quarta-feira, 9 de novembro de 2022

PETIT LENORMAND: Do jogo da esperança ao baralho cigano

Por: Lucas de Yemọjá (Omíwálé)
Cartomante, umbandista e professor do método tradicional europeu de leitura do Petit Lenormand.




Originado do protótipo alemão – “Jogo da Esperança” de Johan Kaspar Hechtel – datado do final do século XVIII, o “Petit Lenormand” ou “Baralho Cigano” é exemplo cristalino da lógica mercantil aplicada à espiritualidade e suas variadas ferramentas. A tradição que permeia uma linhagem ancestral está fadada às adaptações e ressignificações decorrentes da necessidade de sobrevivência no tempo-espaço, especialmente no que tange ao mundo globalizado.

Mircea Eliade alegou que “a dialética do sagrado permite todas as reversibilidades; nenhuma ‘forma’ é exemplo de degradação e decomposição, nenhuma ‘história’ é definitiva”. Contudo, apesar da fluidez pela qual o fenômeno religioso permeia, há de se ponderar o quão aceitável ou não são determinadas nuances que a contemporaneidade assume diante do sagrado. O sacerdote Mario Filho, do Templo Espiritual Caboclo Pantera Negra, recentemente publicou:

Tradição não é costume; sendo assim, a tradição só se modifica de dentro para fora, nunca de fora para dentro. Tradição é oriunda do mundo espiritual, não da vontade humana e, portanto, somente os seres mantenedores desta tradição (e não outros) poderão fazê-lo.”

O mercado místico de oráculos, esotéricos e outras quinquilharias facilmente descartáveis em sua utilidade prática, apela constantemente para adaptar suas mercadorias de acordo com a busca de sua frágil clientela. Engana-se aquele que pensa ser esta uma estratégia recente. O “Petit Lenormand”, deck amplamente utilizado por vários cartomantes recebeu, em meados da década de 1840, o nome que lhe daria fama e prestígio para além do continente europeu.

Publicado com novos recortes e instruções, o baralho plagiado do jogo germânico aderiu ao nome de Marie-Anne Adélaïde Lenormand (1772-1843), aproveitando-se da morte desta que, sem sombra de dúvidas, foi a sibila e feiticeira mais famosa de seu tempo. Ampla publicidade foi angariada a partir de invencionices que associavam os supostos feitos de Lenormand ao baralho de 36 lâminas emblemáticas que se disseminava mundo afora.



Gravura colorizada de Madame Lenormand


Madame Lenormand, muito provavelmente, nem sequer obteve contato com o oráculo que mais adiante levaria seu nome através das gerações. Contudo, a mentira se consolidou através da repetição e esta, por sua vez, contemplou a formação de inúmeros cartomantes que logo passaram a aderir conhecimentos oriundos da cabala, da astrologia e de outros ramos místico-ocultistas que talvez remetessem à sibila. Logo, a proposta lúdica e simplista passou a adentrar mistérios rasos pautados em falácias que ditaram as “novas tradições” nada tradicionais.

Tal como creem as pesquisas historiográficas, o Petit Lenormand foi baseado em livros de emblemas e estruturas derivadas da tasseomancia/cafeomancia, sem qualquer ligação com correntes espirituais ou distorcidas origens ciganas. Estas últimas, aliás, apoiaram-se na concorrência desleal entre as editoras que disputavam a venda do mítico baralho que “havia previsto a ascensão e queda de Napoleão Bonaparte”. Aquelas que não puderam propagar a o lucro através de Lenormand, apropriaram-se do estereótipo cigano – profundamente reducionista e desrespeitoso – para ludibriar o público consumidor.

No Brasil, dadas as influências dos terreiros e da matriz afro-brasileira, o epíteto “cigano” ganhou maior espaço de disseminação e popularidade. O culto à linha do Oriente, tão deturpado pela noção de “arquétipo” das vertentes embranquecidas e menos tradicionais de Umbanda, aproximou o “Baralho Cigano” dos templos e das controversas entidades. O que nunca foi cigano, tampouco passou a ser em solo brasileiro. Muitas associações e práticas foram executadas e vendidas sem qualquer embasamento cultural e/ou étnico por parte dos povos que genuinamente carregaram – E CARREGAM – tal sangue e tradição.

Ainda que de maneira eventual, a presença da cartomancia (Lenormand ou não) em trabalhos genuinamente ciganos não elimina ou reduz os efeitos da indevida apropriação que justificou mentiras seculares para a comercialização de um oráculo que, em princípio, pautava-se em elementos deveras mais simples em suas origens germânicas. Não é incomum, mesmo com toda a informação de que se dispõe, a divulgação constante de livros e cursos que vendem as mais absurdas questões acerca de Madame Lenormand e do povo cigano.

Katja Bastos, na década de 1990, fez-se a mãe da “Escola Brasileira” de Petit Lenormand em seu “Tarô Cigano”, sistematizando em obra escrita todas as peculiaridades que se fizeram em solo nacional acerca da leitura e interpretação das cartas aqui em pauta. Katja Bastos estabeleceu um trabalho honesto, bonito e cabível dentro de seu contexto, aproveitando-se de suas raízes étnicas e ancestrais. Porém, cabe frisar que, pela mesma influência da matriz afro-brasileira, fez-se a associação entre os orixás – divindades próprias da cultura iorubá e sua cosmovisão –, linhas (“falanges”) espirituais de Umbanda e as 36 lâminas. O fenômeno caído em mãos indevidas e de sacerdotes pouco cautelosos, chegou ao cúmulo de diagnosticar e validar “santos de cabeça”, assassinando não apenas a proposta tradicional do distante “Jogo da Esperança”, como também valiosos pilares das religiões afro-diaspóricas em vários sentidos possíveis e imagináveis.

Cabe aqui a reflexão: até onde devemos aceitar e propagar “novidades” impostas ao sagrado pela mídia ao longo do tempo? Quais são os reais prejuízos – históricos, culturais, sociais e espirituais – acarretados por tal processo? No Petit Lenormand, são várias as cartas e combinações que denotam o poder da tradição e da ancestralidade: “A Casa” (Rei de Copas), “A Árvore” (7 de Copas), “Os Lírios” (Rei de Espadas), entre outros.

~

Quer aprender mais sobre as bases do Petit Lenormand em suas diferentes perspectivas e tradições? Entre em contato conosco através de nossos perfis no instagram @castroviejoterapias e @dstellamare para se informar sobre os cursos e oportunidades!

2 comentários:

  1. Pesquisa incrível com levantamentos extremamente necessários! Fiz um post sobre isso hoje.

    ResponderExcluir