"A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente. Então os seus olhos abriram-se; e, vendo que estavam nus, tomaram folhas de figueira, ligaram-nas e fizeram cinturas para si." - Gênesis 3: 6-7.
Uma das árvores mais importantes da tradição espiritual do mediterrâneo é sem sombra de dúvidas a Figueira. Sua relevância atravessa culturas e religiosidades diversas, e acumula significados contraditórios que se complementam numa ideia “agridoce” de árvore sagrada, uma ideia que permite acompanhar e refletir a própria transição de perspectivas sobre o sagrado e o profano ao longo da evolução do ocidente.
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Pipal des Banians - Pintura da Ficus religiosa por M. Achille Comte (1854). |
Com quase 800 variações de espécie, a figueira existe em todos os continentes à exceção da Antártida e possui uma grande diversidade de formatos, sendo a maioria deles árvores frondosas, mas existindo também arbustos e variantes trepadeiras. O fruto da figueira foi elementar na alimentação dos povos antigos pela sua facilidade para conservação e transporte em viagens, o que provavelmente contribuiu para o alastramento do gênero por todo o mundo antigo. Não poderia ser diferente, essa importância fez com que a figueira tivesse participação significativa em inúmeras tradições religiosas.
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Afresco romano - figueira e serpente. |
No mundo helênico, a figueira foi a árvore sagrada do deus Dionísio (Dionysos), plantada por este na entrada do Hades. A madeira da figueira foi usada para forjar o falo com o qual o deus cumpre a promessa de luxúria feita a Prosymnos, o personagem que lhe ensinou o caminho para o mundo inferior. Já então, a figueira era vista como uma árvore da fertilidade que reunia em si mesma, por suas folhas que não raro apresentam tripla ponta e por seus frutos de semblante uterino, a união harmoniosa da genitália masculina e feminina. Enquanto a videira secava durante uma parte do ano, a figueira permanecia viva, de onde vem sua associação ao Dionísio ctônico, ao Hades dos mistérios de Elêusis. Não era apenas uma árvore ligada à vida por sua simbologia sexual, mas também ligada à morte pela sua conexão mitológica com o submundo. A hamadríade da árvore do figo era chamada Syke.
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Mosaico romano retratando Dionísio, mais informações em https://www.theoi.com/Gallery/Z12.21.html |
Já na península itálica, a figueira foi considerada um verdadeiro símbolo da firmeza e expansão de Roma, pois o local onde Rômulo e Remo são encontrados, após serem cuidados pela Lupa Capitolina, é à sombra da Figueira Ruminal, uma figueira que se erguia à entrada da caverna de Lupercal. Pode ser esta a origem da figueira sagrada mencionada como a Figueira de Alba Longa, cidade mítica de onde se originou a linhagem de Rômulo e Remo.
Devido a este evento mitológico
a figueira torna-se, ao lado da loba, uma das figuras maternais mais
proeminentes nas tradições de magia folclórica que remontam de alguma forma ao
contexto romano. Convém lembrar que, não por acaso, o feminino de figo, “figa”
ou “fica” é um termo de baixo calão em italiano para vagina (como se vê em manu
fica, uma posição de mãos com significados tanto ofensivos quanto
místicos). A figueira, na condição simbólica e lendária de uma das guardiãs de
Rômulo e Remo, pode ser considerada, literalmente, uma das “vulvas” que deram a
luz ao Ocidente.
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La Lupa Capitolina - Autor desconhecido, Sec. XVI. |
Na
tradição cristã, os valores se invertem radicalmente e a figueira passa a ser
considerada por excelência a Árvore do Diabo, devido ao fato de ter sido a
árvore cujas folhas serviram de primeira vestimenta a Adão e Eva após o Pecado
Original, e também à passagem encontrada nos evangelhos de Mateus e Marcos:
Pela manhã, ao voltar à
cidade, teve fome. Vendo uma figueira à beira do caminho, dela se aproximou, e
não achou nela senão folhas; e disse-lhe: Nunca jamais nasça fruto de
ti. No mesmo instante secou a figueira. Vendo isto os discípulos,
maravilharam-se e perguntaram: Como é que repentinamente secou a
figueira? Respondeu-lhes Jesus: Em verdade vos digo que se tiverdes
fé e não duvidardes, fareis não só o que foi feito à figueira, mas até se
disserdes a este monte: Levanta-te e lança-te no mar, isso será feito; e tudo o
que com fé pedirdes em vossas orações, haveis de receber. (Mateus
21:18-22)
Com passar dos séculos, a
figueira assumiu conotações demoníacas, tanto advindas da interpretação popular
deste trecho bíblico quanto da demonização da própria sacralidade conferida a
ela por tradições pagãs arcaicas e orientais. Dentre o vasto folclore acerca
das bruxas em vários locais da Europa, a figueira manteve-se com frequência
como a árvore ao redor da qual as feiticeiras realizavam seus ritos de magia,
uma provável herança do culto às árvores da época clássica. A figueira, antes
símbolo de fertilidade, agora torna-se a árvore das bruxas e dos diabos, e como não poderia deixar de ser, essa associação demoníaca resgata ao imaginário construído sobre esta árvore uma associação com os poderes da morte e do submundo, originando uma ligação entre a figueira e a infertilidade e o vampirismo, elementos próprios da bruxa caricata do medievo. Esta associação foi reproduzida dentro do folclore sobre as bruxas como ilustra o mural ao fim deste texto, no qual as bruxas são representadas como mulheres que roubaram os pênis dos homens e os penduram numa árvore, tal qual a descrição processualista do Malleus Maleficarum.
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Jesus amaldiçoa a figueira - Autoria não encontrada. |
No
Brasil pré e pós colonização, a Figueira foi uma árvore sagrada para algumas
tribos indígenas do litoral, para as quais ela seria a árvore dos ancestrais,
ou ainda a árvore das almas, por meio da qual os falecidos seguiriam deste
mundo para o além. Já entre os africanos escravizados e seus descendentes, a
figueira foi considerada uma das árvores mais propícias para realização de
oferendas a certas divindades, o que remonta seu tempo de prestígio em solo
africano, especialmente quanto ao sicômoro (ficus sycomorus), a chamada
“figueira dos faraós”, cuja madeira era usada para confecção de sarcófagos.
A
figueira na tradição africana é ainda a sétima morada de Iyá Mi Oxorongá, as
“Mães Ancestrais”, divindades da criação, sob as quais pesam, especialmente no
Brasil, o rótulo sombrio de bruxas. Segundo o mito, é quando Iya Mi estão na
figueira que uma pessoa pode ser por elas perdoada por suas faltas.
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Figueira centenária do Parque Celso Daniel na cidade de Santo André, onde cresci. Foto de antes do seu adoecimento e morte. |
Talvez
seja uma confluência de todos estes fatores que originou a “falange das figueiras”
entre os espíritos reverenciados nas religiões e práticas ancestrais de matriz
afro-brasileira como Pombagiras. Alguns dos nomes mais usuais dados por
estes espíritos são Maria Figueira e Figueira do Inferno, e este último
evoca tanto uma conexão com o caráter diabólico desta árvore após a maldição de
Jesus quanto com o passado greco-romano no qual ela foi uma árvore vinculada ao
Hades, para os romanos Infernum.
A Pombagira da Figueira foi
relacionada, sobretudo em vertentes recentes de Quimbanda, à ancestralidade da
bruxaria e da feitiçaria como um todo, na condição de espírito guardião e
mediador da sabedoria dos ancestrais. Enquanto este termo “pomba-gira” surgiu
como uma corruptela razoavelmente recente do nome de um Nkisi (divindade
do povo bantu) chamado Pambu Njila, que era um deus masculino semelhante
ao Èsù dos iorubás, a veneração de espíritos ancestrais ligados à
bruxaria entre os afro-brasileiros e mestiços de europeus com indígenas não é
algo novo. Nota-se isto pelo simples exemplo da veneração de Maria de Padilla
(que se tornou Maria Padilha) dentro do Catimbó nordestino. Maria de Padilla
foi amante do Rei Pedro I de Castela, influente na corte e nas decisões
políticas de seu amado. Foi por ele tornada rainha de Castela após a sua morte,
e é até hoje considerada uma bruxa poderosa no folclore ibérico. Assim como
outros tantos casos, Maria de Padilla, ancestral da bruxaria européia,
sobreviveu no folclore brasileiro até se tornar a Pombagira Maria Padilha.
Objetos de culto à Figueira. |
Ainda sobre a Figueira do
Inferno, é possível presumir sem muito peso na consciência que um dos pontos
cantados mais tradicionais da tradição afro-brasileira sobre essa classe de
espírito evoca, nada mais nada menos, do que a imagem do culto helênico às
árvores e da reunião sabática das bruxas ao redor da árvore da figueira:
A pomba-gira debaixo de uma figueira
Ela dançava em volta de uma fogueira
A pomba-gira deu uma gargalhada
Ela vence o inimigo lá na sua encruzilhada
Ela vence o inimigo lá na sua encruzilhada
O enorme peso do significado desta árvore para a história das bruxas e do mundo ocidental como um todo é algo que, como muitas outras coisas, aguarda maiores oportunidades de estudo e reflexão. Assim como a macieira tida como a Árvore do Conhecimento e a nogueira sagrada a Ísis-Diana em Benevento, a figueira ocupa lugar de destaque entre as árvores que constituem o bosque da ancestralidade mágica ocidental. Suas bênçãos sobre nós são de vida e de morte, e o fio condutor (e divisor) entre ambas: a memória e a sabedoria ancestral.
Que os espíritos ancestrais que
dançam eternamente sob sua frondosa copa possam nos abençoar com a sua
sabedoria.
Fontes:
The
Sacred Tree in The Ancient Greek Religion – Karolyn E. Smardz
Quimbanda Brasileira: O Culto da
Chama Vermelha e Preta – Danilo Coppini
https://www.theoi.com/Olympios/DionysosLoves.html
https://en.wikipedia.org/wiki/Dionysus
A história das figueiras ou
gameleiras, disponível em : http://www.unirio.br/ccbs/ibio/herbariohuni/pdfs/a-historia-das-figueiras-ou-gameleiras
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