Por: Lucas
de Yemọjá (Omíwálé)
Cartomante, umbandista e professor do método tradicional europeu de leitura do Petit Lenormand.
Originado do protótipo alemão – “Jogo da Esperança” de Johan Kaspar Hechtel – datado do final do século XVIII, o “Petit Lenormand” ou “Baralho Cigano” é exemplo cristalino da lógica mercantil aplicada à espiritualidade e suas variadas ferramentas. A tradição que permeia uma linhagem ancestral está fadada às adaptações e ressignificações decorrentes da necessidade de sobrevivência no tempo-espaço, especialmente no que tange ao mundo globalizado.
Mircea
Eliade alegou que “a dialética do sagrado permite todas as reversibilidades;
nenhuma ‘forma’ é exemplo de degradação e decomposição, nenhuma ‘história’ é
definitiva”. Contudo, apesar da fluidez pela qual o fenômeno religioso permeia,
há de se ponderar o quão aceitável ou não são determinadas nuances que a
contemporaneidade assume diante do sagrado. O sacerdote Mario Filho, do Templo
Espiritual Caboclo Pantera Negra, recentemente publicou:
“Tradição
não é costume; sendo assim, a tradição só se modifica de dentro para fora,
nunca de fora para dentro. Tradição é oriunda do mundo espiritual, não da
vontade humana e, portanto, somente os seres mantenedores desta tradição (e não
outros) poderão fazê-lo.”
O
mercado místico de oráculos, esotéricos e outras quinquilharias facilmente
descartáveis em sua utilidade prática, apela constantemente para adaptar suas
mercadorias de acordo com a busca de sua frágil clientela. Engana-se aquele que
pensa ser esta uma estratégia recente. O “Petit Lenormand”, deck amplamente
utilizado por vários cartomantes recebeu, em meados da década de 1840, o nome
que lhe daria fama e prestígio para além do continente europeu.
Publicado
com novos recortes e instruções, o baralho plagiado do jogo germânico aderiu ao
nome de Marie-Anne Adélaïde Lenormand (1772-1843), aproveitando-se da morte
desta que, sem sombra de dúvidas, foi a sibila e feiticeira mais famosa de seu
tempo. Ampla publicidade foi angariada a partir de invencionices que associavam
os supostos feitos de Lenormand ao baralho de 36 lâminas emblemáticas que se
disseminava mundo afora.
Gravura colorizada de Madame Lenormand |
Madame
Lenormand, muito provavelmente, nem sequer obteve contato com o oráculo que
mais adiante levaria seu nome através das gerações. Contudo, a mentira se
consolidou através da repetição e esta, por sua vez, contemplou a formação de
inúmeros cartomantes que logo passaram a aderir conhecimentos oriundos da
cabala, da astrologia e de outros ramos místico-ocultistas que talvez
remetessem à sibila. Logo, a proposta lúdica e simplista passou a adentrar
mistérios rasos pautados em falácias que ditaram as “novas tradições” nada
tradicionais.
Tal
como creem as pesquisas historiográficas, o Petit Lenormand foi baseado em
livros de emblemas e estruturas derivadas da tasseomancia/cafeomancia, sem
qualquer ligação com correntes espirituais ou distorcidas origens ciganas.
Estas últimas, aliás, apoiaram-se na concorrência desleal entre as editoras que
disputavam a venda do mítico baralho que “havia previsto a ascensão e queda de
Napoleão Bonaparte”. Aquelas que não puderam propagar a o lucro através de
Lenormand, apropriaram-se do estereótipo cigano – profundamente reducionista e
desrespeitoso – para ludibriar o público consumidor.
No
Brasil, dadas as influências dos terreiros e da matriz afro-brasileira, o
epíteto “cigano” ganhou maior espaço de disseminação e popularidade. O culto à
linha do Oriente, tão deturpado pela noção de “arquétipo” das vertentes
embranquecidas e menos tradicionais de Umbanda, aproximou o “Baralho Cigano”
dos templos e das controversas entidades. O que nunca foi cigano, tampouco
passou a ser em solo brasileiro. Muitas associações e práticas foram executadas
e vendidas sem qualquer embasamento cultural e/ou étnico por parte dos povos
que genuinamente carregaram – E CARREGAM – tal sangue e tradição.
Ainda
que de maneira eventual, a presença da cartomancia (Lenormand ou não) em
trabalhos genuinamente ciganos não elimina ou reduz os efeitos da indevida
apropriação que justificou mentiras seculares para a comercialização de um
oráculo que, em princípio, pautava-se em elementos deveras mais simples em suas
origens germânicas. Não é incomum, mesmo com toda a informação de que se
dispõe, a divulgação constante de livros e cursos que vendem as mais absurdas
questões acerca de Madame Lenormand e do povo cigano.
Katja
Bastos, na década de 1990, fez-se a mãe da “Escola Brasileira” de Petit
Lenormand em seu “Tarô Cigano”, sistematizando em obra escrita todas as
peculiaridades que se fizeram em solo nacional acerca da leitura e
interpretação das cartas aqui em pauta. Katja Bastos estabeleceu um trabalho
honesto, bonito e cabível dentro de seu contexto, aproveitando-se de suas
raízes étnicas e ancestrais. Porém, cabe frisar que, pela mesma influência da
matriz afro-brasileira, fez-se a associação entre os orixás – divindades
próprias da cultura iorubá e sua cosmovisão –, linhas (“falanges”) espirituais
de Umbanda e as 36 lâminas. O fenômeno caído em mãos indevidas e de sacerdotes
pouco cautelosos, chegou ao cúmulo de diagnosticar e validar “santos de
cabeça”, assassinando não apenas a proposta tradicional do distante “Jogo da
Esperança”, como também valiosos pilares das religiões afro-diaspóricas em
vários sentidos possíveis e imagináveis.
Cabe
aqui a reflexão: até onde devemos aceitar e propagar “novidades” impostas ao
sagrado pela mídia ao longo do tempo? Quais são os reais prejuízos –
históricos, culturais, sociais e espirituais – acarretados por tal processo? No
Petit Lenormand, são várias as cartas e combinações que denotam o poder da
tradição e da ancestralidade: “A Casa” (Rei de Copas), “A Árvore” (7 de Copas),
“Os Lírios” (Rei de Espadas), entre outros.
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Quer aprender
mais sobre as bases do Petit Lenormand em suas diferentes perspectivas e
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Pesquisa incrível com levantamentos extremamente necessários! Fiz um post sobre isso hoje.
ResponderExcluirObrigado! Neste caso o mérito é todo do Lucas haha
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