Por Draco Stellamare
Memento Mori - Edwaert Collier (1640-1707) |
Na primeira parte deste texto
abordei conceitos e entendimentos que são necessários para uma abordagem mais
profunda do culto ancestral sob a ótica de minha tradição. Agora, tendo assimilado
uma ideia mais orgânica da ancestralidade, vamos discutir como se estrutura uma
prática de culto ancestral. Não é minha intenção fornecer um esquema pronto e
imutável, mas sim uma estrutura compreensível para que cada leitor possa
compreender o que é adequado fazer – dentro de uma miríade de
possibilidades de como fazer – e, tão importante quanto isso, o porquê
fazer.
Portanto, eu partirei do princípio, tomando por exemplo um leitor leigo que não esteja familiarizado com nenhuma forma de devoção ancestral equivalente ao que será aqui discutido. Mais adiante, a complexidade do culto pode aumentar à medida que os primeiros passos forem dados com sucesso. Espero que gostem!
Antes um aviso aos leitores...
Como já mencionado, este texto
é voltado a explicar a lógica e estrutura de um culto ancestral pelo viés da stregoneria
e da minha própria experiência com ela. Assim o redigi porque acredito que o mesmo possa ajudar as pessoas que não tem bons referenciais sobre ancestralidade e que
desejam iniciar o seu processo de culto, mas não estão inseridas numa tradição
espiritual que já o faça de forma adequada. Se você que está lendo for iniciado
numa tradição religiosa ou esotérica que possua um protocolo específico para o
culto ancestral, é muito importante que você siga primeiramente o que sua
tradição prescreve. Se este for o caso, deixe este texto apenas como uma
referência inspiradora, mas não modifique os ritos que você tenha aprendido de
forma hereditária – caso seja de uma família que mantém uma religiosidade
tradicional – ou nos quais você tenha sido propriamente iniciado. Tome como
primeira e mais importante referência seus iniciadores e o que a sua tradição
ensina a respeito, e agregue apenas aquilo que for conveniente e respeitoso
agregar.
Uma tradição possui simbolismo
e memória, e a ancestralidade familiar e iniciática zela pela continuidade mais
do que pela inventividade. Além disso, não é adequado tentar encher um copo que
já está cheio. A partir do próximo item, tudo que será proposto levará em conta
o “copo vazio”, isto é, que o leitor é leigo no assunto e tomará por esses
meios seu primeiro contato com o culto à ancestralidade.
Preparação – Limpeza e Discernimento
Um dos grandes perigos de
começar um culto ancestral sem estar com a saúde espiritual em dia é que antes
de ser ouvido e atendido pela sua ancestralidade você seja ouvido e atendido
por outras coisas. Pensando nisso, o primeiro passo recomendável é fazer uma
revisão de sua rotina espiritual, refletindo de forma crítica se há
possibilidades de você ter atraído seres espirituais mal-intencionados ou
oportunistas com práticas pouco criteriosas. Outro ponto que deve ser refletido
é se você se encontra em equilíbrio espiritual e mental suficientes para
conduzir um contato com a ancestralidade de forma adequada. Sobre o primeiro
tipo de equilíbrio, recomendo esse meu outro texto e esse video para que você
tenha uma ideia a respeito dos perigos envolvidos numa prática espiritual
ingênua e irresponsável, e possa questionar-se se as preocupações apontadas
recaem sobre sua vida ou não.
Somos semelhantes às pessoas e
aos seres com os quais mais convivemos. Se você estiver cercado de seres
espirituais problemáticos ou de restos espirituais insalubres será difícil
estabelecer um contato assertivo com a ancestralidade, devido à interferência
que eles podem causar, e à “sujeira espiritual” que pode se acumular ao seu
redor, te deixando cego e surdo para a ancestralidade. Se achar que este pode
ser o caso, uma pausa nas práticas espirituais que manteve até então, e uma
rotina de purificações bem-feitas podem ser indicadas. Caso não saiba como
realizar banhos de limpeza, defumações e outras práticas necessárias para
limpeza espiritual, procure o auxílio de alguém que saiba antes de começar o
culto propriamente dito. Este passo é extremamente importante para aqueles que
não sabem muito bem o que estiveram fazendo até aqui. E sim, eu estou falando
exatamente com você que se afirma um magista superdesenvolvido na internet, mas
que sempre fez e ainda faz as coisas no improviso ou costurando conceitos de
fontes distintas. Recomendo que você tenha especial cuidado – além de carinho e
respeito por si mesmo – ao refletir sobre este ponto. Essa “desintoxicação”
prévia pode ser o fator determinante para decidir se o culto ancestral que você
começará será bem-sucedido ou se ele será apenas mais um gerador de problemas em
sua vida.
Caso você precise apenas de uma
higiene espiritual básica, deixarei nesta página algumas sugestões que podem
ser úteis. Situações mais complexas pedem um conhecimento mais assertivo e mais
complexo. Não superestime sua capacidade de resolver as coisas caso esteja
inseguro!
Além da questão espiritual ou
“energética” propriamente dita, gaste algum tempo refletindo suas relações com
seus familiares e com aqueles que já se foram. Antes de lidar com suas
presenças, influências e memórias de forma direta é adequado que você tenha ao
menos uma ideia inicial do quão problemática é a sua relação com eles, e a
partir disso busque dar tratamento apropriado aos problemas que existirem
dentro de você. Estou falando de análise pessoal, terapia, cuidado com a saúde
mental através de métodos profissionais com os quais se sinta mais à vontade, e
também do desenvolvimento de uma autocrítica sobre como você tem agido em
relação aos seus. Todos nós podemos ter frustrações, mágoas e rancores ligados
à memória familiar, e acreditem em mim quando digo que antes destas coisas surgirem
e tumultuarem o seu culto ancestral é melhor que comecem a ser enfrentadas no
divã de um terapeuta.
Quando você se sentir pronto,
limpo de influências que podem atrapalhar o processo e emocionalmente preparado
para estar em contato com a memória ancestral, você passará para a parte mais
basilar de todas: a devoção doméstica.
– ALTAR DOMÉSTICO –
Elementos essenciais e primeiros
entendimentos
Em minha tradição o ponto
central do culto ancestral é o focolar, o fogo sagrado da casa, mantido
num altar erigido especialmente para ele e para os espíritos mais importantes
da família, usualmente na cozinha ou em outro lugar central da residência. Em
tempos pretéritos, este altar era apenas uma cavidade chamada larín, na
parte inferior da lareira que ficava no centro das casas friulanas, onde os
alimentos eram preparados e as pessoas se aqueciam nos rigorosos invernos. Com
a vinda para o Brasil e o passar das gerações, o focolar tornou-se o
fogão à lenha e depois uma simples vela mantida no altar doméstico que
substituiu o larín. No altar da cozinha a maior parte das rotinas
devocionais à ancestralidade ocorrem em paralelo à devoção aos seres divinos
cultuados pela tradição da família – em nosso caso os santos e demais figuras
do universo católico folclórico.
Senhora friulana alimentando focolar. Fonte: Museu Etnográfico do Friuli em Udine. |
Entre os reconstrucionistas
romanos e os praticantes de stregoneria ligados à retomada politeísta, a
devoção ancestral é realizada no lararium, o altar dedicado aos deuses
de devoção familiar e aos Lares do Cultus Deorum. Já na espiritualidade
popular eslava um pequeno ponto de entrega de oferendas é mantido próximo ao
fogo da lareira, ao fogão ou à porta da cozinha, onde o Domovoi (o
Pequeno-Avô) é cultuado. Como já discutimos na parte teórica deste texto, cada
tradição mágico-religiosa que contém um culto ancestral possui seus gênios
familiares próprios e as metodologias próprias para reverenciá-los nos seus
respectivos altares domésticos.
Antes de iniciar suas devoções,
busque refletir qual a melhor abordagem possível ao conceito dos gênios
familiares considerando a sua própria ancestralidade. Se as últimas gerações de
sua família são católicas, um altar nos moldes do catolicismo popular que
contenha os elementos que abordarei a seguir pode ser a melhor escolha. Já se
você tiver ancestrais de outras vertentes religiosas é recomendável estudar
como se organizam as devoções ancestrais nessas vertentes, se existirem, e
buscar aproximar ao máximo a sua devoção daquilo que tradicionalmente seria
feito por seus ancestrais se estivessem vivos. Isso envolve aprender as orações
dedicadas aos falecidos e à harmonia familiar que existam no meio religioso
deles. Pense que aqui alguma noção de continuidade é importante, ainda que essa
continuidade seja apenas simbólica – uma expressão sua dizendo à Mansão dos Mortos
que você valoriza a história de seus antepassados. Buscar a orientação de
pessoas que estejam nestes caminhos percorridos por seus ancestrais, ou
adentrar você mesmo estes caminhos, é uma forma segura e assertiva de aprender
sobre isso.
Nos casos em que
deliberadamente NÃO for uma escolha seguir as linhas gerais da religiosidade de
seus antepassados, seja por sua indisposição sua com aquela crença além do
limite de tolerância ou seja por ser uma crença que é antagônica a qualquer
compreensão sobre culto ancestral – como seria no caso de uma longa linhagem de
protestantes calvinistas – uma saída temporária é se ater aos elementos
basilares que eu descreverei a seguir (e neste caso ficar muito atento aos
sinais que indicam se o culto está sendo bem aceito ou não). Embora o Brasil
esteja se tornando um país evangélico a uma velocidade assustadora, esse é um
fenômeno relativamente recente quando pensamos a nível ancestral. Ainda são
poucas as famílias brasileiras que possuem mais do que três gerações
frequentadoras de igrejas protestantes, de modo que a maior probabilidade é que
antes disso os ancestrais da maior parte dos brasileiros se definissem como
católicos, ou fossem membros de outras religiosidades minoritárias que aqui
sobrevivem e que não raro se relacionam com o universo popular católico de uma
forma ou de outra. Além disso, ancestrais budistas, candomblecistas ou
umbandistas, muçulmanos e judeus, comuns em nossa terra, têm todos algum campo
de reverência tradicional aos mortos (ou ao menos à sua memória) que podem ser compreendidos.
Exemplo de altar ancestral. Fonte: Pinterest / georgiaconjure |
Para poupar muitas reviravoltas
neste texto, vou ensinar os elementos basilares que nossa tradição compreende
necessários ao altar doméstico. Eles são compatíveis com a realidade religiosa
do catolicismo popular, e são relevantes e úteis ainda que você não tenha um focolar
como o nosso. As adaptações que eventualmente sejam necessárias em função de
seus ancestrais pertencerem a uma outra realidade religiosa devem ser um campo
de estudo antes de ser um campo de experimentação prática. Acredito que se ater
ao básico que será aqui abordado, ao menos no início, sem grandes elocubrações,
seja uma boa forma de começar numa ocasião como essas. Indo direto ao ponto...
Três elementos iniciais para o
altar doméstico são indispensáveis: o fogo, a água e um recipiente
para ofertas de bebida e alimento.
Ao iniciar seu culto ancestral,
o recomendável é que você estabeleça um local na cozinha ou em outro ambiente
que seja central à casa, e onde possa acender com segurança um fogo dedicado à
ancestralidade (supondo que, como a maior parte da população, você não disponha
de um fogão à lenha ou uma lareira). Este fogo pode ser mantido de forma
perpétua se houver segurança para tal. Nada poderia ser pior para o seu culto
ancestral do que um incêndio na sua casa, então mesmo quando a chama não for
conservada de modo perpétuo, utilize SEMPRE copos de vidro para
velas que impedem incêndios ou lanternas de metal capazes de isolar eventuais
chamas, e não acenda um fogo em locais onde coisas inflamáveis podem entrar em
contato com ele.
Exemplos de altares do catolicismo folclórico a santos e a ancestrais. Fonte: Toverij & Spokerij. |
Algumas sutilezas sobre o fogo
são levadas em consideração. Sendo um fogo perpétuo, a chama deve ser passada
de uma vela à outra quando necessário, sendo o fogo convidado a se preservar na
nova vela onde foi aceso e a abandonar o pavio anterior (que será soprado). Se não
for possível – ou se você não se sentir seguro com isso – esse fogo deverá ser
adormecido no pavio da vela ou lamparina onde foi aceso ao final de cada ritual,
sempre abafado com um abafador ou uma colher, e nunca soprado. Sempre se sopra
o fogo que não se deseja manter adormecido, e se abafa o que se deseja
adormecer para reacender futuramente. Todas as chamas acesas no altar devem ser
dedicadas a alguma função, e você pode fazê-lo desenhando uma cruz sobre elas
com os dedos indicador e médio da mão direita, ou simplesmente estalando os
dedos em X sobre o fogo, enquanto diz em voz alta a quem ou ao que dedica
aquela luz.
A água é oferecida em um copo
ou uma taça e é especificamente dedicada a extinguir a sede e a exaustão dos
antepassados. O oferecimento da água pode ser feito da mesma maneira do
fogo, ou mais tradicionalmente sendo inclinado o recipiente na direção das
imagens religiosas que você porventura possua no altar, como uma cruz, uma
imagem de Maria ou de uma divindade reverenciada por sua ancestralidade. Em
minha tradição há vasos consagrados que são enchidos com água para a Mari/Mater
e o Pari/Pater, os anjos da mãe e do pai, e que são também dedicados a todos os
anjos que acompanham as pessoas da família. Outras ânforas com água e outros
elementos podem ser consagradas aos Antigos, mas as ânforas da Mari e do Pari
são especiais, pois representam a alma no altar familiar, enquanto o fogo
representa o espírito e a comida partilhada com os ancestrais representa o
corpo. Em um culto desvinculado de nossa tradição, a recomendação é que ao
menos a água aos antepassados seja mantida, e que as ânforas dos gênios
familiares deem lugar aos objetos, representações e ofertas adequados aos seres
espirituais vinculados à realidade de sua ancestralidade. Caso não saiba a
quais seres essas ofertas podem ser feitas, eu recomendaria manter uma imagem
dos santos/divindades de devoção das gerações passadas de sua família. Muitos
lares católicos no Brasil preservam o costume de fazer pequenas oferendas a São
Benedito, Santo Antônio ou São José pela fartura e proteção da casa. Certamente
em sua família ou na cultura do local onde nasceu e cresceu você será capaz de
encontrar algum referencial simbólico apropriado para começar.
O terceiro elemento inicial
indispensável é um prato ou uma tigela no qual você possa partilhar o seu
alimento com os ancestrais. A partilha do alimento é uma das práticas mais
antigas e mais difundidas quando se fala em culto ancestral. Os romanos lançavam
parte de suas refeições ao fogo no lararium para oferendar os deuses e
os espíritos domésticos. No focolar friulano original, uma pequena parte
da comida preparada para alimentar a família era oferecida no larín,
sendo depois consumida pelo fogo e reduzida a cinzas junto a outros elementos. No
recipiente onde se oferta comida também podem ser oferecidas bebidas, ou se
preferir estas podem ser ofertadas num copo específico para essa finalidade, distinto
daquele que contém a água destinada aos antepassados.
As oferendas têm um objetivo e
uma função muito precisa: elas são meios pelos quais podemos estabelecer trocas
de força vital (ou “energia” se preferirem) com o mundo espiritual. Fazemos
ofertas de fogo, água, alimentos e outros inúmeros elementos ao divino para que
este estabeleça uma troca conosco, conferindo as bençãos que necessitamos caso
os requisitos esperados da oferenda – e das circunstâncias – sejam cumpridos.
Dar uma parte da sua comida aos ancestrais é uma forma de estabelecer com eles
trocas de bençãos e a circulação de força vital entre você e eles. Essa
circulação é o que favorece em amplos sentidos as benesses conferidas pela
ancestralidade.
Exemplo de altar ancestral. Fonte: Pinterest. |
Não é necessário preparar um
prato a mais para os ancestrais durante as refeições, como alguns fazem em
determinadas celebrações sazonais. Na tigela do altar doméstico se deve
oferecer uma pequena porção – uma colher ou um pequeno punhado – de tudo aquilo
que for preparado pela família no dia a dia para ser consumido. Ao oferecer o alimento,
dedique-o ao fogo sagrado de sua ancestralidade (você pode entendê-lo nesse
momento como a representação da presença do divino em sua casa e família), aos
Antigos/mortos poderosos de sua linhagem e às almas de seus antepassados, agradecendo
e pedindo aos ancestrais aquilo que você deseja. Você pode oferecer uma única
porção a todos estes seres, bem como a gênios familiares de sua prática aos
quais seja cabível fazê-lo, ou pode oferecer uma porção para cada tipo de ser
envolvido, se intuir que isso é adequado no momento. Apenas tome cuidado com
exageros... Ao oferecer uma bebida, seja em libação no mesmo prato ou num copo
ou taça separado, faça o mesmo procedimento. Tenho por costume oferecer o
alimento da forma mencionada, e também mantenho uma caneca de vidro decorado com
borboletas (que representam os Antigos) na qual ofereço café todas as manhãs (e
eventualmente bebida alcóolica) aos Antigos e antepassados de minha casa. O
café é uma oferenda preciosa para as linhagens ancestrais que fizeram da lavoura
desse fruto o seu sustento, como a minha. Ao abordar a rotina de culto
específico aos ancestrais eu tratarei este assunto de forma mais aprofundada,
assim como a duração das oferendas e como descartá-las.
Instalando e mantendo o altar doméstico
Embora eu já tenha descrito os
principais elementos iniciais do altar doméstico de culto ancestral, ainda é
preciso falar sobre a sua elaboração e adequada manutenção. O altar dedicado ao
culto ancestral pode (talvez até deva) conter fotografias dos antepassados
mais importantes de sua família, imagens sacras vinculadas à crença da linhagem
– santos de devoção da família ou flagrantemente vinculados à sua história são
recomendadíssimos – e objetos que pertenceram aos ancestrais relevantes. Também
é recomendado manter amuletos consagrados para proteção ou fartura em sua
tradição mágico-religiosa, para que suas bençãos reverberem a coletividade
familiar. Ofertas votivas e objetos oferendados aos ancestrais para que eles
intercedam por você também podem ser dispostos (com cautela para não acumular
coisa demais) no altar doméstico. É óbvio que nem todos estes itens são
adequados de manter num espaço na cozinha, onde podem terminar umedecidos ou
engordurados, de modo que você precisa ter bom senso para escolher o que vai
incluir no seu altar a depender de onde ele se localize em sua casa. Também é
importante perceber que se você erigir seu altar na cozinha (pelo simbolismo
tradicional e profundo desse ato) isso não te impede de colocar homenagens e
representações de sua ancestralidade em outros pontos da casa. Sobre essas
práticas, que se relacionam à manutenção das memórias, falaremos melhor mais à
frente.
Altar ancestral siciliano que une os elementos básicos, imagens religiosas e fotografias dos antepassados. Fonte: jesterbear. |
O altar doméstico onde arde o
fogo do lar e os ancestrais são oferendados torna-se para todos os efeitos o
ponto mais sensível (e mais forte) da casa, e uma representação dela mesma. É
adequado que antes de montá-lo o local seja propriamente purificado e abençoado,
o que pode ser feito com água benta e fumigação de ervas como alecrim, erva-doce
ou hissopo – conhecida também como alfazema-de-caboclo –, acompanhadas de
orações como a reza de São Bento, o credo e o salve rainha, ou salmos
apropriados ao livramento e purgação, como 51, e à proteção, como 23 ou 91.
Depois de montado, é recomendável que ele seja rotineiramente aspergido com
água benta e que ervas propiciatórias sejam queimadas em oferenda no fogo do
lar, sendo utilizadas nessa ocasião para incensar o próprio altar e se
necessário as proximidades. Tudo que é queimado no fogo do lar é para ele
uma oferenda. As cinzas dessa queima podem ser utilizadas para bençãos das
mais diversas se conjuradas da forma apropriada, e devem ser guardadas com
cautela pois são um testemunho poderoso do espírito da casa e da família.
No altar se pode manter a palma
santa do Domingo de Ramos (por nós usada tanto como oferenda ao fogo do lar
quanto para defumações), arranjos de flores da estação ou do gosto da família, e
crisântemos quando se aproximar a data festiva dos mortos. Caso deseje, as
devoções que você optar por manter em respeito às suas tradições familiares
podem ser feitas neste mesmo altar. Algumas das orações que realizo diariamente
à Virgem Maria e aos demais antigos, anjos e santos de minha tradição são
feitas neste altar – geralmente com a intenção de que suas bênçãos atinjam a
coletividade de meus antepassados e de meus familiares vivos.
Altar doméstico italiano onde o culto aos santos ligados à família é feito. Fonte: jesterbear. |
Além destes elementos
essenciais e opcionais mencionados, é possível conservar no altar de culto
ancestral recipientes que contenham terra ou poeira da sepultura de seus
antepassados, ou as suas cinzas (caso tenham sido cremados). Alguns mais apegados
a como as coisas eram feitas antigamente, e pouco tementes às leis, podem
sentir-se inclinados a manter os ossos de ancestrais poderosos em seus altares
– o que NÃO RECOMENDO, pois além de poder ter implicações legais isso
exigiria todo um preparo emocional e magístico para o manejo espiritual destes
restos que a maioria das pessoas de hoje não é capaz de dar conta (por vários
motivos que não caberia aqui discutir). Na alternativa mais branda, que são a
terra ou poeira da sepultura, alguns cuidados são necessários e pretendo
esmiuça-los mais à diante neste texto quando abordarmos a visitação ao
cemitério. De todo modo, caso esse seja um limiar que você não se sente
plenamente seguro em cruzar, o melhor a fazer é deixar a terra dos mortos com
os mortos, para que o medo ou o desconforto não criem vulnerabilidades em seu
culto.
O culto ao fogo do lar e aos gênios
familiares
É impossível dissociar as
ofertas e orações feitas aos ancestrais e gênios familiares da relação com o
fogo do lar. Idealmente, deve-se saudá-lo e então proceder com as orações e
ofertas aos ancestrais todos os dias, mas sabemos que a vida pode ser corrida e
não haver tempo hábil para isso, especialmente para quem está começando.
Contudo, é necessária ao menos uma saudação diária ao altar doméstico,
contemplando os seres nele reverenciados. Os melhores horários para isso são o
amanhecer e o entardecer, quando o sol não está muito quente e a fronteira
entre dia e noite é rompida. Apesar dessa preferência, a ancestralidade pode
ser saudada em qualquer horário em que haja contexto ou necessidade.
Além das saudações e orações
diárias, é recomendável que se determine um dia da semana no qual as orações e
oferendas serão feitas com mais esmero. É comum que esse dia seja a sexta-feira
(dia das almas no catolicismo popular) ou o domingo (devido à missa), mas
outros dias relacionados às Almas podem ser aproveitados.
As saudações ao fogo sagrado da
casa são feitas – tal como todas as intenções e chamados – numa combinação de
orações tradicionais, preces intuitivas e espontâneas, e as palavras de poder
já estabelecidas da tradição. O essencial é que uma forma de se referir à
coletividade de seus ancestrais seja definida, exaltando ou não os mortos
poderosos dentre eles, e que essa forma definida seja mantida com consistência até
se tornar uma expressão reconhecida pelo mundo espiritual. Se o fizer
adequadamente, em algum tempo sentirá a força que se apodera desses dizeres...
Em nossa casa utilizamos a expressão “antigos, anjos e santos” como um
denominador comum para toda a ancestralidade e os seres divinos e aliados a
ela. Um exemplo que você poderá usar como referência é a estrutura de preces
diárias e semanais que deixarei ao final deste texto. Aprender a rezar é muito
importante para a construção desse culto ancestral. No meu entender, é
necessário tanto aprender a repetir orações tradicionais de forma orgânica
quanto aprender a expressar a si mesmo através da prece espontânea. A justa
combinação de ambas as coisas auxilia o leve estado de transe que é ideal para
o início de uma comunicação com os seres espirituais, sobre a qual falaremos
mais a diante.
Oferenda ao focolar, realizada fora do altar doméstico. Foto particular. |
O aspecto mais fundamental da
relação com o fogo sagrado do lar é que ele seja abastecido de oferendas
constantes, como as de ervas secas, elementos no óleo da lamparina (se o caso)
e até madeiras adequadas (quando possível). A oferenda que deve ser mais
constante, contudo, é a do fôlego daqueles que o cultuam. A oferenda do
fôlego é uma doação de força vital, que se faz ao final de todas as preces e
orações, expirando calmamente em direção ao fogo para que o hálito carregue uma
pequena parcela de sua vitalidade para as chamas. Em retorno, o fogo retornará
essa vitalidade até você através do fortalecimento de seus ancestrais, que o
abençoarão. Não há como ensinar como fazer esse processo, ele deve ser sentido
e feito da forma mais natural possível para cada pessoa.
– ANTEPASSADOS –
Oferendas adequadas à Árvore de Sangue e
Espírito
O culto aos antepassados, assim
como ao fogo sagrado do lar, pode ser feito diariamente de modo mais simples e
semanalmente de forma mais completa, tendo o cuidado de renovar a água
oferecida aos ancestrais de sua linhagem. Anualmente, é interessante que um
processo de oferendas e honrarias mais robustas seja realizado, sendo a época
do Dia de Finados uma das melhores para essa finalidade. Diariamente, é
recomendável que o nosso alimento seja compartilhado com os antepassados na
tigela ou prato do altar, de modo que a cada nova refeição a presença da
ancestralidade em sua casa seja nutrida. Além do compartilhamento dessa comida
que preparamos com nossas próprias mãos no dia a dia e da água que é oferecida
ao menos semanalmente, seguem abaixo algumas sugestões de oferendas adequadas à
coletividade dos antepassados, que podem ser entregues diariamente,
semanalmente ou em qualquer frequência que lhe pareça apropriada segundo sua
disponibilidade de tempo e recursos.
Pão: Nas suas formas mais simples, é tido como alimento
primordial, representando o corpo divino e a própria terra. É adequado para
nutrir as almas e traz para elas uma promessa de continuidade, devido à
essencialidade desse alimento na dieta de grande parte dos antepassados
humanos. Em suas formas mais complexas, ou como bolos e pães recheados ou
confeitados, carrega consigo significados de celebração e alegria.
Vinho: É o sangue divino e o sangue da terra. Embora bebidas
alcóolicas sejam oferendas que não são recomendadas para todos os mortos, o
vinho é uma oferenda vivificante para a coletividade dos antepassados, tendo
ligação com a força vital que anima os vivos e os mortos poderosos. Além disso,
é uma bebida com profundos simbolismos religiosos que tende a reforçar os laços
dos antepassados com as divindades a eles ligadas.
Azeite de oliva: É um óleo considerado sagrado, um dos
principais ingredientes para a culinária mediterrânea e para a confecção dos
óleos de benção. O azeite pode ser oferecido como ato de unção no altar, ou por
meio de libação, ou ainda através de uma lamparina. Tem o efeito de condensar
bençãos desejadas através das orações no altar ancestral e é um dos insumos que
pode acalmar os antepassados revoltados.
Mel: É o tesouro das abelhas, de essência primaveril, ligado à
Mãe Divina. O mel possui algumas propriedades: ele adoça, estimulando
concórdia, afeto e amor entre os membros da árvore familiar; ele purifica de
más intenções, afastando parasitas e por vezes contribuindo para a cura de
feridas carregadas pelos mortos; e tem também a finalidade de nutrir e
fortalecer. Uma das formas de aumentar a força de palavras de benção em nossa
tradição é rezar após colocar uma colher de mel na língua.
Leite: Possui o significado da nutrição e do cuidado. É uma bebida
que também é alimento, atrelada à sobrevivência durante as dificuldades e ao
crescimento. O leite de cada animal tem nuances de significado um tanto
distintas, e o leite natural é melhor para oferendas do que o leite
industrializado.
Vela ou lamparina: Aqui o essencial é a chama, razão pela
qual não endosso a substituição pelo uso de lâmpadas e outras luzes
artificiais. O fogo é um elemento sutil e potente, que se relaciona com a
quintessência, a força divina em seu estado mais puro, que arde no sagrado
coração. Oferecer fogo à linhagem ancestral adequadamente é fortalecer o
espírito e a ligação entre ele e as almas de uma árvore de sangue e espírito. O
fogo une, ilumina, orienta e também transforma pelo calor. Você pode dedicar
velas ungidas com azeite ou óleo bento aos ancestrais quando realizar suas
oferendas periódicas, e pode também acender um fogo maior a eles dedicado,
queimando nele elementos propiciadores.
Dinheiro: Embora não tenha serventia econômica para quem já se foi, o
dinheiro carrega algum valor espiritual. Especialmente moedas de cobre são
queridas aos mortos porque reverberam prosperidade na sua caminhada no além. É
comum “pagar as almas” em diversas ocasiões nas quais algumas moedas são
deixadas em locais de poder dos mortos, mas a oferta de notas de dinheiro
também pode ser feita. A diferença é que as notas são deixadas por um, três ou
sete dias no altar e depois são utilizadas para algum gasto em prol dos
interesses dos ancestrais, ou doadas para instituições vinculadas a esses
interesses, como igrejas ou outro tipo de associação religiosa.
Flores: As flores são uma oferta simbólica de afeto e consideração.
O mais tradicional é oferecer crisântemos aos falecidos, mas rosas, gérberas,
cravos e outras flores muito apreciadas pelos vivos também podem ser ofertadas.
É necessário evitar flores que possuam veneno ou propriedades alucinógenas ou
entorpecentes significativas, pois elas podem causar desequilíbrios à árvore
ancestral. Nada de oferecer papoula-negra ou flor de trombeta aos antepassados!
Essas coisas possuem outro uso que não a nutrição da ancestralidade. Além
disso, recomendo que atente-se às correspondências que cada flor e cada cor de
flor podem possuir para o contexto cultural e social de seus ancestrais.
Incenso ou ervas secas: A fumigação de ervas secas ou incenso é
muito proveitosa para qualquer culto aos seres espirituais – excetuando por
óbvio aqueles que possuem restrições quanto à fumaça ou aos elementos queimados
para produzi-la. Acredita-se que a fumaça auxilia o contato com o mundo
espiritual, sendo imbuída de significado e de poder por nossas orações e atos
de magia. Aos antepassados, é adequado ofertar incensos de uso litúrgico como
olíbano, mirra e benjoim, e queimar ervas com propriedades que purificam e agregam
bênçãos, como alecrim, lavanda, entre outras tantas. Estudar a composição de
incensos e a botânica oculta auxilia muito a fazer boas escolhas. O que deve
ser evitado são ervas tradicionalmente usadas para banir os mortos ou para
conjurá-los, como as que serão mencionadas numa seção posterior desse texto.
Você não deseja transformar suas preces em um ritual capenga de necromancia.
Ervas frescas: Servem ao mesmo propósito das flores, e
ofertá-las estende suas propriedades aos antepassados. Podem ser oferecidas
como um arranjo num vaso com água ou maceradas na água para aspersão ou uso num
borrifador. Vale para isso o mesmo tipo de cuidado que se deve observar em
relação à queima de ervas secas.
Grãos: Sendo sementes utilizadas na agricultura, possuem o
significado da prosperidade, do sustento e da nutrição. Podem ser preparados
como alimento a ser oferecido ou serem dispostos crus para depois serem
enterrados ou propriamente plantados, visando dar aos ancestrais mais força
para intervenção no mundo dos vivos.
Sangue: É uma oferenda de mesma natureza que o vinho, porém em
escala exponencialmente mais intensa. Sua utilização deve ser muito cautelosa
para que problemas advindos de um erro no direcionamento da oferta não causem
problemas difíceis de reverter. A oferta de sangue pode ser feita através de
duas principais formas. Uma é através do abate de um animal para alimentação da
família, sendo que parte do sangue é retirado para ser libado aos ancestrais
com o conhecimento apropriado de como fazê-lo. Outra é através do oferecimento
do sangue da própria linhagem, que o cultuador pode fazer ao furar ou fazer um
pequeno corte no dedo que representa o corpo ou no dedo que representa a alma.
Esse tipo de oferta é o mais sério de todos, de modo que não recomendo sua utilização
por pessoas não preparadas para tal. Fica aqui a menção apenas a título de esclarecimento,
já que não citei de propósito a forma correta de fazer tais oferendas.
Exemplo de oferendas aos antepassados. Fonte: Canal Indra Ali. |
Muitas outras coisas podem ser
oferecidas aos ancestrais, mas estas acima enumeradas são as mais básicas e usuais
que a tradição atribui ao coletivo dos antepassados, visando impactar a Árvore
de Sangue e Espírito. Existe muita polêmica nas redes sociais dos
interessados em bruxaria em relação ao tipo de alimento que se oferece – seja
aos mortos ou a outras entidades. Como já mencionei nesse texto, eu aprendi ao
longo de minha vida que toda oferenda é uma troca de força vital estabelecida
com algum ser, logo, por derivação lógica, a oferenda precisa ter força
vital para ser trocada. A quantidade de força vital presente no vinho, o
sangue da terra, é infinitamente superior à quantidade de força vital que se
poderia hipoteticamente extrair de uma jarra de refresco em pó com sabor de
uva. A quantidade de processos pelos quais a matéria prima dos alimentos passa
durante sua produção, assim como as características desses processos, são fatores
que determinam o quanto de força vital aquele alimento conservará. Enquanto
destilados simples, mesmo sendo produzidos industrialmente, carregam muita
força vital, o mesmo não se pode dizer de um pacote de biscoito recheado ou de
um punhado de chicletes. Isso não
significa que não se possa oferendar coisas “superprocessadas” caso elas tenham
algum significado positivo para os seres espirituais que o receberão. Mas não
se pode confundir oferendas que só têm valor estético ou sentimental com as que
têm valor espiritual verdadeiro. O primeiro tipo serve como algo acessório,
decorativo. O segundo carrega a essência e o propósito do que é de fato uma
oferenda. Recomendo que você se empenhe em entender a diferença, e como
instrumentalizá-la para aumentar a significância de suas oferendas ao invés de
esvaziá-las de potência.
Oferendas a um antepassado específico
Uma coisa é realizar oferendas
à coletividade de seus ancestrais, e outra um pouco diferente é oferendar um
antepassado específico. Neste segundo caso, você deverá levar em consideração
quem essa pessoa foi enquanto estava viva, o tempo decorrido desde o
falecimento e eventuais informações oraculares confiáveis que você tenha
recebido sobre como ela está depois de morta. Por exemplo, não é adequado que
se faça oferendas normais a um ancestral que está causando problemas por estar
revoltado ou perdido sem antes apaziguá-lo e encaminhá-lo através dos ritos apropriados
– normalmente oferecidos por sacerdotes de várias tradições. Se você tiver
motivos para crer que um ancestral seu que tenha falecido há pouco tempo está
nessas condições, o mais prudente é recorrer a quem disponha de meios de
diagnosticar a situação e auxiliar no encaminhamento do morto.
Depois da morte do corpo,
muitas almas passam por um processo árduo de purgação que assume diferentes
formatos a depender da crença e do contexto iniciático existente. Em nossa
tradição, concebemos que esse momento de purgação passa pelo atravessamento da
zona da Mansão dos Mortos conhecida como Purgatório, para a qual as almas
comuns se dirigem quando são devidamente encaminhadas para o “além”. Em algumas
tradições italianas se diz que o caminho dessas almas até o Purgatório é uma
ponte árida, quente e repleta de cacos e espinhos, conhecida como Ponte di
San Giacomo. Essa percepção, de que boa parte dos mortos atravessa um
caminho difícil de provações e purgações após a morte, é uma das principais
fundamentações para oferecer água, luz e alimento aos antepassados. Eles são
responsáveis por nossa existência nesse mundo, então é nosso dever ajudá-los na
jornada no mundo que vem depois desse.
Detalhe de obra sobre as Almas do Purgatório. Autoria não encontrada. |
O processo de “purgação” pode
durar menos ou mais, a depender das características do antepassado que passa
por ele. Apego excessivo ao mundo físico, problemas de ordem emocional,
maldições e conflitos de honra, integridade e caráter, podem aumentar a duração
dessa fase de transição. Em geral, o primeiro ano após o falecimento é o mais
difícil para as pessoas comuns, aquelas cujo nível de perturbação mental
e espiritual não é acima da média. Entre o fim do primeiro ano e o do terceiro,
quando normalmente o processo de decomposição dos restos mortais acelera, o
tempo percebido pelo morto passa a ser mais o do local do mundo espiritual onde
ele se encontra do que o do mundo físico, e a sua condição tende a melhorar.
Aos antepassados que faleceram
recentemente ou que por qualquer motivo estão numa caminhada mais difícil pela zona
purgante, o aconselhável é que as oferendas sejam de água fresca em
abundância, velas para iluminar o caminho, pão para alimentar na jornada,
orações propiciatórias como o Requiem e a encomendação de missas ou
outros rituais religiosos compatíveis com as crenças do morto e dos
descendentes vivos. Todas essas coisas servem para fortalecer e auxiliar as
almas recentemente desencarnadas a atravessar com mais recursos e disposição a
passagem. Neste estágio é recomendável que oferendas mais densas que podem segurar
o ancestral em nosso mundo sejam evitadas, a menos que o ancestral em questão
tenha dado claros sinais de ter sido elevado como um dos Antigos/mortos
poderosos da linhagem. Neste caso ele provavelmente terá livre trânsito entre o
mundo inferior e o nosso, e poderá receber o que melhor lhe aprouver.
Quando a fase delicada de
transição entre a vida e a morte e de purgação estiver concluída – o que
pode-se presumir após o decurso de algum tempo do falecimento ou por meio de
averiguação nos oráculos – as oferendas ao antepassado podem ser mais
condizentes com os seus gostos em vida. Relembre que toda oferenda deve conter
força vital, de modo que os elementos básicos já mencionados como oferendas à
ancestralidade servirão bem. Podem ser acrescentadas coisas que o falecido
gostava: pratos típicos da culinária da família que lhe eram caros, bebidas que
consumia com frequência, fumo (caso fosse fumante, aceso e baforado sobre as
suas imagens e demais oferendas), doces de sua preferência, perfumes que usava,
dentre outros. Apesar de eu não ter mencionado o CAFÉ como uma das oferendas
básicas à ancestralidade, ele é totalmente indicado à coletividade dos
ancestrais, por ser uma bebida que sempre teve alto valor social, apreciada por
quase todas as pessoas de gerações passadas e presentes. Em especial se você
tiver antepassados cuja prosperidade e a sobrevivência estiveram ligadas ao
cultivo deste fruto, a oferenda será uma ótima forma de honrar também a memória
familiar. O mesmo é valido para outros cultivos e manufaturas de alimentos e
bebidas. Reflita sempre o significado que cada substância ofertada tem à luz
das histórias de seus ancestrais. Agregue o que tem valor, e evite o que pode
suscitar traumas ou que carregue para os seus um grande peso negativo.
Almas no Purgatório. Obra mexicana de autoria anônima. |
Por falar em peso negativo, os
tabus pessoais de cada antepassado devem ser respeitados quando eles forem
oferendados. Não se oferece bebida alcóolica a um antepassado que tenha sofrido
com o vício a ponto de destruir a si mesmo. Não se oferece ao antepassado algo
que ele notadamente não gostava de comer ou beber enquanto vivo. Para todos os
efeitos, trate as oferendas aos antepassados como você trataria de alimentar um
familiar querido que ainda esteja entre os vivos. Algumas tradições proíbem o
uso de sal e tempero na comida que é especificamente direcionada aos mortos,
mas isso em nossa prática não é observado. Pelo contrário, a comida deve ser
tão temperada ou salgada quanto agradaria o paladar do indivíduo ao qual ela se
destina.
Além das ofertas de comida e
bebida, velas e fumigações, é adequado que se homenageie os antepassados
através das muitas formas de manter viva a memória familiar e através da
visitação aos túmulos. Essas e outras nuances serão objeto de uma parte
específica deste texto, mais à frente.
Descartando as oferendas
Não existe uma regra fixa com
relação a quanto tempo as oferendas demoram para ser consumidas pelos
espíritos. As porções de comida cotidianas oferecidas aos ancestrais podem ser
descartadas na refeição seguinte, mas as oferendas especialmente feitas com
mais acuro – seja para a coletividade dos ancestrais, seja para um ancestral
específico – não devem ser descartadas antes de 24h após o oferecimento. Em
alguns casos, pode ser que mais tempo seja necessário, mas para determinar isso
é preciso saber ouvir os espíritos e/ou consultar oráculos confiáveis.
De modo geral, evite deixar
oferendas por tempo o bastante para que fiquem estragadas. Comida estragada instiga
os Vermes, seres espirituais (também considerados seres físicos!) que vivem dentro do corpo humano e que a tradição entende que
podem ser muito nocivos ao organismo dos vivos quando são estimulados a se
locomover para fora do órgão em que habitam.
O descarte mais correto das
oferendas é sempre enterrá-las de acordo com os mesmos protocolos de oferendas
fora do altar que serão passados a seguir. Entretanto, isso seria burocrático
para pessoas que vivem em zonas urbanas. Não me parece errado descartar as
oferendas sólidas mais simples no lixo comum, e nem verter os líquidos em água
corrente. Em casos de oferendas especiais, contudo, pode ser mais respeitoso
realizar um descarte apropriado.
Oferendas fora do altar doméstico
Caso seja necessário oferendar
os ancestrais fora das proximidades do altar doméstico, isso pode ser feito a
partir de um método quase universal para oferendar os seres que residem no
mundo inferior. Deve-se buscar um local onde o solo esteja exposto, como o chão
de uma área de floresta, o chão de uma estrada de terra ou mesmo um pequeno
jardim que seja cultivado direto no chão. Ali você deve aspergir água benta ou
abençoada em forma de cruz, pedindo licença à terra para que você possa
oferendar os seus antepassados (isso pode ser feito tanto diretamente ao gênio
daquele solo ou em nome de uma deidade ctônica com a qual tenha um vínculo
suficientemente forte). Após sentir que sua atividade ali é bem-vinda, você
deve cavar um buraco de cerca de um palmo de profundidade, e então conjurar
como de costume os seus antepassados ou os Antigos que desejar oferendar.
Proceda com a libação de oferendas líquidas o depósito das oferendas sólidas no
fundo do buraco, fale o que desejar como se estivesse diante do altar doméstico
e então feche o buraco, recolocando a terra por cima das oferendas e
finalizando tudo com a aspersão de mais água benta ou abençoada, fazendo com
ela o sinal da cruz. É comum que algumas pessoas deixem um pouco da bebida
destinada à libação para marcar um círculo ao redor do buraco antes de abri-lo
ou quando ele for fechado, dedicando-o aos ancestrais ou aos espíritos do local.
Isso sempre me pareceu ser opcional, embora eu concorde que fazer ofertas de
paz aos espíritos locais antes de qualquer ritual seja extremamente
aconselhável. O essencial é que as oferendas sejam depositadas abaixo do nível
da terra, e que esta tenha aceitado recebê-las no local em que foram deixadas.
Não deixe velas ou brasas de fumigação
de incenso acesas na natureza.
Não enterre oferendas que não sejam
biodegradáveis.
Não faça esse ritual em um lugar se sentir
qualquer resposta negativa ou dúbia dos espíritos locais.
Ao finalizar o seu rito, leve
qualquer coisa que não pode ser deixada na natureza para terminar de oferecer
em seu altar doméstico, e saia sem olhar para trás.
– ANTIGOS –
Oferendas a um morto poderoso
O processo de “culto” aos
Antigos deve ser visto como o exercício de uma parceria entre você e um
espírito ancestral que pode influenciar diretamente em sua vida. Essa parceria
para a vasta maioria das pessoas já acontece de forma orgânica e menos
expressiva dentro dos limites de um culto ancestral “geral”, feito em honra à
ancestralidade como um todo. Entretanto, algumas pessoas podem sentir a
necessidade de tecer relações mais diretas e próximas com um ancestral
poderoso, de modo a se beneficiar mais atentamente de sua sabedoria e dos
auxílios que ele pode prestar. Para praticantes de magia, em especial os que
buscam uma abordagem tradicional, esse contato pode ser muito proveitoso desde
que feito de forma verdadeira e assertiva.
Undeniable nature - Autoria não encontrada. |
As oferendas dedicadas aos
Antigos são as mesmas que se pode fazer a um antepassado qualquer –
considerando seus gostos pessoais, suas vontades e aquilo que ele
momentaneamente precisa – mas acrescida de elementos que propiciarão uma troca
mais intensa de força vital. Essas oferendas podem ser bebidas alcóolicas,
cinzas enfeitiçadas, licores mágicos preparados com ervas rezadas e consagradas
para finalidades específicas, sangue sacrificial, dentre inúmeros outros. Aqui,
diferentemente do que acontece em relação à maior parte dos antepassados
comuns, é indicado que o próprio ancestral oriente quais as oferendas que ele
deseja ou necessita para estabelecer trocas proveitosas. Isso dependerá, por
óbvio, da capacidade oracular e de percepção “mediúnica” à sua disposição.
Também é necessário se certificar de que é realmente um morto poderoso de sua
linhagem quem faz estes pedidos, do contrário grandes danos podem advir de
alimentar seres oportunistas.
Quanto à maneira de oferendar,
exceto se o morto poderoso em questão tiver uma ânfora ou “assentamento” no
qual sua força espiritual resida, é possível seguir as mesmas formas e
protocolos que normalmente são seguidos para oferendar os antepassados.
“Assentamentos” e “ferramentas”
O termo assentamento é comum na
matriz afro-brasileira para se referir a objetos que concentram e fazem
circular a força espiritual de uma entidade, e que servem como um meio de
auxiliar a firmeza da sua manifestação no plano físico. Em especial quando
pensamos no assentamento de exus e pombagiras, por exemplo, estamos pensando em
objetos que cumprem essa função para um ser espiritual que é um morto poderoso
ou um ser não-humano. Em outras tradições também existem formas de produzir um
objeto no qual um ser possa “ancorar” a sua força espiritual para ter acesso
facilitado ao nosso mundo. Poucas dessas formas são tão complexas quanto os
caldeirões de kimbanda e os igba de culto de orixá, mas muitas
delas são plenamente funcionais para ao menos permitir que os vivos tenham uma
via de acesso facilitado para se comunicar com os ancestrais aos quais esses
“assentamentos” são consagrados.
Na stregoneria existem
as ânforas, vasos tradicionais do mediterrâneo, em alguns casos semelhantes ao
que nas macumbas do Brasil se conhece por “quartinhas” ou aos recipientes de armazenar
água conhecidos como “moringas”. A ânfora consagrada a um dos Antigos recebe
uma benção que permite que o ancestral se manifeste através da água que é
armazenada dentro do vaso. Sempre que é necessário chamar aquele ancestral, a
ânfora é aberta e as águas dentro dele recebem um pagamento. Em outras
tradições de bruxaria, é usual que alguns mortos poderosos recebam um corpo
simbólico através de uma boneca recheada de fetiches, e batizada com o nome e
as características do ancestral. Também já foram usuais em outros tempos as
urnas onde terra da sepultura do morto e fragmentos de ossos eram guardados,
formando uma extensão doméstica do cemitério, à semelhança do que o cruzeiro
das almas fazia em terreiros antigos da matriz afro-brasileira. Existem ainda outras formas de consagração de
objetos para que espíritos usufruam deles enquanto pontos de força. A maioria,
entretanto, requer um conhecimento iniciático mais profundo para que possa ser
manejada com segurança.
Consagração de ânfora segundo a tradição liventina. Foto particular. |
Ânfora exposta no Museu Etnográfico do Friuli, em Udine, com motivos decorativos ligados às Aganis, os espíritos da água. |
Além dessas formas de “ancorar”
a força dos Antigos para que possam ser chamados facilmente, existem objetos
que podem ser oferecidos a eles, e consagrados por meio de óleo santo e outras
oferendas, de modo que por meio da simetria que aquele objeto possui com outras
coisas no Cosmos o ancestral poderoso consiga instrumentalizar mais forças
espirituais em favor do seu descendente. A isso alguns chamam de “ferramentas”
ou “instrumentos”. São chaves, facas, tesouras, foices, cordas, leques, lupas,
ampulhetas... Toda uma sorte de objetos, imagens e símbolos que podem ser
requisitados pelos ancestrais para que eles tenham meios de aumentar a potência
da sua influência na matéria.
Memento mori - Autoria desconhecida. |
Caso você leitor tenha um dia a
capacidade e a oportunidade de ter uma relação próxima com um ancestral
poderoso, e o tipo de relação que isso implica tiver local em sua vida, é
possível que alguma forma rudimentar de consagração de objetos – seja para
ancoragem da força espiritual, seja para a finalidade de ferramenta – seja
transmitida a você. É importante relembrar que essas coisas não são
brincadeira. NÁO SE DEVE EM HIPÓTESE ALGUMA tentar imitar ritos tradicionais
visando essa finalidade se não estiver adequadamente preparado para isso,
dentro do que estipula a tradição em questão. E mesmo no caso de um
procedimento que seja ensinado verticalmente ou de algo que seja supostamente
acessível ao público: todo cuidado é pouco quando se está sozinho com o mundo
espiritual. Se sua ancestralidade precisar realmente se manifestar de
uma forma mais palpável através de tais consagrações, os sinais serão muitos,
serão duradouros e sobreviverão a eventuais investigações de pessoas
experientes e qualificadas que saibam o que estão fazendo. Na dúvida, busque
orientação oracular de pessoas capacitadas e confiáveis. Tenha paciência,
prudência, e bom senso!
– CAMPO SANTO –
Por que visitar o cemitério?
Como foi explicado na parte
teórica deste texto, os ossos são uma âncora para os mortos neste mundo
material. Isso equivale dizer que, de uma certa maneira, os ossos têm o
potencial de serem um “assentamento” rudimentar, natural. A maior
possibilidade de contato direto que temos com um falecido é recorrer ao local
de descanso de seus restos mortais. Assim, visitando o cemitério para honrar os
túmulos de nossos ancestrais estamos reforçando o contato que temos com eles. Além
da questão do contato com o ancestral propriamente dito, a visitação ao túmulo
reforça a memória familiar a ele atrelada. Uma das práticas recomendadas de
serem feitas – no mínimo anualmente – é a lavagem das lápides e o ato de
oferendar os túmulos dos antepassados com flores e outras ofertas (em especial
no Dia de Finados).
Cemitério iluminado pelas luzes das oferendas do dia de los muertos, no México. Fonte: US Today |
Em momentos nos quais a nossa
capacidade de interagir com nossos ancestrais pareça diminuta, existem estes
dois recursos para superar qualquer distância: um é o sangue que você
compartilha com os seus antepassados, e o outro é o contato com os túmulos onde
os ossos de seus ancestrais descansam. Através do contato com o túmulo, os
ancestrais recebem nossas orações mais facilmente. É também através do túmulo
que algumas das formas de tecer pactos com os espíritos podem ser exercidas.
Para qualquer finalidade,
entretanto, é necessário saber entrar e sair com segurança do campo santo, e saber
se comportar adequadamente enquanto estiver dentro dele.
Visitação segura ao cemitério
O campo santo ou cemitério é um
terreno sagrado, tido como uma extensão do mundo inferior na superfície. Apenas
e tão somente por esse fato, tire de sua cabeça qualquer ideia sobre ações
desrespeitosas em seu interior. A blasfêmia contra alguns símbolos religiosos
enquanto meio de magia é uma coisa que existe e possui contexto e fundamento
para acontecer em alguns caminhos, mas a blasfêmia contra os ancestrais no solo
em que estão enterrados é uma conduta aberrante que só pode levar à ruína.
Então em primeiro lugar: nada de rituais escalafobéticos, nada de libertinagem
e nada de bravata dentro do campo santo. A vida espiritual, para ser sadia, não
pode ser encarada como um surto de delinquência adolescente.
Todo cemitério possui um ou
dois espíritos tutelares. Eles costumam ser o primeiro homem e/ou a primeira
mulher enterrados naquele espaço, mas podem também ser os ancestrais mais
poderosos que encontraram ali o seu repouso final e, em alguns casos mais raros,
podem ser também gênios locais ou outro tipo de daimon. O importante é
saber que todo cemitério tem dono, e esse dono pode permitir ou negar que
determinadas coisas aconteçam em seu interior. A título de exemplo, há
cemitérios nos quais os espíritos regentes não permitem nenhum ato de magia
maléfica, e há outros onde estes atos são especialmente favorecidos. Outro
fator que influencia muito a “personalidade” de cada cemitério é a coletividade
dos mortos que estão ali enterrados. Conforme abordamos na parte teórica deste
texto, muitas almas permanecem por um tempo no cemitério após a morte e
diversas criaturas espirituais ligadas de uma forma ou de outra aos falecidos
também lá habitam. Embora existam todo tipo de mortos num cemitério, essa
coletividade de seres que lá coexistem pode ser mais pacífica ou mais conturbada,
influenciando o cemitério como um todo. É recomendável aprender pela observação
como funciona o ecossistema espiritual do cemitério em que seus ancestrais
estão enterrados.
Outra questão relevante são os
pontos de poder que existem dentro do campo santo. A maior parte dos cemitérios
brasileiros possui um cruzeiro onde as almas são cultuadas, e/ou uma capela
onde missas são realizadas. Esses locais são como núcleos para a força
espiritual que circula dentro do cemitério, e em toda visitação realizada é
recomendável que se preste respeitos a todas as almas nesses locais, como
oferta de paz. Um outro ponto relevante é a entrada do cemitério – tanto do
lado de dentro quanto do lado de fora. Nos portões existem seres específicos
que devem ser saudados para que a entrada e a saída sejam tranquilas.
Existem muitos protocolos
possíveis para entrar e sair do cemitério em segurança, a depender da tradição
e da cultura da qual estejamos partindo. A seguir deixo uma sugestão de
protocolo baseada em uma parte dos ensinamentos que recebi em minha instrução.
1.
Antes
de sair de casa, separe no mínimo três velas e/ou três moedas de cobre, e um
pouco de vinho ou azeite.
2.
Na
porta do cemitério, do lado de fora, à sua direita (que é a esquerda do ponto
de vista interno), faça uma reverência e peça licença para entrar no campo
santo.
3.
Ao
entrar, pare no primeiro túmulo à sua direita (que é a esquerda do ponto de
vista interno) e se ajoelhe, tocando-o e fazendo o sinal da cruz. Saúde os
donos do cemitério e todas as almas que ali residem, pedindo permissão para
entrar, transitar e depois sair em segurança, sem que nada de prejudicial o
acompanhe indevidamente. Deixe então uma oferenda nesse túmulo. Ela pode ser
uma sequência de preces (Pai-Nosso, Ave-Maria e Glória) acompanhada de uma
moeda de cobre e, se intuir necessário, uma pequena libação do vinho ou azeite.
PRESTE ATENÇÃO AO QUE SENTE: nesse ponto as almas podem se mostrar propensas
a conceder passagem segura ou indispostas a colaborar. Se a sensação que vier
for muito conturbada, pode ser melhor apenas prestar seus respeitos e não
proceder com nada muito complexo neste dia.
4.
Quando
chegar aos túmulos de seus ancestrais, conjure-os como de costume e faça na
lápide ou na terra do túmulo uma pequena – e discreta – libação do vinho ou
azeite, marcando o local em cruz, e deixe para eles uma moeda. Faça suas
orações e pedidos pertinentes, permita-se sentir quais as respostas que o local
retribui a você, e então vá embora sem olhar para trás.
5.
Antes
de deixar o cemitério, é recomendado que vá ao cruzeiro das almas, ao velário
ou à capela – em suma, ao ponto de poder mais evidente na estrutura do
cemitério em questão. Saúde os donos do cemitério e todas as almas com um sinal
da cruz ao se aproximar, e ofereça novamente uma libação discreta (no cruzeiro
ela pode ser feita próximo às velas ou nos cantos, e numa igreja apenas umedeça
os dedos e marque uma cruz em algum lugar sem causar estragos). Se o local
tiver um velário, é indicado que você acenda três velas: uma para seus
ancestrais, uma para todas as almas ali enterradas – ou todas as Santas Almas –
e uma terceira vela para a Morte – em cujo campo sagrado você está – pedindo
para que ela tarde a vir encontrá-lo e que quando o fizer, que seja
pacífica. Saia do local da mesma forma que entrou, mas virado de costas.
6.
Dirigindo-se
à saída, pare novamente no primeiro túmulo reverenciado e dedique novas orações
em agradecimento, pedindo novamente que nada de mau te acompanhe para fora
daquele espaço e despedindo-se dos donos do cemitério e das almas que lá
residem. Deste ponto em diante, ande de costas olhando para dentro do cemitério
até que esteja do lado de fora do portão. Se a distância for muito grande, você
pode andar normalmente e então virar-se e dar os últimos nove passos do
percurso dessa forma. Ao finalmente sair e se virar, não olhe para trás até
chegar em sua casa.
7.
Antes
de entrar em casa, tire os sapatos e bata-os três vezes no chão da calçada para
tirar a poeira do cemitério da sola de seus pés. Não vista mais o calçado antes
de lavá-lo bem.
Estes são os passos mais
básicos para garantir uma visita segura ao campo santo. Há amuletos e insumos
que podem ser carregados, ou soprados na entrada e na saída do cemitério para
garantir que nada problemático te persiga, caso seja uma situação mais
arriscada. As ervas que espantam os mortos podem ser usadas para esse fim, tal
como cinzas de exorcismo misturadas com sal. Outra precaução possível é tomar
um banho de ervas de proteção antes de sair de casa, e um banho de limpeza ao
retornar.
Cemitério Fontanelle em Napoli. Fonte: Napoli da Vivere. |
Perigos e pontos de atenção
Os primeiros e mais relevantes
riscos de se visitar o cemitério são os que envolvem a violência urbana. Muitos
cemitérios por aí a fora estão em triste estado de conservação. Com pouca
vigilância, assaltos, furto de partes dos túmulos e até outros crimes piores
são coisas possíveis de se encontrar. Por isso, programe-se para ir ao
cemitério em horários de maior luminosidade e se possível em datas nas quais
ele não esteja totalmente deserto. Enquanto estiver orando e fazendo suas
ofertas, mantenha atenção aos arredores. Os vivos são em muitos aspectos mais
perigosos do que os mortos!
Cuidando de sua segurança
física, é necessário também ter cautela em relação a alguns perigos
espirituais. Nem todos os mortos de um cemitério são amistosos ou inofensivos.
Assim como existem túmulos nos quais almas santas respondem com graças, existem
túmulos onde almas amaldiçoadas e hostis residem. Além dos mortos hostis que
podem ser nocivos a alguém que pise ou interaja de outra forma com seu local de
“descanso”, existem seres espirituais de natureza vampira e hedionda que fazem
morada em túmulos e outros espaços destinados aos mortos. Como foi explicado na
parte teórica, além da possibilidade do nascimento “natural” destes seres, diversas
tradições bruxas possuem conhecimento sobre como transformar uma alma vazia em
uma dessas criaturas predadoras, e sobre como utilizá-la para seus interesses
uma vez que a transformação ocorra. Por sorte, muitos destes seres se tornam
reclusos durante o dia ou ficam aprisionados em suas tumbas até que a ordem de
um eventual mestre o liberte. Mesmo assim, não exagere em sua curiosidade se
demorando por demais diante de túmulos que possuam qualquer sensação suspeita
pairando sobre eles. Na dúvida, entre e vá diretamente ao túmulo de seus
ancestrais, e aos demais pontos de força que precise reverenciar, e então saia,
tomando as devidas precauções.
Retirando terra do cemitério
Caso deseje recolher terra do
campo santo para fins mágicos ou recolher terra da sepultura de um ancestral
para conservá-la como testemunho dos ossos, o processo será o mesmo. Você
deverá fazer o mesmo procedimento da oferenda aos antepassados fora do altar
doméstico, cavando um pequeno buraco na terra e depositando dentro uma oferenda
– dessa vez o recomendado é que seja uma libação de vinho ou alguma outra
bebida alcóolica de significante valor espiritual – dedicada como pagamento
pelo solo retirado. Ao invés de retornar toda a terra para o buraco, uma parte
dela será recolhida e a outra usada para cobrir a oferenda. Quando isso é feito
para retirar terra comum do cemitério, a oferenda deve ser direcionada aos
donos do local e às almas. Quando isso é feito numa sepultura específica, deve
ser direcionada ao morto (ou aos mortos) que nela estiver enterrado.
Nem todos os cemitérios têm
covas de terra, talvez a maioria hoje em dia nos centros urbanos seja de
lápides de alvenaria. A alternativa para a terra de sepultura do ancestral
nestes casos é a varrição da poeira que se acumula sobre o túmulo. O mesmo tipo
de pagamento será necessário para retirá-la, e os mesmos cuidados da terra de
cemitério se aplicam...
Cuidados com a terra vinda do cemitério
Muitas pessoas consideram que é
inadequado manter em casa a terra de cemitério por longos períodos. Cada vez
que ela precisar ser usada em magia, deve ser buscada em quantidade moderada. A
exceção é a terra da sepultura de um ancestral nas urnas e/ou vasos utilizados
em seu culto, que só devem ser preparados com algum conhecimento e se a pessoa
se sentir confortável com a manutenção do objeto.
Independente de qual seja a
procedência, toda terra do campo santo carrega consigo uma força espiritual
atrelada à morte e ao mundo inferior, e por isso o contato físico com ela deve
ser evitado. Se possível use luvas para manuseá-la, pois além da questão
espiritual existe uma preocupação sanitária envolvida. Tome especial cuidado
com a forma de armazená-la e com os usos que dará a ela, pois danos podem advir
facilmente de um uso inadequado. Nada de deixar esse tipo de coisa ao acesso de
animais ou crianças. E nada de utilizar isso em receitas mágicas se não souber
com certeza o que está fazendo!
– MEMÓRIA ANCESTRAL –
Registros e homenagens
Vimos que as memórias são um
importante aspecto do culto ancestral pois é em parte através delas que as
almas se fortalecem para continuar sua jornada no pós vida. Esse não é o único
motivo, contudo. As memórias externas a nós, reforçadas pela fala, pelas
imagens e por nossas ações também fortalecem a memória interna de nossa
ancestralidade – aquela que reside em nosso sangue e em nosso espírito. Um dos
maiores conselhos para quem não consegue se sentir conectado aos ancestrais
apenas fazendo oferendas genéricas e mecânicas é investir no conhecimento e
preservação da memória familiar. Isso pode ser feito de algumas muitas
maneiras.
Family Album - Galina Gladkaya |
Uma das formas mais óbvias de
fortalecer as memórias é através de registros visuais. Fotografias dos
falecidos, cartas escritas a eles, estátuas memoriais (para quem tem dinheiro
suficiente para isso), dentre outros, são meios de fazê-lo. Aposte nos retratos
antigos de seus antepassados. Coloque-os dando destaque aos ancestrais mais
veneráveis em alguma parede de uma área central de sua casa. No próprio altar
doméstico os retratos são complementos maravilhosos. Além disso, álbuns de
fotografia e livros que registrem a história familiar podem ser feitos, e
oferecidos aos antepassados passando-os na fumaça daquilo que for queimado no focolar.
O poder das histórias familiares
Além dos registros visuais, a
fala é de fundamental importância. Através dela é que os conhecimentos
ancestrais foram passados de pai para filho por incontáveis gerações. A voz
transmite influências espirituais que podem ser muito poderosas – inclusive
iniciáticas – nos contextos corretos. Em especial é importante que você
valorize as histórias de vida e os “causos” contados pelos seus antepassados ou
sobre eles. Repetir estas histórias para outras pessoas que tenham o mesmo
sangue, ou que gozem de sua confiança, são uma das formas mais poderosas de
fortalecer as memórias familiares e colher para os antepassados os benefícios
delas.
Entretanto, tome cuidado com
quem recebe as histórias de vida de seus entes queridos. Pessoas com
conhecimento adequado e mal-intencionadas podem tentar subtrair força vital das
memórias familiares se tiverem a oportunidade. Em alguns casos, elas serão
severamente punidas pelos Antigos caso tentem fazê-lo, mas o prejuízo de arriscar
uma perda do gênero não vale a pena. Guarde suas memórias familiares mais
importantes para quem vai valorizá-las e respeitá-las.
O legado como oferenda
Dentre as coisas que herdamos
de nossos antepassados estão por vezes ofícios, bens materiais, códigos de
conduta, missões que eles assumiram e outras coisas que podem ou não nos
parecer úteis. Uma das maneiras de oferendar a memória familiar é preservar e
enobrecer o legado deixado pelos ancestrais. A título de exemplo, se você se
tornar o sócio de uma empresa após o falecimento de um ancestral que tenha
deixado essa posição para você, uma forma muito eficiente de honrá-lo (caso a
empresa fosse realmente importante para ele) é dedicar esforço pessoal pelo
bem-estar e pelo crescimento da empresa.
Nem só de grandes legados este
princípio se serve... Manter a casa de seus avós conservada, bem-cuidada e
sendo utilizada de forma positiva segundo os valores deles, por exemplo, já é
uma ótima maneira de fortalecer a memória familiar por meio da manutenção do
legado ancestral. O mesmo se aplica aos mais simples objetos, ideias e valores,
contanto que eles tenham um peso emocional significativo o bastante para os que
se foram.
Deixando ir...
É da nossa natureza lutar para
preservar as coisas. Lutar contra a morte, contra a transformação... E com
frequência perdemos. As memórias familiares por vezes não podem ser salvas,
assim como as almas daqueles que passaram pela segunda morte. Quando nos
vemos diante desse tipo de situação, é natural que haja sofrimento, mas nessas
horas precisamos nos ater ao fato de que nada além daquilo que é divino toca a
eternidade. As únicas coisas que nunca serão consumidas pela morte são as que
se tornam parte integral da divindade. E mesmo aquilo que um dia volta para a
chama sagrada do espírito tendo sido perdido, transformado e aparentemente
esquecido não é perdido para sempre. Nada o é. A sabedoria de todas as coisas
que eram, que são, e que um dia poderiam vir a ser, existe no Sagrado Coração e
lá permanecerá.
Um dia, quando de alguma forma
todos nós regressarmos a uma unidade com Ele, aquilo que houver se perdido será
encontrado novamente. Até lá, acredite, o esquecimento não é mais do que um
breve adormecer...
– DESENVOLVENDO UMA COMUNICAÇÃO –
Abertura de percepção e transes
Qualquer culto, e não somente o
culto ancestral, é facilitado pela percepção espiritual assertiva de quem o
mantém. É claro que todos nós temos níveis de percepção distintos, e a maioria
de nós não será capaz de ver e ouvir os mortos com facilidade, mas existem algumas
formas de trabalhar com a tratativa em questão que favorecem o ganho de uma
maior intimidade com a comunicação mediúnica, especialmente em relação aos
ancestrais. O vínculo que possuímos com eles é maior do que o vínculo com
qualquer outra entidade, e isso pode ser aproveitado de alguma maneira.
Inicialmente, é preciso dizer
que em nossa tradição não existe meditação imaginativa. Não recomendo a prática
de simplesmente fechar os olhos e imaginar um cenário onde seus ancestrais se
manifestarão, tal como é orientado em livros a respeito de caminhos modernos
ocidentais. Da perspectiva tradicional – ao menos em bruxaria – esse
tipo de prática na maioria das vezes diz mais sobre o “mundo interior” do
praticante do que sobre sua relação com seres externos. E mesmo quando esse
estado conduz o meditador para um transe mais profundo no qual um contato
externo realmente aconteça, ruídos mentais podem (e na maioria das vezes irão)
atrapalhar o processo. A menos que você pertença a um caminho espiritual que
tenha sólida tradição de utilizar métodos meditativos ancestrais
(algo que no mundo ocidental é uma raridade), recomendo não se meter com isso
para os fins aqui expostos.
Dito isso, o primeiro passo
para aprender a ouvir a voz da ancestralidade é calar a boca e dar tempo
e espaço para que ela se manifeste. O silêncio mental e físico é importante porque
nos permite estar atentos a estímulos que vem de dentro e de fora de nós
mesmos, e que com o tempo podem ser mais bem discernidos um do outro. Muitas
pessoas fazem suas devoções – não somente aos ancestrais – em um alvoroço de
ansiedade, esperando pirotecnias mágicas imediatas e se frustrando quando nada visível
acontece. É natural, principalmente na nossa época, fazer as coisas falando o
tempo todo sem se permitir silenciar para escutar. Portanto, o primeiro passo é
se acalmar e ficar em silêncio, e atento às suas percepções físicas, mentais e
intuitivas após a realização de uma prática ancestral.
Algumas pessoas terão mais
facilidade em intuir as coisas do que outras, mas uma percepção mais clara pode
ser construída com esforço e determinação. O essencial é estar atento para
qualquer pensamento, sentimento, intuição ou sensação física de presença que te
pareça incomum em comparação às suas próprias. Para começar a discernir
isso é fundamental praticar o silêncio contemplativo (prestar atenção em si
mesmo e na própria mente) para entender como funciona a sua linha de raciocínio
e o seu fluxo de emoções. Conhecendo a si mesmo, você saberá quando outra coisa
estiver se intrometendo na sua percepção. Técnicas como a meditação zazen
do budismo e uma longa contemplação de imagens religiosas em silêncio podem
auxiliar no processo.
Além das percepções naturais que
podem melhorar com o tempo, bem como da repetição e do conhecimento da própria
mente, um outro mecanismo importante para a comunicação com os ancestrais é o
domínio das técnicas de indução de transe. Isso porque nossa percepção
extrassensorial tende a aumentar quando estamos em um transe profundo o
suficiente para nos tirar do estado normal de vigília, mas não tão profundo que
nos faça perder o contato com a realidade material. As maneiras mais usuais de
atingir esse estado de leve transe podem ser a oração dos rosários (quando você
já sabe as orações de cor e não precisa se distrair relembrando o texto), o uso
de tambores e outros instrumentos musicais, a dança, os cânticos, entre outros.
Algo valoroso pode ser a indução de pequenos movimentos, para frente e para
trás, ou de um lado para o outro, enquanto faz suas orações.
Para não alongar mais do que o
necessário este texto, recomendo que busque estudar como o transe ocorre e
busque descobrir quais os estágios de alteração de consciência nos quais você
sente maior aumento na sua percepção. E em última instância compreenda que nem
todas as pessoas têm facilidade com esse tema. Respeite seus limites e progrida
devagar, para continuar progredindo sempre.
Reconhecendo sinais dos mortos nos vivos
Depois de muitos e muitos anos
cultuando meus ancestrais e conversando com pessoas que também o fazem, percebo
que o sintoma mais escancarado de resposta do mundo espiritual dentro desse
culto são os efeitos que ele causa em nossos familiares vivos. Através da
ligação que existe pela Árvore de Sangue e Espírito, é comum que a nossa
interação com os ancestrais ocasione o aumento da influência que eles exercem
sobre os seus descendentes. A partir desse aumento, é comum que as pessoas
vivas sintam o desejo de compartilhar informações dos falecidos com você, e em
alguns casos de retomar honrarias aos mortos que elas próprias já haviam
abdicado. Além disso as memórias familiares costumam ser relembradas,
divulgadas e não raro enaltecidas pelos vivos mais afetados. Esse processo
também pode ser em vários níveis curativo. Vi mais de uma vez problemas
familiares que se arrastavam por décadas sendo resolvidos gradualmente depois
que uma pessoa da família começou a fazer de forma correta o seu culto
ancestral e pedir aos ancestrais pela harmonia na linhagem. Pessoas que antes
não se falavam voltaram a ser amigas, opiniões intransigentes mudaram, entre
outras “maravilhas”.
Infelizmente, contudo, essa
influência toda não é sempre previsível, nem sempre palatável aos nossos
gostos. Por vezes é justamente essa influência ancestral que te obrigará a
reatar laços com pessoas que você prefere manter fora de sua vida, ou tratar de
dolorosos problemas do passado que ressurgirão sem controle. Não subestime
esses movimentos, nem fuja deles. Busque encará-los com responsabilidade e
dialogue constantemente sobre eles com seus ancestrais. Agradeça por qualquer
boa influência que eles causem em seus familiares vivos, peça que tentem
exercer influências positivas para seus intentos e lide com diplomacia com
esses pedidos. Se conduzir esses contatos com bom senso e cuidado, ainda que
tenha de passar por situações desconfortáveis, você verá que tudo valerá a pena
no final.
Oráculos e meios adivinhatórios
A comunicação com o mundo
espiritual pode em grande medida ser exercida pela percepção mediúnica e pelo
domínio das técnicas de indução de transe, mas de diferentes formas,
interferências externas e internas podem prejudicar essa comunicação. A melhor
maneira de contornar esse problema, ou mesmo de estabelecer uma comunicação
mais direta e objetiva em momentos de necessidade, são os oráculos e as
técnicas de adivinhação.
Para a definição de muitos, um
oráculo é um mecanismo por meio do qual fala uma divindade ou outro tipo de
entidade espiritual, enquanto as técnicas de leitura da sorte e previsão do
futuro são alocadas como meios “adivinhatórios”. Acho que não faz muita
diferença, já que seres espirituais podem se manifestar pelo segundo tipo de
técnica e a primeira pode ser usada para questões banais se houver contexto
para tal. O essencial aqui é a utilização de mecanismos oraculares, formas
ancestrais de discernir mensagens do mundo espiritual ou confirmá-las quando
foram passadas de outros modos.
Skull still life - Autoria desconhecida. |
O Tarô, o Petit Lenormand e as
sibilas de conversação são um bom meio de comunicação com o mundo ancestral
desde que quem os utiliza seja competente o bastante para não se deixar levar
por fantasias da própria mente. O estudo e o treino árduo podem capacitar
qualquer pessoa a utilizar estes instrumentos, mas o seu uso sempre deve ser
cauteloso. Só se pode ter razoável certeza de uma informação quando ela for
repetida em três análises oraculares distintas. E todos esses baralhos e
sistemas citados são passíveis de interferência por seres espirituais e magias
de fascínio e ocultação, sendo por vezes necessário utilizar técnicas de magia
que isolem a leitura desses “atrapalhos”. Para isso existem algumas
possibilidades que se pode buscar aprender, como orações aos espíritos
protetores da clarividência e o uso de amuletos, pós e outros.
Outras formas oraculares
interessantes são as runas, a geomancia, jogo de grãos tradicional dos Balcãs
(para quem tiver oportunidade de aprendê-lo), e os jogos tradicionais dos
caminhos afro-diaspóricos que, nas mãos de um sacerdote competente e
habilitado, podem fornecer a você recomendações precisas e objetivas.
Muitas pessoas não utilizam
oráculos em suas devoções e nem por isso o culto ancestral que realizam é
inferior. Entretanto, se você deseja aprofundar a nível magístico a sua
relação com seus ancestrais, é inescapável ter apoio oracular de qualidade. Não
importa qual oráculo você escolha para buscar ou confirmar as mensagens de sua
ancestralidade, o que importa é que você o estude de forma profunda e
responsável, com empenho e dedicação, ou que você busque recorrer a um bom
oraculista caso não tenha domínio de nenhuma técnica que te sirva no momento.
Necromancia
Durante as últimas décadas
criou-se uma ideia em nosso meio de que qualquer prática que se relacione aos
mortos é “necromancia”. Para nosso entendimento, a palavra necromancia na
realidade refere-se principalmente aos atos de conjuração de um morto que
esteja no mundo inferior para que venha forçosa e não-naturalmente ao nosso
mundo, seja para responder perguntas (relembrando a própria etimologia da
palavra mancia) ou para realizar serviços. Segundo a definição clássica,
a necromancia também pode ser a adivinhação com partes de cadáveres humanos ou
a utilização das almas dos mortos e de seus restos para fazer o mal a um alvo,
como é extremamente comum de se fazer na bruxaria tradicional europeia, com os
pactos com espíritos em locais assombrados e o uso de agulhas de mortalha e
outros elementos fúnebres. Num terceiro sentido, mais incomum, as práticas que
visam adulterar o curso natural da vida, como a transmigração de alma de um
corpo velho para um corpo jovem – supostamente intentada por magistas de várias
tradições –, as tentativas de ressurreição dos mortos e a ressurreição de
corpos dos mortos para serem habitados por outros seres, são práticas que caem
no escopo de significado da palavra necromancia em razão de
transgredirem de forma tida como “antinatural” o limiar entre a vida e a morte.
Ilustração de John Dee em necromancia no cemitério - Autoria desconhecida (c.1890) |
Desnecessário dizer que muitas
dessas práticas são condenáveis sob o ponto de vista da moralidade hegemônica e
algumas também são malvistas dentro da própria bruxaria. O uso da palavra
necromancia para se referir ao mero culto ancestral ou às práticas espíritas é
um equívoco do nosso ponto de vista. Encaramos isso como uma tentativa de impor
uma aura escura e suja a coisas que são limpas, quando não razoavelmente
higienizadas, somente para fins de propaganda pessoal e construção de uma
imagem “trevosa”.
A necromancia não tem ligação
necessária com o culto ancestral, embora ela possa ser exercida por quem tem
conhecimento de como fazê-lo. Por óbvio, o pouco de conhecimento prático que eu
tenho sobre esse assunto não precisa nem deve ser exposto nesse texto para
leigos. Se você deseja aprender esses mistérios, busque por instrução numa
tradição mágico-religiosa onde o conhecimento sobre eles ainda exista, e evite
experimentações por conta própria se não souber limpar suas próprias lambanças
sozinho.
Serve o ditado dos Antigos: “A
prudência tem duas filhas: a saúde e a longevidade”.
– ESTRUTURA DE PRECES SUGERIDA –
Preces diárias
Ao se aproximar de seu altar
pela manhã, se persigne com água benta e bata um sino para despertar as forças
espirituais que ali se acumulam em razão da ressonância e saúde. Você pode
utilizar alguma uma frase como:
Salve os ancestrais, salve as santas almas
de nossos antepassados, salve o fogo sagrado de nossa casa e família!
Se tiver ervas de bênção e usar
um fogo perpétuo, queime um pouco delas na chama para incensar o altar. Ofereça
aos ancestrais uma porção da comida do seu café da manhã e algo como uma xícara
de café. Diga o que pede a eles nesse dia e dedique então um Pai-Nosso, uma
Ave-Maria e um Glória ao Pai. Você pode incluir as devoções diárias aos santos
e aos eventuais gênios familiares que possua nesta ocasião.
Preces semanais
Na sexta-feira ou no domingo,
em horário propício ou quando possível, se persigne com água benta e bata o
sino no altar. Incense o altar com ervas de benção. Se tiver óleo bento, pode
ungir a testa, nuca e pulsos com ele. Saúde conforme faz nas preces diárias e
acenda uma vela ungida de azeite de oliva ou óleo bento, dedicando-a aos seus
ancestrais. Você pode utilizar palavras como:
Eu dedico esta vela e o fogo santo que nela
arde aos meus ancestrais, às santas almas de meus antepassados, para que me abençoem
com sua proteção, me guiem com sua sabedoria, me permitam não cometer os mesmos
erros que cometeram em vida, e me ajudem a levar a diante as boas coisas de seu
legado (entre outros pedidos que desejar).
Faça outras oferendas, como a
troca da água dos ancestrais que é dedicada a extinguir a sede e exaustão que
porventura sintam. Após dedicar todas as oferendas, inicie a reza do terço do
rosário e dedique-a aos seus antepassados e aos santos e anjos (ou outros
espíritos compatíveis) ligados à sua linhagem familiar. Você pode usar o mesmo
tipo de frase que foi usado para dedicar a vela.
Ao concluir as orações, faça a
oferta do seu fôlego ao fogo perpétuo do altar e/ou à vela oferecida aos
ancestrais. Gaste um tempo em contemplação e guarde suas percepções.
Época de Finados
Seguindo o padrão das práticas
semanais, organize uma oferenda maior para seus ancestrais no dia 2 de
novembro. No mesmo dia, faça a visita ao cemitério para honrar os túmulos dos
seus entes queridos conforme explicado mais acima neste texto. Se você fizer
parte de outras tradições que guardam práticas ancestrais neste dia, elas podem
ser feitas em conjunto se forem compatíveis com o catolicismo popular. Um
exemplo seria o culto à Santa Morte e o culto à Linha das Almas na Umbanda,
ambos realizados nesta mesma data.
A relevância do cruzeiro das almas é um elemento em comum de várias tradições que possuem uma base no catolicismo folclórico. |
Considerações Finais
Ao longo deste texto passamos
por muitas práticas tradicionais de culto ancestral. Muitas delas tem ecos em
outros caminhos e algumas são mais específicas. O maior interesse que tive ao
produzi-lo foi ajudar na busca daqueles que desejam cultuar sua própria
ancestralidade, mas ainda não dispõem de conhecimento e meios para tal. Eu o
fiz por razões coletivas, pelo valor que dou não apenas à minha ancestralidade,
mas a TODAS as ancestralidades. E o fiz também por razões pessoais, porque é
meu desejo que as práticas de minha tradição tenham serventia para além
daqueles que as mantém de forma iniciática. Tal como eu disse na primeira parte
desse longuíssimo texto, as ancestralidades são como árvores. Elas se ramificam
e se enxertam umas nas outras o tempo todo através dos casamentos, dos
nascimentos de filhos, do distanciamento de irmãos, das iniciações e de outras
tantas ocorrências da vida humana. Embora ninguém que tenha lido esse texto até
o final seja somente por isso um iniciado na tradição que o embasou, eu
acredito que algo benéfico – o tipo de bênção que raras vezes na vida é
compartilhada – pode ser recebido dela como se fosse uma pequena nova veia
ancestral. Não uma veia minha, nem uma veia especificamente pertencente à minha
tradição, mas sim uma veia da própria árvore que todos nós, seres humanos,
formamos juntos.
Eu desejo que a árvore
ancestral de todos vocês, atenciosos leitores, seja forte, robusta e próspera.
E que aqueles dentro dela que tiverem respeito pelo sagrado e boa-fé uns para
com os outros encontrem um caminho para congregarem juntos na eternidade.
Que o sangue que tudo liga vos
abençoe, hoje e sempre.
Flâmula memento mori, exposta no Museu Etnográfico do Friuli. |
Recomendações
Este texto baseia-se quase que totalmente
na tradição e nas experiências da oralidade, mas algumas recomendações para os
interessados em estudar existem. Conforme novas surgirem, vou inseri-las aqui e
também na página “Recomendações”.
Italian Folk Magic – Mary Grace Fahrun : Um livro voltado à magia folclórica italiana
na diáspora para os Estados Unidos, oferece um lampejo significativo de como
este universo encara a espiritualidade doméstica e alguns aspectos da relação
com a ancestralidade.
Cidade Antiga – Fustel de Coulanges : Livro que me foi recomendado pelo
Vinícius Pimentel, por abordar o culto aos mortos na antiguidade, uma das
raízes do culto ancestral nas práticas tradicionais que ainda sobrevivem na
nossa sociedade.
Slavic Witchcraft: Old World Conjuring
Spells and Folklore – Natasha Helvin
: Um livro voltado às práticas mágicas de origem eslava, escrito por uma filha
da diáspora para os Estados Unidos. Oferece um olhar sobre diversas práticas e
superstições russas sobre os mortos que em parte são muito semelhantes à
cosmovisão apontada por mim neste texto.
Consorting With Spirits – Jason Miller : Não é um livro sobre ancestralidade, mas
na minha opinião é o melhor livro já escrito sobre o trabalho com espíritos por
um praticante de magia. O autor destrincha assuntos complexos de forma objetiva,
direta e inteligível, e desconstrói muitos equívocos (tanto de pretensos
tradicionalistas puristas quanto de ecléticos modernos sem juízo), fornecendo
uma abordagem para a relação com os seres espirituais que é equilibrada,
responsável e eficaz, abrangendo desde uma cosmovisão politeísta até a
cosmovisão cristã-herética e diabolista. Não exagero ao dizer que foram este
autor e suas obras que fizeram renascer algum entusiasmo em mim para ler obras
escritas por autores do meio esotérico novamente.
Honoring Your Ancestors: A Guide to
Ancestor Veneration – Mallorie Vaudoise : É um bom livro para se obter um contato inicial com muitos dos
assuntos que foram abordados neste texto. Tomei algumas referências trazidas
pela autora como citação acerca da visão de outras tradições. De modo geral é
um bom livro, mas não são todas as abordagens propostas que considero alinhadas
ao meu modo de enxergar o culto ancestral.
Meu querido, gratidão por suas dicas pra quem nada entende do assunto, como Eu rs... Abraços fraternos! Fiat Lux🔥
ResponderExcluirQue bom que está sendo útil! Fico muito feliz! Abraço! :)
ExcluirVocê deveria publicar um livro.
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