreparável não apenas para a cultura e para o meio ambiente da região, mas também para sua espiritualidade e ancestralidade.

              Talvez seja uma confluência de todos estes fatores que originou a “falange das figueiras” entre os espíritos reverenciados nas religiões e práticas ancestrais de matriz afro-brasileira como Pombagiras. Alguns dos nomes mais usuais dados por estes espíritos são Maria Figueira e Figueira do Inferno, e este último evoca tanto uma conexão com o caráter diabólico desta árvore após a maldição de Jesus quanto com o passado greco-romano no qual ela foi uma árvore vinculada ao Hades, para os romanos Infernum.

A Pombagira da Figueira foi relacionada, sobretudo em vertentes recentes de Quimbanda, à ancestralidade da bruxaria e da feitiçaria como um todo, na condição de espírito guardião e mediador da sabedoria dos ancestrais. Enquanto este termo “pomba-gira” surgiu como uma corruptela razoavelmente recente do nome de um Nkisi (divindade do povo bantu) chamado Pambu Njila, que era um deus masculino semelhante ao Èsù dos iorubás, a veneração de espíritos ancestrais ligados à bruxaria entre os afro-brasileiros e mestiços de europeus com indígenas não é algo novo. Nota-se isto pelo simples exemplo da veneração de Maria de Padilla (que se tornou Maria Padilha) dentro do Catimbó nordestino. Maria de Padilla foi amante do Rei Pedro I de Castela, influente na corte e nas decisões políticas de seu amado. Foi por ele tornada rainha de Castela após a sua morte, e é até hoje considerada uma bruxa poderosa no folclore ibérico. Assim como outros tantos casos, Maria de Padilla, ancestral da bruxaria européia, sobreviveu no folclore brasileiro até se tornar a Pombagira Maria Padilha.



Objetos de culto à Figueira.

Ainda sobre a Figueira do Inferno, é possível presumir sem muito peso na consciência que um dos pontos cantados mais tradicionais da tradição afro-brasileira sobre essa classe de espírito evoca, nada mais nada menos, do que a imagem do culto helênico às árvores e da reunião sabática das bruxas ao redor da árvore da figueira:

A pomba-gira debaixo de uma figueira
Ela dançava em volta de uma fogueira
A pomba-gira deu uma gargalhada
Ela vence o inimigo lá na sua encruzilhada
Ela vence o inimigo lá na sua encruzilhada

O enorme peso do significado desta árvore para a história das bruxas e do mundo ocidental como um todo é algo que, como muitas outras coisas, aguarda maiores oportunidades de estudo e reflexão. Assim como a macieira tida como a Árvore do Conhecimento e a nogueira sagrada a Ísis-Diana em Benevento, a figueira ocupa lugar de destaque entre as árvores que constituem o bosque da ancestralidade mágica ocidental. Suas bênçãos sobre nós são de vida e de morte, e o fio condutor (e divisor) entre ambas: a memória e a sabedoria ancestral.

E é perceptível a nós que a força espiritual desta árvore se associa à ancestralidade de modo profundo, não apenas através das tradições, mas através do testemunho que estas árvores muitas vezes centenárias guardam da realidade ao seu redor. A lição que buscamos aprender com ela talvez seja a de compreender a ancestralidade como algo que transcende a individualidade dos que vieram antes de nós, e que, de modo absurdamente mais amplo, nos une a todos enquanto testemunhas da própria vida, espectadores da eternidade.

Que os espíritos ancestrais que dançam eternamente sob sua frondosa copa possam nos abençoar com a sua sabedoria.

 


L'Albero della Fecondità - Mural encontrado em Massa Marittima, na Toscana (Itália), representando o ideário de poderes da infertilidade atribuído às bruxas pelo folclore europeu. Mesmo ideário legado à árvore da figueira ao longo das eras, como uma árvore capaz de trazer a vida e a morte, ora propiciando, e ora prejudicando a fecundidade de homens, animais, e de seu entorno.


 

Fontes:

The Sacred Tree in The Ancient Greek Religion – Karolyn E. Smardz

Quimbanda Brasileira: O Culto da Chama Vermelha e Preta – Danilo Coppini

https://www.theoi.com/Olympios/DionysosLoves.html

https://en.wikipedia.org/wiki/Dionysus

A história das figueiras ou gameleiras, disponível em : http://www.unirio.br/ccbs/ibio/herbariohuni/pdfs/a-historia-das-figueiras-ou-gameleiras

 

 

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