quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Quando a verdade se torna mentira

Texto originalmente publicado via Facebook

Um negócio que me chama atenção – e também me entristece – é a fanfarronice polarizada com relação a essa figura mitológica, quase próxima de uma fábula ou de uma lenda urbana, que é a tal da "bruxaria hereditária".

É uma fanfarronice em duas vias, diga-se de passagem.

Uma delas é da galera que, cansada de ter que aturar uma série de wiccanos ou pretensos bruxos tradicionais iniciados pela avó evangélica - verdadeiros 𝑤𝑎𝑛𝑛𝑎𝑏𝑒 𝐴𝑙𝑒𝑥 𝑆𝑎𝑛𝑑𝑒𝑟𝑠 e 𝑤𝑎𝑛𝑛𝑎𝑏𝑒 𝑅𝑜𝑏𝑒𝑟𝑡 𝐶𝑜𝑐ℎ𝑟𝑎𝑛𝑒 - e um pouco confusos com a delimitação do que pode ser considerado bruxaria ou não, resolvem decretar que "bruxaria hereditária" NON ECZISTE fora dos delírios esquizofrênicos e da deliberada má-fé de praticantes modernos na corrida pela validação externa.

Não dá para culpá-los pelo reacionismo, porque o cenário é realmente desolador e temos um lobby do mercado esotérico que ajuda a perpetuar a desinformação sobre algumas coisas, mas ignoremos a falta evidente de pesquisa histórica de quem mente sobre a pomposa iniciação avoenga e de uma boa parte dos que reagem à essa mentira descarada com mais afirmações descabidas e passemos à outra via da fanfarronice que é, a grosso modo, o motivo desse texto.

No sentido oposto e extremo dessa pista de racha do ocultismo moderno, temos a galera que sustenta e defende a "bruxaria hereditária" como algo - em geral - verdadeiro e inquestionável, dadas certas contribuições vindas de outras áreas do conhecimento que estudam esse fenômeno ou suas próprias experiências pessoais. E até aí tudo bem. Ela realmente existe, essa fábula de que tanto falam.

O problema, no caso desse extremo mencionado, é como se doura a pílula para que a coisa pareça ser mais do que aquilo que ela de fato é (talvez por insegurança frente a uma comunidade tóxica em que via de regra a aparência e o discurso se valorizam mais do que a essência).

E o que eu quero dizer com isso é que, embora sistemas de magia complexos, profundos e cheios de cerimonialismo existam há muito tempo e possam ser legados tradicionalmente seja dentro de uma linhagem familiar ou dentro de uma linha iniciática, não são todas as vertentes entendidas como "bruxaria" que agregam em si elementos deste porte.

Explico: as vertentes de bruxaria não fogem à regra da desigualdade, inerente à natureza. Elas são diferentes entre si não apenas por suas devoções, folclores e métodos, mas também pela sua complexidade, abrangência de saberes, profundidade metafísica e nível de erudição de seus praticantes.

Afirmar isso não é julgar uma melhor que a outra em princípio, pois esse julgamento depende do que cada pessoa deseja vivenciar em sua prática. É, em vez disso, reconhecer que existem diferenças e que os conhecimentos mágicos correntes dentro de linhagens familiares que são cabíveis na definição de "bruxaria" podem muitas vezes - se não 𝗻𝗮 𝗺𝗮𝗶𝗼𝗿 𝗽𝗮𝗿𝘁𝗲 das vezes - serem revestidos de muita simplicidade e possuírem uma abrangência de recursos, cerimônias e propósitos bastante estreita.

Fazendo uma comparação com a arte de costurar: algumas pessoas trabalharam na alta-costura e tiveram acesso aos melhores tecidos, aos melhores utensílios e ao ensino mais avançado em matéria de corte e costura, enquanto outras costureiras (a maioria) tiveram recursos limitados, acesso apenas a tecidos mais baratos e fizeram sua vida e legaram seu ofício sempre suprindo as mesmas demandas simples e pouco diversificadas de sua comunidade mais humilde. Algumas costureiras tiveram a oportunidade de constituírem associações com regras próprias, e outras jamais saíram de um modo de trabalho solitário na informalidade. Isso tudo para não citar o amplo e discutível espectro entre uma costureira plena e a pessoa que aprendeu apenas a dar uns pontos na roupa rasgada, espectro dentro do qual existem costureiras com diferentes níveis de conhecimento do ofício. Ou seja, algumas costureiras trabalham com as tendências da moda elitizada e o suprassumo da alta-costura, enquanto algumas apenas aprenderam o que era necessário para atender à demanda da sua comunidade próxima.

Do mesmo modo, a magia permaneceu nas mãos de muitos não para ser uma arte diletante, refinada e intelectualizada, que se propõe a realizar maravilhosos mundos e fundos - como a elite ocultista a mantém até hoje - , mas para atender algumas poucas necessidades da vida real da classe menos abastada, como a cura de familiares, a proteção em tempos de guerra, a cura da alma e a prosperidade necessária para simplesmente poder se alimentar. E lembro, isto não é uma desculpa para a mediocridade quanto à magia. Existem bons e maus praticantes de todos os ofícios e em todos os níveis de complexidade de cada um deles.

O que vejo nesse extremo da "fanfarronice" e que me chateia muito são pessoas que tem uma verdadeira ancestralidade mágica, mas mentem ou dissimulam os contornos dessa ancestralidade para que ela pareça ser o legado de uma grande ordem ocultista, um grande sistema mágico secreto e milenar que guarda as respostas para todas as perguntas e possui o poder e os recursos para sanar todas as mazelas. Por vezes até se força uma estética desagradável e alienígena às práticas tradicionais, como uma roupagem exageradamente satânica, apenas para justificar uma dimensão de poder e de rebeldia aos antepassados que é irrealista até para aqueles que ocasionalmente flertaram com o diabolismo.

Algumas poucas receitas mágicas consagradas pelo tempo e eficácia, alguns dons manifestos de maneira recorrente pelas gerações e um folclore próprio simples, porém significativo, podem ser suficientes para constituir uma "tradição" de "bruxaria hereditária", dependendo do critério de cada vertente. Existem, obviamente, tradições que legam mais do que isso, mas ao menos no tocante àquilo que eu conheço elas são uma minoria, e uma minoria bastante criteriosa. Grupos com hierarquias complexas, cargos sacerdotais, grimórios imensos do tempo do Matusalém, essas coisas todas não fazem parte de muito do que já se entendeu como bruxaria entre o povo. Inventá-las para justificar algo verdadeiro que não precisaria ser justificado - ainda mais perante uma comunidade tão problemática - é desrespeitoso, senão triste.

E isso nos leva à minha breve tentativa de reconciliação desse paradoxo bizarro:

Não seria bem mais bonito narrar a história verdadeira, uma história de simplicidade e de uma essência sagrada e valiosa ligada à luta pela subsistência e à Fé (em alguns casos a luta pela continuidade da Fé) do que montar este circo?

Vivemos numa época onde a costureira mais simples, por assim dizer, tem facilitado o seu acesso a técnicas, recursos e aprendizados sobre costura que as gerações passadas de costureiras jamais sonhariam possuir.

O mesmo é com a magia, com bruxos e feiticeiros.

Por que não valorizar a tradição no seu molde humilde e profundamente significativo para os antepassados e, em paralelo, assumir para si a missão de engrandecer (a partir do presente) esse legado? Com os recursos de hoje podemos estudar, nos aperfeiçoar, descobrir mais sobre nossas próprias origens e agregar tanto quanto seja plausível e coerente em nossos caminhos. Não precisamos fingir sermos os netos da Bruxa de Évora ou os descendentes perdidos de Rasputin para dar dignidade ao que recebemos de nossos antepassados.

A verdade "feia" é, foi, e sempre será mais poderosa que uma bela mentira.


~


Imagem: Truth and Lie - Eduard Veith (c.1900)




Nenhum comentário:

Postar um comentário