segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

CULTO ANCESTRAL - Parte 2: Prática

Por Draco Stellamare


Memento Mori - Edwaert Collier (1640-1707)


Na primeira parte deste texto abordei conceitos e entendimentos que são necessários para uma abordagem mais profunda do culto ancestral sob a ótica de minha tradição. Agora, tendo assimilado uma ideia mais orgânica da ancestralidade, vamos discutir como se estrutura uma prática de culto ancestral. Não é minha intenção fornecer um esquema pronto e imutável, mas sim uma estrutura compreensível para que cada leitor possa compreender o que é adequado fazer – dentro de uma miríade de possibilidades de como fazer – e, tão importante quanto isso, o porquê fazer.

Portanto, eu partirei do princípio, tomando por exemplo um leitor leigo que não esteja familiarizado com nenhuma forma de devoção ancestral equivalente ao que será aqui discutido. Mais adiante, a complexidade do culto pode aumentar à medida que os primeiros passos forem dados com sucesso. Espero que gostem!

 

Antes um aviso aos leitores...

Como já mencionado, este texto é voltado a explicar a lógica e estrutura de um culto ancestral pelo viés da stregoneria e da minha própria experiência com ela. Assim o redigi porque acredito que o mesmo possa ajudar as pessoas que não tem bons referenciais sobre ancestralidade e que desejam iniciar o seu processo de culto, mas não estão inseridas numa tradição espiritual que já o faça de forma adequada. Se você que está lendo for iniciado numa tradição religiosa ou esotérica que possua um protocolo específico para o culto ancestral, é muito importante que você siga primeiramente o que sua tradição prescreve. Se este for o caso, deixe este texto apenas como uma referência inspiradora, mas não modifique os ritos que você tenha aprendido de forma hereditária – caso seja de uma família que mantém uma religiosidade tradicional – ou nos quais você tenha sido propriamente iniciado. Tome como primeira e mais importante referência seus iniciadores e o que a sua tradição ensina a respeito, e agregue apenas aquilo que for conveniente e respeitoso agregar.

Uma tradição possui simbolismo e memória, e a ancestralidade familiar e iniciática zela pela continuidade mais do que pela inventividade. Além disso, não é adequado tentar encher um copo que já está cheio. A partir do próximo item, tudo que será proposto levará em conta o “copo vazio”, isto é, que o leitor é leigo no assunto e tomará por esses meios seu primeiro contato com o culto à ancestralidade.

 

Preparação – Limpeza e Discernimento

Um dos grandes perigos de começar um culto ancestral sem estar com a saúde espiritual em dia é que antes de ser ouvido e atendido pela sua ancestralidade você seja ouvido e atendido por outras coisas. Pensando nisso, o primeiro passo recomendável é fazer uma revisão de sua rotina espiritual, refletindo de forma crítica se há possibilidades de você ter atraído seres espirituais mal-intencionados ou oportunistas com práticas pouco criteriosas. Outro ponto que deve ser refletido é se você se encontra em equilíbrio espiritual e mental suficientes para conduzir um contato com a ancestralidade de forma adequada. Sobre o primeiro tipo de equilíbrio, recomendo esse meu outro texto e esse video para que você tenha uma ideia a respeito dos perigos envolvidos numa prática espiritual ingênua e irresponsável, e possa questionar-se se as preocupações apontadas recaem sobre sua vida ou não.

Somos semelhantes às pessoas e aos seres com os quais mais convivemos. Se você estiver cercado de seres espirituais problemáticos ou de restos espirituais insalubres será difícil estabelecer um contato assertivo com a ancestralidade, devido à interferência que eles podem causar, e à “sujeira espiritual” que pode se acumular ao seu redor, te deixando cego e surdo para a ancestralidade. Se achar que este pode ser o caso, uma pausa nas práticas espirituais que manteve até então, e uma rotina de purificações bem-feitas podem ser indicadas. Caso não saiba como realizar banhos de limpeza, defumações e outras práticas necessárias para limpeza espiritual, procure o auxílio de alguém que saiba antes de começar o culto propriamente dito. Este passo é extremamente importante para aqueles que não sabem muito bem o que estiveram fazendo até aqui. E sim, eu estou falando exatamente com você que se afirma um magista superdesenvolvido na internet, mas que sempre fez e ainda faz as coisas no improviso ou costurando conceitos de fontes distintas. Recomendo que você tenha especial cuidado – além de carinho e respeito por si mesmo – ao refletir sobre este ponto. Essa “desintoxicação” prévia pode ser o fator determinante para decidir se o culto ancestral que você começará será bem-sucedido ou se ele será apenas mais um gerador de problemas em sua vida.

Caso você precise apenas de uma higiene espiritual básica, deixarei nesta página algumas sugestões que podem ser úteis. Situações mais complexas pedem um conhecimento mais assertivo e mais complexo. Não superestime sua capacidade de resolver as coisas caso esteja inseguro!

Além da questão espiritual ou “energética” propriamente dita, gaste algum tempo refletindo suas relações com seus familiares e com aqueles que já se foram. Antes de lidar com suas presenças, influências e memórias de forma direta é adequado que você tenha ao menos uma ideia inicial do quão problemática é a sua relação com eles, e a partir disso busque dar tratamento apropriado aos problemas que existirem dentro de você. Estou falando de análise pessoal, terapia, cuidado com a saúde mental através de métodos profissionais com os quais se sinta mais à vontade, e também do desenvolvimento de uma autocrítica sobre como você tem agido em relação aos seus. Todos nós podemos ter frustrações, mágoas e rancores ligados à memória familiar, e acreditem em mim quando digo que antes destas coisas surgirem e tumultuarem o seu culto ancestral é melhor que comecem a ser enfrentadas no divã de um terapeuta.

Quando você se sentir pronto, limpo de influências que podem atrapalhar o processo e emocionalmente preparado para estar em contato com a memória ancestral, você passará para a parte mais basilar de todas: a devoção doméstica.

 

– ALTAR DOMÉSTICO –

Elementos essenciais e primeiros entendimentos

Em minha tradição o ponto central do culto ancestral é o focolar, o fogo sagrado da casa, mantido num altar erigido especialmente para ele e para os espíritos mais importantes da família, usualmente na cozinha ou em outro lugar central da residência. Em tempos pretéritos, este altar era apenas uma cavidade chamada larín, na parte inferior da lareira que ficava no centro das casas friulanas, onde os alimentos eram preparados e as pessoas se aqueciam nos rigorosos invernos. Com a vinda para o Brasil e o passar das gerações, o focolar tornou-se o fogão à lenha e depois uma simples vela mantida no altar doméstico que substituiu o larín. No altar da cozinha a maior parte das rotinas devocionais à ancestralidade ocorrem em paralelo à devoção aos seres divinos cultuados pela tradição da família – em nosso caso os santos e demais figuras do universo católico folclórico.



Senhora friulana alimentando focolar.
Fonte: Museu Etnográfico do Friuli em Udine.

Entre os reconstrucionistas romanos e os praticantes de stregoneria ligados à retomada politeísta, a devoção ancestral é realizada no lararium, o altar dedicado aos deuses de devoção familiar e aos Lares do Cultus Deorum. Já na espiritualidade popular eslava um pequeno ponto de entrega de oferendas é mantido próximo ao fogo da lareira, ao fogão ou à porta da cozinha, onde o Domovoi (o Pequeno-Avô) é cultuado. Como já discutimos na parte teórica deste texto, cada tradição mágico-religiosa que contém um culto ancestral possui seus gênios familiares próprios e as metodologias próprias para reverenciá-los nos seus respectivos altares domésticos.

Antes de iniciar suas devoções, busque refletir qual a melhor abordagem possível ao conceito dos gênios familiares considerando a sua própria ancestralidade. Se as últimas gerações de sua família são católicas, um altar nos moldes do catolicismo popular que contenha os elementos que abordarei a seguir pode ser a melhor escolha. Já se você tiver ancestrais de outras vertentes religiosas é recomendável estudar como se organizam as devoções ancestrais nessas vertentes, se existirem, e buscar aproximar ao máximo a sua devoção daquilo que tradicionalmente seria feito por seus ancestrais se estivessem vivos. Isso envolve aprender as orações dedicadas aos falecidos e à harmonia familiar que existam no meio religioso deles. Pense que aqui alguma noção de continuidade é importante, ainda que essa continuidade seja apenas simbólica – uma expressão sua dizendo à Mansão dos Mortos que você valoriza a história de seus antepassados. Buscar a orientação de pessoas que estejam nestes caminhos percorridos por seus ancestrais, ou adentrar você mesmo estes caminhos, é uma forma segura e assertiva de aprender sobre isso.

Nos casos em que deliberadamente NÃO for uma escolha seguir as linhas gerais da religiosidade de seus antepassados, seja por sua indisposição sua com aquela crença além do limite de tolerância ou seja por ser uma crença que é antagônica a qualquer compreensão sobre culto ancestral – como seria no caso de uma longa linhagem de protestantes calvinistas – uma saída temporária é se ater aos elementos basilares que eu descreverei a seguir (e neste caso ficar muito atento aos sinais que indicam se o culto está sendo bem aceito ou não). Embora o Brasil esteja se tornando um país evangélico a uma velocidade assustadora, esse é um fenômeno relativamente recente quando pensamos a nível ancestral. Ainda são poucas as famílias brasileiras que possuem mais do que três gerações frequentadoras de igrejas protestantes, de modo que a maior probabilidade é que antes disso os ancestrais da maior parte dos brasileiros se definissem como católicos, ou fossem membros de outras religiosidades minoritárias que aqui sobrevivem e que não raro se relacionam com o universo popular católico de uma forma ou de outra. Além disso, ancestrais budistas, candomblecistas ou umbandistas, muçulmanos e judeus, comuns em nossa terra, têm todos algum campo de reverência tradicional aos mortos (ou ao menos à sua memória) que podem ser compreendidos.



Exemplo de altar ancestral. Fonte: Pinterest / georgiaconjure


Para poupar muitas reviravoltas neste texto, vou ensinar os elementos basilares que nossa tradição compreende necessários ao altar doméstico. Eles são compatíveis com a realidade religiosa do catolicismo popular, e são relevantes e úteis ainda que você não tenha um focolar como o nosso. As adaptações que eventualmente sejam necessárias em função de seus ancestrais pertencerem a uma outra realidade religiosa devem ser um campo de estudo antes de ser um campo de experimentação prática. Acredito que se ater ao básico que será aqui abordado, ao menos no início, sem grandes elocubrações, seja uma boa forma de começar numa ocasião como essas. Indo direto ao ponto...

Três elementos iniciais para o altar doméstico são indispensáveis: o fogo, a água e um recipiente para ofertas de bebida e alimento.

Ao iniciar seu culto ancestral, o recomendável é que você estabeleça um local na cozinha ou em outro ambiente que seja central à casa, e onde possa acender com segurança um fogo dedicado à ancestralidade (supondo que, como a maior parte da população, você não disponha de um fogão à lenha ou uma lareira). Este fogo pode ser mantido de forma perpétua se houver segurança para tal. Nada poderia ser pior para o seu culto ancestral do que um incêndio na sua casa, então mesmo quando a chama não for conservada de modo perpétuo, utilize SEMPRE copos de vidro para velas que impedem incêndios ou lanternas de metal capazes de isolar eventuais chamas, e não acenda um fogo em locais onde coisas inflamáveis podem entrar em contato com ele.



Exemplos de altares do catolicismo folclórico a santos e a ancestrais.
Fonte: Toverij & Spokerij.


Algumas sutilezas sobre o fogo são levadas em consideração. Sendo um fogo perpétuo, a chama deve ser passada de uma vela à outra quando necessário, sendo o fogo convidado a se preservar na nova vela onde foi aceso e a abandonar o pavio anterior (que será soprado). Se não for possível – ou se você não se sentir seguro com isso – esse fogo deverá ser adormecido no pavio da vela ou lamparina onde foi aceso ao final de cada ritual, sempre abafado com um abafador ou uma colher, e nunca soprado. Sempre se sopra o fogo que não se deseja manter adormecido, e se abafa o que se deseja adormecer para reacender futuramente. Todas as chamas acesas no altar devem ser dedicadas a alguma função, e você pode fazê-lo desenhando uma cruz sobre elas com os dedos indicador e médio da mão direita, ou simplesmente estalando os dedos em X sobre o fogo, enquanto diz em voz alta a quem ou ao que dedica aquela luz.

A água é oferecida em um copo ou uma taça e é especificamente dedicada a extinguir a sede e a exaustão dos antepassados. O oferecimento da água pode ser feito da mesma maneira do fogo, ou mais tradicionalmente sendo inclinado o recipiente na direção das imagens religiosas que você porventura possua no altar, como uma cruz, uma imagem de Maria ou de uma divindade reverenciada por sua ancestralidade. Em minha tradição há vasos consagrados que são enchidos com água para a Mari/Mater e o Pari/Pater, os anjos da mãe e do pai, e que são também dedicados a todos os anjos que acompanham as pessoas da família. Outras ânforas com água e outros elementos podem ser consagradas aos Antigos, mas as ânforas da Mari e do Pari são especiais, pois representam a alma no altar familiar, enquanto o fogo representa o espírito e a comida partilhada com os ancestrais representa o corpo. Em um culto desvinculado de nossa tradição, a recomendação é que ao menos a água aos antepassados seja mantida, e que as ânforas dos gênios familiares deem lugar aos objetos, representações e ofertas adequados aos seres espirituais vinculados à realidade de sua ancestralidade. Caso não saiba a quais seres essas ofertas podem ser feitas, eu recomendaria manter uma imagem dos santos/divindades de devoção das gerações passadas de sua família. Muitos lares católicos no Brasil preservam o costume de fazer pequenas oferendas a São Benedito, Santo Antônio ou São José pela fartura e proteção da casa. Certamente em sua família ou na cultura do local onde nasceu e cresceu você será capaz de encontrar algum referencial simbólico apropriado para começar.

O terceiro elemento inicial indispensável é um prato ou uma tigela no qual você possa partilhar o seu alimento com os ancestrais. A partilha do alimento é uma das práticas mais antigas e mais difundidas quando se fala em culto ancestral. Os romanos lançavam parte de suas refeições ao fogo no lararium para oferendar os deuses e os espíritos domésticos. No focolar friulano original, uma pequena parte da comida preparada para alimentar a família era oferecida no larín, sendo depois consumida pelo fogo e reduzida a cinzas junto a outros elementos. No recipiente onde se oferta comida também podem ser oferecidas bebidas, ou se preferir estas podem ser ofertadas num copo específico para essa finalidade, distinto daquele que contém a água destinada aos antepassados.

As oferendas têm um objetivo e uma função muito precisa: elas são meios pelos quais podemos estabelecer trocas de força vital (ou “energia” se preferirem) com o mundo espiritual. Fazemos ofertas de fogo, água, alimentos e outros inúmeros elementos ao divino para que este estabeleça uma troca conosco, conferindo as bençãos que necessitamos caso os requisitos esperados da oferenda – e das circunstâncias – sejam cumpridos. Dar uma parte da sua comida aos ancestrais é uma forma de estabelecer com eles trocas de bençãos e a circulação de força vital entre você e eles. Essa circulação é o que favorece em amplos sentidos as benesses conferidas pela ancestralidade.



Exemplo de altar ancestral. Fonte: Pinterest.


Não é necessário preparar um prato a mais para os ancestrais durante as refeições, como alguns fazem em determinadas celebrações sazonais. Na tigela do altar doméstico se deve oferecer uma pequena porção – uma colher ou um pequeno punhado – de tudo aquilo que for preparado pela família no dia a dia para ser consumido. Ao oferecer o alimento, dedique-o ao fogo sagrado de sua ancestralidade (você pode entendê-lo nesse momento como a representação da presença do divino em sua casa e família), aos Antigos/mortos poderosos de sua linhagem e às almas de seus antepassados, agradecendo e pedindo aos ancestrais aquilo que você deseja. Você pode oferecer uma única porção a todos estes seres, bem como a gênios familiares de sua prática aos quais seja cabível fazê-lo, ou pode oferecer uma porção para cada tipo de ser envolvido, se intuir que isso é adequado no momento. Apenas tome cuidado com exageros... Ao oferecer uma bebida, seja em libação no mesmo prato ou num copo ou taça separado, faça o mesmo procedimento. Tenho por costume oferecer o alimento da forma mencionada, e também mantenho uma caneca de vidro decorado com borboletas (que representam os Antigos) na qual ofereço café todas as manhãs (e eventualmente bebida alcóolica) aos Antigos e antepassados de minha casa. O café é uma oferenda preciosa para as linhagens ancestrais que fizeram da lavoura desse fruto o seu sustento, como a minha. Ao abordar a rotina de culto específico aos ancestrais eu tratarei este assunto de forma mais aprofundada, assim como a duração das oferendas e como descartá-las.

 

Instalando e mantendo o altar doméstico

Embora eu já tenha descrito os principais elementos iniciais do altar doméstico de culto ancestral, ainda é preciso falar sobre a sua elaboração e adequada manutenção. O altar dedicado ao culto ancestral pode (talvez até deva) conter fotografias dos antepassados mais importantes de sua família, imagens sacras vinculadas à crença da linhagem – santos de devoção da família ou flagrantemente vinculados à sua história são recomendadíssimos – e objetos que pertenceram aos ancestrais relevantes. Também é recomendado manter amuletos consagrados para proteção ou fartura em sua tradição mágico-religiosa, para que suas bençãos reverberem a coletividade familiar. Ofertas votivas e objetos oferendados aos ancestrais para que eles intercedam por você também podem ser dispostos (com cautela para não acumular coisa demais) no altar doméstico. É óbvio que nem todos estes itens são adequados de manter num espaço na cozinha, onde podem terminar umedecidos ou engordurados, de modo que você precisa ter bom senso para escolher o que vai incluir no seu altar a depender de onde ele se localize em sua casa. Também é importante perceber que se você erigir seu altar na cozinha (pelo simbolismo tradicional e profundo desse ato) isso não te impede de colocar homenagens e representações de sua ancestralidade em outros pontos da casa. Sobre essas práticas, que se relacionam à manutenção das memórias, falaremos melhor mais à frente.



Altar ancestral siciliano que une os elementos básicos, imagens 
religiosas e fotografias dos antepassados. Fonte: jesterbear.


O altar doméstico onde arde o fogo do lar e os ancestrais são oferendados torna-se para todos os efeitos o ponto mais sensível (e mais forte) da casa, e uma representação dela mesma. É adequado que antes de montá-lo o local seja propriamente purificado e abençoado, o que pode ser feito com água benta e fumigação de ervas como alecrim, erva-doce ou hissopo – conhecida também como alfazema-de-caboclo –, acompanhadas de orações como a reza de São Bento, o credo e o salve rainha, ou salmos apropriados ao livramento e purgação, como 51, e à proteção, como 23 ou 91. Depois de montado, é recomendável que ele seja rotineiramente aspergido com água benta e que ervas propiciatórias sejam queimadas em oferenda no fogo do lar, sendo utilizadas nessa ocasião para incensar o próprio altar e se necessário as proximidades. Tudo que é queimado no fogo do lar é para ele uma oferenda. As cinzas dessa queima podem ser utilizadas para bençãos das mais diversas se conjuradas da forma apropriada, e devem ser guardadas com cautela pois são um testemunho poderoso do espírito da casa e da família.

No altar se pode manter a palma santa do Domingo de Ramos (por nós usada tanto como oferenda ao fogo do lar quanto para defumações), arranjos de flores da estação ou do gosto da família, e crisântemos quando se aproximar a data festiva dos mortos. Caso deseje, as devoções que você optar por manter em respeito às suas tradições familiares podem ser feitas neste mesmo altar. Algumas das orações que realizo diariamente à Virgem Maria e aos demais antigos, anjos e santos de minha tradição são feitas neste altar – geralmente com a intenção de que suas bênçãos atinjam a coletividade de meus antepassados e de meus familiares vivos.



Altar doméstico italiano onde o culto aos santos ligados à família é feito.
Fonte: jesterbear.


Além destes elementos essenciais e opcionais mencionados, é possível conservar no altar de culto ancestral recipientes que contenham terra ou poeira da sepultura de seus antepassados, ou as suas cinzas (caso tenham sido cremados). Alguns mais apegados a como as coisas eram feitas antigamente, e pouco tementes às leis, podem sentir-se inclinados a manter os ossos de ancestrais poderosos em seus altares – o que NÃO RECOMENDO, pois além de poder ter implicações legais isso exigiria todo um preparo emocional e magístico para o manejo espiritual destes restos que a maioria das pessoas de hoje não é capaz de dar conta (por vários motivos que não caberia aqui discutir). Na alternativa mais branda, que são a terra ou poeira da sepultura, alguns cuidados são necessários e pretendo esmiuça-los mais à diante neste texto quando abordarmos a visitação ao cemitério. De todo modo, caso esse seja um limiar que você não se sente plenamente seguro em cruzar, o melhor a fazer é deixar a terra dos mortos com os mortos, para que o medo ou o desconforto não criem vulnerabilidades em seu culto.

 

O culto ao fogo do lar e aos gênios familiares

É impossível dissociar as ofertas e orações feitas aos ancestrais e gênios familiares da relação com o fogo do lar. Idealmente, deve-se saudá-lo e então proceder com as orações e ofertas aos ancestrais todos os dias, mas sabemos que a vida pode ser corrida e não haver tempo hábil para isso, especialmente para quem está começando. Contudo, é necessária ao menos uma saudação diária ao altar doméstico, contemplando os seres nele reverenciados. Os melhores horários para isso são o amanhecer e o entardecer, quando o sol não está muito quente e a fronteira entre dia e noite é rompida. Apesar dessa preferência, a ancestralidade pode ser saudada em qualquer horário em que haja contexto ou necessidade.

Além das saudações e orações diárias, é recomendável que se determine um dia da semana no qual as orações e oferendas serão feitas com mais esmero. É comum que esse dia seja a sexta-feira (dia das almas no catolicismo popular) ou o domingo (devido à missa), mas outros dias relacionados às Almas podem ser aproveitados.

As saudações ao fogo sagrado da casa são feitas – tal como todas as intenções e chamados – numa combinação de orações tradicionais, preces intuitivas e espontâneas, e as palavras de poder já estabelecidas da tradição. O essencial é que uma forma de se referir à coletividade de seus ancestrais seja definida, exaltando ou não os mortos poderosos dentre eles, e que essa forma definida seja mantida com consistência até se tornar uma expressão reconhecida pelo mundo espiritual. Se o fizer adequadamente, em algum tempo sentirá a força que se apodera desses dizeres... Em nossa casa utilizamos a expressão “antigos, anjos e santos” como um denominador comum para toda a ancestralidade e os seres divinos e aliados a ela. Um exemplo que você poderá usar como referência é a estrutura de preces diárias e semanais que deixarei ao final deste texto. Aprender a rezar é muito importante para a construção desse culto ancestral. No meu entender, é necessário tanto aprender a repetir orações tradicionais de forma orgânica quanto aprender a expressar a si mesmo através da prece espontânea. A justa combinação de ambas as coisas auxilia o leve estado de transe que é ideal para o início de uma comunicação com os seres espirituais, sobre a qual falaremos mais a diante.



Oferenda ao focolar, realizada fora do altar doméstico.
Foto particular.


O aspecto mais fundamental da relação com o fogo sagrado do lar é que ele seja abastecido de oferendas constantes, como as de ervas secas, elementos no óleo da lamparina (se o caso) e até madeiras adequadas (quando possível). A oferenda que deve ser mais constante, contudo, é a do fôlego daqueles que o cultuam. A oferenda do fôlego é uma doação de força vital, que se faz ao final de todas as preces e orações, expirando calmamente em direção ao fogo para que o hálito carregue uma pequena parcela de sua vitalidade para as chamas. Em retorno, o fogo retornará essa vitalidade até você através do fortalecimento de seus ancestrais, que o abençoarão. Não há como ensinar como fazer esse processo, ele deve ser sentido e feito da forma mais natural possível para cada pessoa.

             

– ANTEPASSADOS –

Oferendas adequadas à Árvore de Sangue e Espírito

O culto aos antepassados, assim como ao fogo sagrado do lar, pode ser feito diariamente de modo mais simples e semanalmente de forma mais completa, tendo o cuidado de renovar a água oferecida aos ancestrais de sua linhagem. Anualmente, é interessante que um processo de oferendas e honrarias mais robustas seja realizado, sendo a época do Dia de Finados uma das melhores para essa finalidade. Diariamente, é recomendável que o nosso alimento seja compartilhado com os antepassados na tigela ou prato do altar, de modo que a cada nova refeição a presença da ancestralidade em sua casa seja nutrida. Além do compartilhamento dessa comida que preparamos com nossas próprias mãos no dia a dia e da água que é oferecida ao menos semanalmente, seguem abaixo algumas sugestões de oferendas adequadas à coletividade dos antepassados, que podem ser entregues diariamente, semanalmente ou em qualquer frequência que lhe pareça apropriada segundo sua disponibilidade de tempo e recursos.

Pão: Nas suas formas mais simples, é tido como alimento primordial, representando o corpo divino e a própria terra. É adequado para nutrir as almas e traz para elas uma promessa de continuidade, devido à essencialidade desse alimento na dieta de grande parte dos antepassados humanos. Em suas formas mais complexas, ou como bolos e pães recheados ou confeitados, carrega consigo significados de celebração e alegria.

Vinho: É o sangue divino e o sangue da terra. Embora bebidas alcóolicas sejam oferendas que não são recomendadas para todos os mortos, o vinho é uma oferenda vivificante para a coletividade dos antepassados, tendo ligação com a força vital que anima os vivos e os mortos poderosos. Além disso, é uma bebida com profundos simbolismos religiosos que tende a reforçar os laços dos antepassados com as divindades a eles ligadas.

Azeite de oliva: É um óleo considerado sagrado, um dos principais ingredientes para a culinária mediterrânea e para a confecção dos óleos de benção. O azeite pode ser oferecido como ato de unção no altar, ou por meio de libação, ou ainda através de uma lamparina. Tem o efeito de condensar bençãos desejadas através das orações no altar ancestral e é um dos insumos que pode acalmar os antepassados revoltados.

Mel: É o tesouro das abelhas, de essência primaveril, ligado à Mãe Divina. O mel possui algumas propriedades: ele adoça, estimulando concórdia, afeto e amor entre os membros da árvore familiar; ele purifica de más intenções, afastando parasitas e por vezes contribuindo para a cura de feridas carregadas pelos mortos; e tem também a finalidade de nutrir e fortalecer. Uma das formas de aumentar a força de palavras de benção em nossa tradição é rezar após colocar uma colher de mel na língua.

Leite: Possui o significado da nutrição e do cuidado. É uma bebida que também é alimento, atrelada à sobrevivência durante as dificuldades e ao crescimento. O leite de cada animal tem nuances de significado um tanto distintas, e o leite natural é melhor para oferendas do que o leite industrializado.

Vela ou lamparina: Aqui o essencial é a chama, razão pela qual não endosso a substituição pelo uso de lâmpadas e outras luzes artificiais. O fogo é um elemento sutil e potente, que se relaciona com a quintessência, a força divina em seu estado mais puro, que arde no sagrado coração. Oferecer fogo à linhagem ancestral adequadamente é fortalecer o espírito e a ligação entre ele e as almas de uma árvore de sangue e espírito. O fogo une, ilumina, orienta e também transforma pelo calor. Você pode dedicar velas ungidas com azeite ou óleo bento aos ancestrais quando realizar suas oferendas periódicas, e pode também acender um fogo maior a eles dedicado, queimando nele elementos propiciadores.

Dinheiro: Embora não tenha serventia econômica para quem já se foi, o dinheiro carrega algum valor espiritual. Especialmente moedas de cobre são queridas aos mortos porque reverberam prosperidade na sua caminhada no além. É comum “pagar as almas” em diversas ocasiões nas quais algumas moedas são deixadas em locais de poder dos mortos, mas a oferta de notas de dinheiro também pode ser feita. A diferença é que as notas são deixadas por um, três ou sete dias no altar e depois são utilizadas para algum gasto em prol dos interesses dos ancestrais, ou doadas para instituições vinculadas a esses interesses, como igrejas ou outro tipo de associação religiosa.

Flores: As flores são uma oferta simbólica de afeto e consideração. O mais tradicional é oferecer crisântemos aos falecidos, mas rosas, gérberas, cravos e outras flores muito apreciadas pelos vivos também podem ser ofertadas. É necessário evitar flores que possuam veneno ou propriedades alucinógenas ou entorpecentes significativas, pois elas podem causar desequilíbrios à árvore ancestral. Nada de oferecer papoula-negra ou flor de trombeta aos antepassados! Essas coisas possuem outro uso que não a nutrição da ancestralidade. Além disso, recomendo que atente-se às correspondências que cada flor e cada cor de flor podem possuir para o contexto cultural e social de seus ancestrais.

Incenso ou ervas secas: A fumigação de ervas secas ou incenso é muito proveitosa para qualquer culto aos seres espirituais – excetuando por óbvio aqueles que possuem restrições quanto à fumaça ou aos elementos queimados para produzi-la. Acredita-se que a fumaça auxilia o contato com o mundo espiritual, sendo imbuída de significado e de poder por nossas orações e atos de magia. Aos antepassados, é adequado ofertar incensos de uso litúrgico como olíbano, mirra e benjoim, e queimar ervas com propriedades que purificam e agregam bênçãos, como alecrim, lavanda, entre outras tantas. Estudar a composição de incensos e a botânica oculta auxilia muito a fazer boas escolhas. O que deve ser evitado são ervas tradicionalmente usadas para banir os mortos ou para conjurá-los, como as que serão mencionadas numa seção posterior desse texto. Você não deseja transformar suas preces em um ritual capenga de necromancia.

Ervas frescas: Servem ao mesmo propósito das flores, e ofertá-las estende suas propriedades aos antepassados. Podem ser oferecidas como um arranjo num vaso com água ou maceradas na água para aspersão ou uso num borrifador. Vale para isso o mesmo tipo de cuidado que se deve observar em relação à queima de ervas secas.

Grãos: Sendo sementes utilizadas na agricultura, possuem o significado da prosperidade, do sustento e da nutrição. Podem ser preparados como alimento a ser oferecido ou serem dispostos crus para depois serem enterrados ou propriamente plantados, visando dar aos ancestrais mais força para intervenção no mundo dos vivos.

Sangue: É uma oferenda de mesma natureza que o vinho, porém em escala exponencialmente mais intensa. Sua utilização deve ser muito cautelosa para que problemas advindos de um erro no direcionamento da oferta não causem problemas difíceis de reverter. A oferta de sangue pode ser feita através de duas principais formas. Uma é através do abate de um animal para alimentação da família, sendo que parte do sangue é retirado para ser libado aos ancestrais com o conhecimento apropriado de como fazê-lo. Outra é através do oferecimento do sangue da própria linhagem, que o cultuador pode fazer ao furar ou fazer um pequeno corte no dedo que representa o corpo ou no dedo que representa a alma. Esse tipo de oferta é o mais sério de todos, de modo que não recomendo sua utilização por pessoas não preparadas para tal. Fica aqui a menção apenas a título de esclarecimento, já que não citei de propósito a forma correta de fazer tais oferendas.



Exemplo de oferendas aos antepassados. Fonte: Canal Indra Ali.


Muitas outras coisas podem ser oferecidas aos ancestrais, mas estas acima enumeradas são as mais básicas e usuais que a tradição atribui ao coletivo dos antepassados, visando impactar a Árvore de Sangue e Espírito. Existe muita polêmica nas redes sociais dos interessados em bruxaria em relação ao tipo de alimento que se oferece – seja aos mortos ou a outras entidades. Como já mencionei nesse texto, eu aprendi ao longo de minha vida que toda oferenda é uma troca de força vital estabelecida com algum ser, logo, por derivação lógica, a oferenda precisa ter força vital para ser trocada. A quantidade de força vital presente no vinho, o sangue da terra, é infinitamente superior à quantidade de força vital que se poderia hipoteticamente extrair de uma jarra de refresco em pó com sabor de uva. A quantidade de processos pelos quais a matéria prima dos alimentos passa durante sua produção, assim como as características desses processos, são fatores que determinam o quanto de força vital aquele alimento conservará. Enquanto destilados simples, mesmo sendo produzidos industrialmente, carregam muita força vital, o mesmo não se pode dizer de um pacote de biscoito recheado ou de um punhado de chicletes.  Isso não significa que não se possa oferendar coisas “superprocessadas” caso elas tenham algum significado positivo para os seres espirituais que o receberão. Mas não se pode confundir oferendas que só têm valor estético ou sentimental com as que têm valor espiritual verdadeiro. O primeiro tipo serve como algo acessório, decorativo. O segundo carrega a essência e o propósito do que é de fato uma oferenda. Recomendo que você se empenhe em entender a diferença, e como instrumentalizá-la para aumentar a significância de suas oferendas ao invés de esvaziá-las de potência.

 

Oferendas a um antepassado específico

Uma coisa é realizar oferendas à coletividade de seus ancestrais, e outra um pouco diferente é oferendar um antepassado específico. Neste segundo caso, você deverá levar em consideração quem essa pessoa foi enquanto estava viva, o tempo decorrido desde o falecimento e eventuais informações oraculares confiáveis que você tenha recebido sobre como ela está depois de morta. Por exemplo, não é adequado que se faça oferendas normais a um ancestral que está causando problemas por estar revoltado ou perdido sem antes apaziguá-lo e encaminhá-lo através dos ritos apropriados – normalmente oferecidos por sacerdotes de várias tradições. Se você tiver motivos para crer que um ancestral seu que tenha falecido há pouco tempo está nessas condições, o mais prudente é recorrer a quem disponha de meios de diagnosticar a situação e auxiliar no encaminhamento do morto.

Depois da morte do corpo, muitas almas passam por um processo árduo de purgação que assume diferentes formatos a depender da crença e do contexto iniciático existente. Em nossa tradição, concebemos que esse momento de purgação passa pelo atravessamento da zona da Mansão dos Mortos conhecida como Purgatório, para a qual as almas comuns se dirigem quando são devidamente encaminhadas para o “além”. Em algumas tradições italianas se diz que o caminho dessas almas até o Purgatório é uma ponte árida, quente e repleta de cacos e espinhos, conhecida como Ponte di San Giacomo. Essa percepção, de que boa parte dos mortos atravessa um caminho difícil de provações e purgações após a morte, é uma das principais fundamentações para oferecer água, luz e alimento aos antepassados. Eles são responsáveis por nossa existência nesse mundo, então é nosso dever ajudá-los na jornada no mundo que vem depois desse.



Detalhe de obra sobre as Almas do Purgatório. Autoria não encontrada.


O processo de “purgação” pode durar menos ou mais, a depender das características do antepassado que passa por ele. Apego excessivo ao mundo físico, problemas de ordem emocional, maldições e conflitos de honra, integridade e caráter, podem aumentar a duração dessa fase de transição. Em geral, o primeiro ano após o falecimento é o mais difícil para as pessoas comuns, aquelas cujo nível de perturbação mental e espiritual não é acima da média. Entre o fim do primeiro ano e o do terceiro, quando normalmente o processo de decomposição dos restos mortais acelera, o tempo percebido pelo morto passa a ser mais o do local do mundo espiritual onde ele se encontra do que o do mundo físico, e a sua condição tende a melhorar.

Aos antepassados que faleceram recentemente ou que por qualquer motivo estão numa caminhada mais difícil pela zona purgante, o aconselhável é que as oferendas sejam de água fresca em abundância, velas para iluminar o caminho, pão para alimentar na jornada, orações propiciatórias como o Requiem e a encomendação de missas ou outros rituais religiosos compatíveis com as crenças do morto e dos descendentes vivos. Todas essas coisas servem para fortalecer e auxiliar as almas recentemente desencarnadas a atravessar com mais recursos e disposição a passagem. Neste estágio é recomendável que oferendas mais densas que podem segurar o ancestral em nosso mundo sejam evitadas, a menos que o ancestral em questão tenha dado claros sinais de ter sido elevado como um dos Antigos/mortos poderosos da linhagem. Neste caso ele provavelmente terá livre trânsito entre o mundo inferior e o nosso, e poderá receber o que melhor lhe aprouver.

Quando a fase delicada de transição entre a vida e a morte e de purgação estiver concluída – o que pode-se presumir após o decurso de algum tempo do falecimento ou por meio de averiguação nos oráculos – as oferendas ao antepassado podem ser mais condizentes com os seus gostos em vida. Relembre que toda oferenda deve conter força vital, de modo que os elementos básicos já mencionados como oferendas à ancestralidade servirão bem. Podem ser acrescentadas coisas que o falecido gostava: pratos típicos da culinária da família que lhe eram caros, bebidas que consumia com frequência, fumo (caso fosse fumante, aceso e baforado sobre as suas imagens e demais oferendas), doces de sua preferência, perfumes que usava, dentre outros. Apesar de eu não ter mencionado o CAFÉ como uma das oferendas básicas à ancestralidade, ele é totalmente indicado à coletividade dos ancestrais, por ser uma bebida que sempre teve alto valor social, apreciada por quase todas as pessoas de gerações passadas e presentes. Em especial se você tiver antepassados cuja prosperidade e a sobrevivência estiveram ligadas ao cultivo deste fruto, a oferenda será uma ótima forma de honrar também a memória familiar. O mesmo é valido para outros cultivos e manufaturas de alimentos e bebidas. Reflita sempre o significado que cada substância ofertada tem à luz das histórias de seus ancestrais. Agregue o que tem valor, e evite o que pode suscitar traumas ou que carregue para os seus um grande peso negativo.



Almas no Purgatório. Obra mexicana de autoria anônima.


Por falar em peso negativo, os tabus pessoais de cada antepassado devem ser respeitados quando eles forem oferendados. Não se oferece bebida alcóolica a um antepassado que tenha sofrido com o vício a ponto de destruir a si mesmo. Não se oferece ao antepassado algo que ele notadamente não gostava de comer ou beber enquanto vivo. Para todos os efeitos, trate as oferendas aos antepassados como você trataria de alimentar um familiar querido que ainda esteja entre os vivos. Algumas tradições proíbem o uso de sal e tempero na comida que é especificamente direcionada aos mortos, mas isso em nossa prática não é observado. Pelo contrário, a comida deve ser tão temperada ou salgada quanto agradaria o paladar do indivíduo ao qual ela se destina.

Além das ofertas de comida e bebida, velas e fumigações, é adequado que se homenageie os antepassados através das muitas formas de manter viva a memória familiar e através da visitação aos túmulos. Essas e outras nuances serão objeto de uma parte específica deste texto, mais à frente.

 

Descartando as oferendas

Não existe uma regra fixa com relação a quanto tempo as oferendas demoram para ser consumidas pelos espíritos. As porções de comida cotidianas oferecidas aos ancestrais podem ser descartadas na refeição seguinte, mas as oferendas especialmente feitas com mais acuro – seja para a coletividade dos ancestrais, seja para um ancestral específico – não devem ser descartadas antes de 24h após o oferecimento. Em alguns casos, pode ser que mais tempo seja necessário, mas para determinar isso é preciso saber ouvir os espíritos e/ou consultar oráculos confiáveis.

De modo geral, evite deixar oferendas por tempo o bastante para que fiquem estragadas. Comida estragada instiga os Vermes, seres espirituais (também considerados seres físicos!) que vivem dentro do corpo humano e que a tradição entende que podem ser muito nocivos ao organismo dos vivos quando são estimulados a se locomover para fora do órgão em que habitam.

O descarte mais correto das oferendas é sempre enterrá-las de acordo com os mesmos protocolos de oferendas fora do altar que serão passados a seguir. Entretanto, isso seria burocrático para pessoas que vivem em zonas urbanas. Não me parece errado descartar as oferendas sólidas mais simples no lixo comum, e nem verter os líquidos em água corrente. Em casos de oferendas especiais, contudo, pode ser mais respeitoso realizar um descarte apropriado.

 


Sacrifício a Silenus - Sebastiano Ricci (c.1723). Sob alguns aspectos, permanecem
costumes de uma era pré-cristã no que tange a oferenda aos seres do mundo inferior,
tal como será mostrado no próximo tópico.


Oferendas fora do altar doméstico

Caso seja necessário oferendar os ancestrais fora das proximidades do altar doméstico, isso pode ser feito a partir de um método quase universal para oferendar os seres que residem no mundo inferior. Deve-se buscar um local onde o solo esteja exposto, como o chão de uma área de floresta, o chão de uma estrada de terra ou mesmo um pequeno jardim que seja cultivado direto no chão. Ali você deve aspergir água benta ou abençoada em forma de cruz, pedindo licença à terra para que você possa oferendar os seus antepassados (isso pode ser feito tanto diretamente ao gênio daquele solo ou em nome de uma deidade ctônica com a qual tenha um vínculo suficientemente forte). Após sentir que sua atividade ali é bem-vinda, você deve cavar um buraco de cerca de um palmo de profundidade, e então conjurar como de costume os seus antepassados ou os Antigos que desejar oferendar. Proceda com a libação de oferendas líquidas o depósito das oferendas sólidas no fundo do buraco, fale o que desejar como se estivesse diante do altar doméstico e então feche o buraco, recolocando a terra por cima das oferendas e finalizando tudo com a aspersão de mais água benta ou abençoada, fazendo com ela o sinal da cruz. É comum que algumas pessoas deixem um pouco da bebida destinada à libação para marcar um círculo ao redor do buraco antes de abri-lo ou quando ele for fechado, dedicando-o aos ancestrais ou aos espíritos do local. Isso sempre me pareceu ser opcional, embora eu concorde que fazer ofertas de paz aos espíritos locais antes de qualquer ritual seja extremamente aconselhável. O essencial é que as oferendas sejam depositadas abaixo do nível da terra, e que esta tenha aceitado recebê-las no local em que foram deixadas.

Não deixe velas ou brasas de fumigação de incenso acesas na natureza.

Não enterre oferendas que não sejam biodegradáveis.

Não faça esse ritual em um lugar se sentir qualquer resposta negativa ou dúbia dos espíritos locais.

Ao finalizar o seu rito, leve qualquer coisa que não pode ser deixada na natureza para terminar de oferecer em seu altar doméstico, e saia sem olhar para trás.

 

– ANTIGOS –

Oferendas a um morto poderoso

O processo de “culto” aos Antigos deve ser visto como o exercício de uma parceria entre você e um espírito ancestral que pode influenciar diretamente em sua vida. Essa parceria para a vasta maioria das pessoas já acontece de forma orgânica e menos expressiva dentro dos limites de um culto ancestral “geral”, feito em honra à ancestralidade como um todo. Entretanto, algumas pessoas podem sentir a necessidade de tecer relações mais diretas e próximas com um ancestral poderoso, de modo a se beneficiar mais atentamente de sua sabedoria e dos auxílios que ele pode prestar. Para praticantes de magia, em especial os que buscam uma abordagem tradicional, esse contato pode ser muito proveitoso desde que feito de forma verdadeira e assertiva.



Undeniable nature - Autoria não encontrada.


As oferendas dedicadas aos Antigos são as mesmas que se pode fazer a um antepassado qualquer – considerando seus gostos pessoais, suas vontades e aquilo que ele momentaneamente precisa – mas acrescida de elementos que propiciarão uma troca mais intensa de força vital. Essas oferendas podem ser bebidas alcóolicas, cinzas enfeitiçadas, licores mágicos preparados com ervas rezadas e consagradas para finalidades específicas, sangue sacrificial, dentre inúmeros outros. Aqui, diferentemente do que acontece em relação à maior parte dos antepassados comuns, é indicado que o próprio ancestral oriente quais as oferendas que ele deseja ou necessita para estabelecer trocas proveitosas. Isso dependerá, por óbvio, da capacidade oracular e de percepção “mediúnica” à sua disposição. Também é necessário se certificar de que é realmente um morto poderoso de sua linhagem quem faz estes pedidos, do contrário grandes danos podem advir de alimentar seres oportunistas.

Quanto à maneira de oferendar, exceto se o morto poderoso em questão tiver uma ânfora ou “assentamento” no qual sua força espiritual resida, é possível seguir as mesmas formas e protocolos que normalmente são seguidos para oferendar os antepassados.

 

“Assentamentos” e “ferramentas”

O termo assentamento é comum na matriz afro-brasileira para se referir a objetos que concentram e fazem circular a força espiritual de uma entidade, e que servem como um meio de auxiliar a firmeza da sua manifestação no plano físico. Em especial quando pensamos no assentamento de exus e pombagiras, por exemplo, estamos pensando em objetos que cumprem essa função para um ser espiritual que é um morto poderoso ou um ser não-humano. Em outras tradições também existem formas de produzir um objeto no qual um ser possa “ancorar” a sua força espiritual para ter acesso facilitado ao nosso mundo. Poucas dessas formas são tão complexas quanto os caldeirões de kimbanda e os igba de culto de orixá, mas muitas delas são plenamente funcionais para ao menos permitir que os vivos tenham uma via de acesso facilitado para se comunicar com os ancestrais aos quais esses “assentamentos” são consagrados.



Assentamento de Exu (entidade) segundo o candomblé angola
e a kimbanda. Fonte: Exu: Um Deus Afro-Atlântico no Brasil, de 
Vagner Gonçalves da Silva. A preparação deste tipo de objeto requer
dentre outras coisas a outorga sacerdotal de quem o faz, não sendo,
portanto, o tipo de prática espiritual que se pode fazer sozinho
ou por experimentação sem esperar danos.


Na stregoneria existem as ânforas, vasos tradicionais do mediterrâneo, em alguns casos semelhantes ao que nas macumbas do Brasil se conhece por “quartinhas” ou aos recipientes de armazenar água conhecidos como “moringas”. A ânfora consagrada a um dos Antigos recebe uma benção que permite que o ancestral se manifeste através da água que é armazenada dentro do vaso. Sempre que é necessário chamar aquele ancestral, a ânfora é aberta e as águas dentro dele recebem um pagamento. Em outras tradições de bruxaria, é usual que alguns mortos poderosos recebam um corpo simbólico através de uma boneca recheada de fetiches, e batizada com o nome e as características do ancestral. Também já foram usuais em outros tempos as urnas onde terra da sepultura do morto e fragmentos de ossos eram guardados, formando uma extensão doméstica do cemitério, à semelhança do que o cruzeiro das almas fazia em terreiros antigos da matriz afro-brasileira.  Existem ainda outras formas de consagração de objetos para que espíritos usufruam deles enquanto pontos de força. A maioria, entretanto, requer um conhecimento iniciático mais profundo para que possa ser manejada com segurança.



Consagração de ânfora segundo a tradição liventina.
Foto particular.



Ânfora exposta no Museu Etnográfico do Friuli, em Udine, com motivos
decorativos ligados às Aganis, os espíritos da água.


Além dessas formas de “ancorar” a força dos Antigos para que possam ser chamados facilmente, existem objetos que podem ser oferecidos a eles, e consagrados por meio de óleo santo e outras oferendas, de modo que por meio da simetria que aquele objeto possui com outras coisas no Cosmos o ancestral poderoso consiga instrumentalizar mais forças espirituais em favor do seu descendente. A isso alguns chamam de “ferramentas” ou “instrumentos”. São chaves, facas, tesouras, foices, cordas, leques, lupas, ampulhetas... Toda uma sorte de objetos, imagens e símbolos que podem ser requisitados pelos ancestrais para que eles tenham meios de aumentar a potência da sua influência na matéria.



Memento mori - Autoria desconhecida.


Caso você leitor tenha um dia a capacidade e a oportunidade de ter uma relação próxima com um ancestral poderoso, e o tipo de relação que isso implica tiver local em sua vida, é possível que alguma forma rudimentar de consagração de objetos – seja para ancoragem da força espiritual, seja para a finalidade de ferramenta – seja transmitida a você. É importante relembrar que essas coisas não são brincadeira. NÁO SE DEVE EM HIPÓTESE ALGUMA tentar imitar ritos tradicionais visando essa finalidade se não estiver adequadamente preparado para isso, dentro do que estipula a tradição em questão. E mesmo no caso de um procedimento que seja ensinado verticalmente ou de algo que seja supostamente acessível ao público: todo cuidado é pouco quando se está sozinho com o mundo espiritual. Se sua ancestralidade precisar realmente se manifestar de uma forma mais palpável através de tais consagrações, os sinais serão muitos, serão duradouros e sobreviverão a eventuais investigações de pessoas experientes e qualificadas que saibam o que estão fazendo. Na dúvida, busque orientação oracular de pessoas capacitadas e confiáveis. Tenha paciência, prudência, e bom senso!

 

 

– CAMPO SANTO –

Por que visitar o cemitério?

Como foi explicado na parte teórica deste texto, os ossos são uma âncora para os mortos neste mundo material. Isso equivale dizer que, de uma certa maneira, os ossos têm o potencial de serem um “assentamento” rudimentar, natural. A maior possibilidade de contato direto que temos com um falecido é recorrer ao local de descanso de seus restos mortais. Assim, visitando o cemitério para honrar os túmulos de nossos ancestrais estamos reforçando o contato que temos com eles. Além da questão do contato com o ancestral propriamente dito, a visitação ao túmulo reforça a memória familiar a ele atrelada. Uma das práticas recomendadas de serem feitas – no mínimo anualmente – é a lavagem das lápides e o ato de oferendar os túmulos dos antepassados com flores e outras ofertas (em especial no Dia de Finados).



Cemitério iluminado pelas luzes das oferendas do dia de los muertos, no
México. Fonte: US Today


Em momentos nos quais a nossa capacidade de interagir com nossos ancestrais pareça diminuta, existem estes dois recursos para superar qualquer distância: um é o sangue que você compartilha com os seus antepassados, e o outro é o contato com os túmulos onde os ossos de seus ancestrais descansam. Através do contato com o túmulo, os ancestrais recebem nossas orações mais facilmente. É também através do túmulo que algumas das formas de tecer pactos com os espíritos podem ser exercidas.

Para qualquer finalidade, entretanto, é necessário saber entrar e sair com segurança do campo santo, e saber se comportar adequadamente enquanto estiver dentro dele.

             

Visitação segura ao cemitério

O campo santo ou cemitério é um terreno sagrado, tido como uma extensão do mundo inferior na superfície. Apenas e tão somente por esse fato, tire de sua cabeça qualquer ideia sobre ações desrespeitosas em seu interior. A blasfêmia contra alguns símbolos religiosos enquanto meio de magia é uma coisa que existe e possui contexto e fundamento para acontecer em alguns caminhos, mas a blasfêmia contra os ancestrais no solo em que estão enterrados é uma conduta aberrante que só pode levar à ruína. Então em primeiro lugar: nada de rituais escalafobéticos, nada de libertinagem e nada de bravata dentro do campo santo. A vida espiritual, para ser sadia, não pode ser encarada como um surto de delinquência adolescente.

Todo cemitério possui um ou dois espíritos tutelares. Eles costumam ser o primeiro homem e/ou a primeira mulher enterrados naquele espaço, mas podem também ser os ancestrais mais poderosos que encontraram ali o seu repouso final e, em alguns casos mais raros, podem ser também gênios locais ou outro tipo de daimon. O importante é saber que todo cemitério tem dono, e esse dono pode permitir ou negar que determinadas coisas aconteçam em seu interior. A título de exemplo, há cemitérios nos quais os espíritos regentes não permitem nenhum ato de magia maléfica, e há outros onde estes atos são especialmente favorecidos. Outro fator que influencia muito a “personalidade” de cada cemitério é a coletividade dos mortos que estão ali enterrados. Conforme abordamos na parte teórica deste texto, muitas almas permanecem por um tempo no cemitério após a morte e diversas criaturas espirituais ligadas de uma forma ou de outra aos falecidos também lá habitam. Embora existam todo tipo de mortos num cemitério, essa coletividade de seres que lá coexistem pode ser mais pacífica ou mais conturbada, influenciando o cemitério como um todo. É recomendável aprender pela observação como funciona o ecossistema espiritual do cemitério em que seus ancestrais estão enterrados.

Outra questão relevante são os pontos de poder que existem dentro do campo santo. A maior parte dos cemitérios brasileiros possui um cruzeiro onde as almas são cultuadas, e/ou uma capela onde missas são realizadas. Esses locais são como núcleos para a força espiritual que circula dentro do cemitério, e em toda visitação realizada é recomendável que se preste respeitos a todas as almas nesses locais, como oferta de paz. Um outro ponto relevante é a entrada do cemitério – tanto do lado de dentro quanto do lado de fora. Nos portões existem seres específicos que devem ser saudados para que a entrada e a saída sejam tranquilas.

Existem muitos protocolos possíveis para entrar e sair do cemitério em segurança, a depender da tradição e da cultura da qual estejamos partindo. A seguir deixo uma sugestão de protocolo baseada em uma parte dos ensinamentos que recebi em minha instrução.

1.       Antes de sair de casa, separe no mínimo três velas e/ou três moedas de cobre, e um pouco de vinho ou azeite.

2.       Na porta do cemitério, do lado de fora, à sua direita (que é a esquerda do ponto de vista interno), faça uma reverência e peça licença para entrar no campo santo.

3.       Ao entrar, pare no primeiro túmulo à sua direita (que é a esquerda do ponto de vista interno) e se ajoelhe, tocando-o e fazendo o sinal da cruz. Saúde os donos do cemitério e todas as almas que ali residem, pedindo permissão para entrar, transitar e depois sair em segurança, sem que nada de prejudicial o acompanhe indevidamente. Deixe então uma oferenda nesse túmulo. Ela pode ser uma sequência de preces (Pai-Nosso, Ave-Maria e Glória) acompanhada de uma moeda de cobre e, se intuir necessário, uma pequena libação do vinho ou azeite. PRESTE ATENÇÃO AO QUE SENTE: nesse ponto as almas podem se mostrar propensas a conceder passagem segura ou indispostas a colaborar. Se a sensação que vier for muito conturbada, pode ser melhor apenas prestar seus respeitos e não proceder com nada muito complexo neste dia.

4.       Quando chegar aos túmulos de seus ancestrais, conjure-os como de costume e faça na lápide ou na terra do túmulo uma pequena – e discreta – libação do vinho ou azeite, marcando o local em cruz, e deixe para eles uma moeda. Faça suas orações e pedidos pertinentes, permita-se sentir quais as respostas que o local retribui a você, e então vá embora sem olhar para trás.

5.       Antes de deixar o cemitério, é recomendado que vá ao cruzeiro das almas, ao velário ou à capela – em suma, ao ponto de poder mais evidente na estrutura do cemitério em questão. Saúde os donos do cemitério e todas as almas com um sinal da cruz ao se aproximar, e ofereça novamente uma libação discreta (no cruzeiro ela pode ser feita próximo às velas ou nos cantos, e numa igreja apenas umedeça os dedos e marque uma cruz em algum lugar sem causar estragos). Se o local tiver um velário, é indicado que você acenda três velas: uma para seus ancestrais, uma para todas as almas ali enterradas – ou todas as Santas Almas – e uma terceira vela para a Morte – em cujo campo sagrado você está – pedindo para que ela tarde a vir encontrá-lo e que quando o fizer, que seja pacífica. Saia do local da mesma forma que entrou, mas virado de costas.

6.       Dirigindo-se à saída, pare novamente no primeiro túmulo reverenciado e dedique novas orações em agradecimento, pedindo novamente que nada de mau te acompanhe para fora daquele espaço e despedindo-se dos donos do cemitério e das almas que lá residem. Deste ponto em diante, ande de costas olhando para dentro do cemitério até que esteja do lado de fora do portão. Se a distância for muito grande, você pode andar normalmente e então virar-se e dar os últimos nove passos do percurso dessa forma. Ao finalmente sair e se virar, não olhe para trás até chegar em sua casa.

7.       Antes de entrar em casa, tire os sapatos e bata-os três vezes no chão da calçada para tirar a poeira do cemitério da sola de seus pés. Não vista mais o calçado antes de lavá-lo bem.

Estes são os passos mais básicos para garantir uma visita segura ao campo santo. Há amuletos e insumos que podem ser carregados, ou soprados na entrada e na saída do cemitério para garantir que nada problemático te persiga, caso seja uma situação mais arriscada. As ervas que espantam os mortos podem ser usadas para esse fim, tal como cinzas de exorcismo misturadas com sal. Outra precaução possível é tomar um banho de ervas de proteção antes de sair de casa, e um banho de limpeza ao retornar.



Cemitério Fontanelle em Napoli. Fonte: Napoli da Vivere.

             

Perigos e pontos de atenção

Os primeiros e mais relevantes riscos de se visitar o cemitério são os que envolvem a violência urbana. Muitos cemitérios por aí a fora estão em triste estado de conservação. Com pouca vigilância, assaltos, furto de partes dos túmulos e até outros crimes piores são coisas possíveis de se encontrar. Por isso, programe-se para ir ao cemitério em horários de maior luminosidade e se possível em datas nas quais ele não esteja totalmente deserto. Enquanto estiver orando e fazendo suas ofertas, mantenha atenção aos arredores. Os vivos são em muitos aspectos mais perigosos do que os mortos!

Cuidando de sua segurança física, é necessário também ter cautela em relação a alguns perigos espirituais. Nem todos os mortos de um cemitério são amistosos ou inofensivos. Assim como existem túmulos nos quais almas santas respondem com graças, existem túmulos onde almas amaldiçoadas e hostis residem. Além dos mortos hostis que podem ser nocivos a alguém que pise ou interaja de outra forma com seu local de “descanso”, existem seres espirituais de natureza vampira e hedionda que fazem morada em túmulos e outros espaços destinados aos mortos. Como foi explicado na parte teórica, além da possibilidade do nascimento “natural” destes seres, diversas tradições bruxas possuem conhecimento sobre como transformar uma alma vazia em uma dessas criaturas predadoras, e sobre como utilizá-la para seus interesses uma vez que a transformação ocorra. Por sorte, muitos destes seres se tornam reclusos durante o dia ou ficam aprisionados em suas tumbas até que a ordem de um eventual mestre o liberte. Mesmo assim, não exagere em sua curiosidade se demorando por demais diante de túmulos que possuam qualquer sensação suspeita pairando sobre eles. Na dúvida, entre e vá diretamente ao túmulo de seus ancestrais, e aos demais pontos de força que precise reverenciar, e então saia, tomando as devidas precauções.

 

Retirando terra do cemitério

Caso deseje recolher terra do campo santo para fins mágicos ou recolher terra da sepultura de um ancestral para conservá-la como testemunho dos ossos, o processo será o mesmo. Você deverá fazer o mesmo procedimento da oferenda aos antepassados fora do altar doméstico, cavando um pequeno buraco na terra e depositando dentro uma oferenda – dessa vez o recomendado é que seja uma libação de vinho ou alguma outra bebida alcóolica de significante valor espiritual – dedicada como pagamento pelo solo retirado. Ao invés de retornar toda a terra para o buraco, uma parte dela será recolhida e a outra usada para cobrir a oferenda. Quando isso é feito para retirar terra comum do cemitério, a oferenda deve ser direcionada aos donos do local e às almas. Quando isso é feito numa sepultura específica, deve ser direcionada ao morto (ou aos mortos) que nela estiver enterrado.

Nem todos os cemitérios têm covas de terra, talvez a maioria hoje em dia nos centros urbanos seja de lápides de alvenaria. A alternativa para a terra de sepultura do ancestral nestes casos é a varrição da poeira que se acumula sobre o túmulo. O mesmo tipo de pagamento será necessário para retirá-la, e os mesmos cuidados da terra de cemitério se aplicam...

 

Cuidados com a terra vinda do cemitério

Muitas pessoas consideram que é inadequado manter em casa a terra de cemitério por longos períodos. Cada vez que ela precisar ser usada em magia, deve ser buscada em quantidade moderada. A exceção é a terra da sepultura de um ancestral nas urnas e/ou vasos utilizados em seu culto, que só devem ser preparados com algum conhecimento e se a pessoa se sentir confortável com a manutenção do objeto.

Independente de qual seja a procedência, toda terra do campo santo carrega consigo uma força espiritual atrelada à morte e ao mundo inferior, e por isso o contato físico com ela deve ser evitado. Se possível use luvas para manuseá-la, pois além da questão espiritual existe uma preocupação sanitária envolvida. Tome especial cuidado com a forma de armazená-la e com os usos que dará a ela, pois danos podem advir facilmente de um uso inadequado. Nada de deixar esse tipo de coisa ao acesso de animais ou crianças. E nada de utilizar isso em receitas mágicas se não souber com certeza o que está fazendo!

 

– MEMÓRIA ANCESTRAL –

Registros e homenagens

Vimos que as memórias são um importante aspecto do culto ancestral pois é em parte através delas que as almas se fortalecem para continuar sua jornada no pós vida. Esse não é o único motivo, contudo. As memórias externas a nós, reforçadas pela fala, pelas imagens e por nossas ações também fortalecem a memória interna de nossa ancestralidade – aquela que reside em nosso sangue e em nosso espírito. Um dos maiores conselhos para quem não consegue se sentir conectado aos ancestrais apenas fazendo oferendas genéricas e mecânicas é investir no conhecimento e preservação da memória familiar. Isso pode ser feito de algumas muitas maneiras.



Family Album - Galina Gladkaya


Uma das formas mais óbvias de fortalecer as memórias é através de registros visuais. Fotografias dos falecidos, cartas escritas a eles, estátuas memoriais (para quem tem dinheiro suficiente para isso), dentre outros, são meios de fazê-lo. Aposte nos retratos antigos de seus antepassados. Coloque-os dando destaque aos ancestrais mais veneráveis em alguma parede de uma área central de sua casa. No próprio altar doméstico os retratos são complementos maravilhosos. Além disso, álbuns de fotografia e livros que registrem a história familiar podem ser feitos, e oferecidos aos antepassados passando-os na fumaça daquilo que for queimado no focolar.

 

O poder das histórias familiares

Além dos registros visuais, a fala é de fundamental importância. Através dela é que os conhecimentos ancestrais foram passados de pai para filho por incontáveis gerações. A voz transmite influências espirituais que podem ser muito poderosas – inclusive iniciáticas – nos contextos corretos. Em especial é importante que você valorize as histórias de vida e os “causos” contados pelos seus antepassados ou sobre eles. Repetir estas histórias para outras pessoas que tenham o mesmo sangue, ou que gozem de sua confiança, são uma das formas mais poderosas de fortalecer as memórias familiares e colher para os antepassados os benefícios delas.

Entretanto, tome cuidado com quem recebe as histórias de vida de seus entes queridos. Pessoas com conhecimento adequado e mal-intencionadas podem tentar subtrair força vital das memórias familiares se tiverem a oportunidade. Em alguns casos, elas serão severamente punidas pelos Antigos caso tentem fazê-lo, mas o prejuízo de arriscar uma perda do gênero não vale a pena. Guarde suas memórias familiares mais importantes para quem vai valorizá-las e respeitá-las.

 

O legado como oferenda

Dentre as coisas que herdamos de nossos antepassados estão por vezes ofícios, bens materiais, códigos de conduta, missões que eles assumiram e outras coisas que podem ou não nos parecer úteis. Uma das maneiras de oferendar a memória familiar é preservar e enobrecer o legado deixado pelos ancestrais. A título de exemplo, se você se tornar o sócio de uma empresa após o falecimento de um ancestral que tenha deixado essa posição para você, uma forma muito eficiente de honrá-lo (caso a empresa fosse realmente importante para ele) é dedicar esforço pessoal pelo bem-estar e pelo crescimento da empresa.

Nem só de grandes legados este princípio se serve... Manter a casa de seus avós conservada, bem-cuidada e sendo utilizada de forma positiva segundo os valores deles, por exemplo, já é uma ótima maneira de fortalecer a memória familiar por meio da manutenção do legado ancestral. O mesmo se aplica aos mais simples objetos, ideias e valores, contanto que eles tenham um peso emocional significativo o bastante para os que se foram.

 

Deixando ir...

É da nossa natureza lutar para preservar as coisas. Lutar contra a morte, contra a transformação... E com frequência perdemos. As memórias familiares por vezes não podem ser salvas, assim como as almas daqueles que passaram pela segunda morte. Quando nos vemos diante desse tipo de situação, é natural que haja sofrimento, mas nessas horas precisamos nos ater ao fato de que nada além daquilo que é divino toca a eternidade. As únicas coisas que nunca serão consumidas pela morte são as que se tornam parte integral da divindade. E mesmo aquilo que um dia volta para a chama sagrada do espírito tendo sido perdido, transformado e aparentemente esquecido não é perdido para sempre. Nada o é. A sabedoria de todas as coisas que eram, que são, e que um dia poderiam vir a ser, existe no Sagrado Coração e lá permanecerá.

Um dia, quando de alguma forma todos nós regressarmos a uma unidade com Ele, aquilo que houver se perdido será encontrado novamente. Até lá, acredite, o esquecimento não é mais do que um breve adormecer...



Pintura sobre a Comunhão dos Santos, o dogma católico ligado à reunião dos membros
da Igreja com Cristo. Em nossa tradição este conceito, além de fazer referência à Árvore
de Sangue e Espírito faz referência ao encontro de todos os espíritos na eternidade.


 

– DESENVOLVENDO UMA COMUNICAÇÃO –

Abertura de percepção e transes

Qualquer culto, e não somente o culto ancestral, é facilitado pela percepção espiritual assertiva de quem o mantém. É claro que todos nós temos níveis de percepção distintos, e a maioria de nós não será capaz de ver e ouvir os mortos com facilidade, mas existem algumas formas de trabalhar com a tratativa em questão que favorecem o ganho de uma maior intimidade com a comunicação mediúnica, especialmente em relação aos ancestrais. O vínculo que possuímos com eles é maior do que o vínculo com qualquer outra entidade, e isso pode ser aproveitado de alguma maneira.

Inicialmente, é preciso dizer que em nossa tradição não existe meditação imaginativa. Não recomendo a prática de simplesmente fechar os olhos e imaginar um cenário onde seus ancestrais se manifestarão, tal como é orientado em livros a respeito de caminhos modernos ocidentais. Da perspectiva tradicional – ao menos em bruxaria – esse tipo de prática na maioria das vezes diz mais sobre o “mundo interior” do praticante do que sobre sua relação com seres externos. E mesmo quando esse estado conduz o meditador para um transe mais profundo no qual um contato externo realmente aconteça, ruídos mentais podem (e na maioria das vezes irão) atrapalhar o processo. A menos que você pertença a um caminho espiritual que tenha sólida tradição de utilizar métodos meditativos ancestrais (algo que no mundo ocidental é uma raridade), recomendo não se meter com isso para os fins aqui expostos.

Dito isso, o primeiro passo para aprender a ouvir a voz da ancestralidade é calar a boca e dar tempo e espaço para que ela se manifeste. O silêncio mental e físico é importante porque nos permite estar atentos a estímulos que vem de dentro e de fora de nós mesmos, e que com o tempo podem ser mais bem discernidos um do outro. Muitas pessoas fazem suas devoções – não somente aos ancestrais – em um alvoroço de ansiedade, esperando pirotecnias mágicas imediatas e se frustrando quando nada visível acontece. É natural, principalmente na nossa época, fazer as coisas falando o tempo todo sem se permitir silenciar para escutar. Portanto, o primeiro passo é se acalmar e ficar em silêncio, e atento às suas percepções físicas, mentais e intuitivas após a realização de uma prática ancestral.

Algumas pessoas terão mais facilidade em intuir as coisas do que outras, mas uma percepção mais clara pode ser construída com esforço e determinação. O essencial é estar atento para qualquer pensamento, sentimento, intuição ou sensação física de presença que te pareça incomum em comparação às suas próprias. Para começar a discernir isso é fundamental praticar o silêncio contemplativo (prestar atenção em si mesmo e na própria mente) para entender como funciona a sua linha de raciocínio e o seu fluxo de emoções. Conhecendo a si mesmo, você saberá quando outra coisa estiver se intrometendo na sua percepção. Técnicas como a meditação zazen do budismo e uma longa contemplação de imagens religiosas em silêncio podem auxiliar no processo.

Além das percepções naturais que podem melhorar com o tempo, bem como da repetição e do conhecimento da própria mente, um outro mecanismo importante para a comunicação com os ancestrais é o domínio das técnicas de indução de transe. Isso porque nossa percepção extrassensorial tende a aumentar quando estamos em um transe profundo o suficiente para nos tirar do estado normal de vigília, mas não tão profundo que nos faça perder o contato com a realidade material. As maneiras mais usuais de atingir esse estado de leve transe podem ser a oração dos rosários (quando você já sabe as orações de cor e não precisa se distrair relembrando o texto), o uso de tambores e outros instrumentos musicais, a dança, os cânticos, entre outros. Algo valoroso pode ser a indução de pequenos movimentos, para frente e para trás, ou de um lado para o outro, enquanto faz suas orações.



"Instruções Práticas para Mesas Giratórias". As sessões espíritas foram muito
comuns em alguns contextos do renascimento ocultista europeu. A influência kardecista
chegou de forma muito discutível ao Brasil e por óbvio impactou a forma de olhar
práticas ancestrais, que passaram a ser vistas como perigosas, enquanto curiosamente
chamar espíritos aleatórios em sessões públicas não o seja.


Para não alongar mais do que o necessário este texto, recomendo que busque estudar como o transe ocorre e busque descobrir quais os estágios de alteração de consciência nos quais você sente maior aumento na sua percepção. E em última instância compreenda que nem todas as pessoas têm facilidade com esse tema. Respeite seus limites e progrida devagar, para continuar progredindo sempre.

 

Reconhecendo sinais dos mortos nos vivos

Depois de muitos e muitos anos cultuando meus ancestrais e conversando com pessoas que também o fazem, percebo que o sintoma mais escancarado de resposta do mundo espiritual dentro desse culto são os efeitos que ele causa em nossos familiares vivos. Através da ligação que existe pela Árvore de Sangue e Espírito, é comum que a nossa interação com os ancestrais ocasione o aumento da influência que eles exercem sobre os seus descendentes. A partir desse aumento, é comum que as pessoas vivas sintam o desejo de compartilhar informações dos falecidos com você, e em alguns casos de retomar honrarias aos mortos que elas próprias já haviam abdicado. Além disso as memórias familiares costumam ser relembradas, divulgadas e não raro enaltecidas pelos vivos mais afetados. Esse processo também pode ser em vários níveis curativo. Vi mais de uma vez problemas familiares que se arrastavam por décadas sendo resolvidos gradualmente depois que uma pessoa da família começou a fazer de forma correta o seu culto ancestral e pedir aos ancestrais pela harmonia na linhagem. Pessoas que antes não se falavam voltaram a ser amigas, opiniões intransigentes mudaram, entre outras “maravilhas”.

Infelizmente, contudo, essa influência toda não é sempre previsível, nem sempre palatável aos nossos gostos. Por vezes é justamente essa influência ancestral que te obrigará a reatar laços com pessoas que você prefere manter fora de sua vida, ou tratar de dolorosos problemas do passado que ressurgirão sem controle. Não subestime esses movimentos, nem fuja deles. Busque encará-los com responsabilidade e dialogue constantemente sobre eles com seus ancestrais. Agradeça por qualquer boa influência que eles causem em seus familiares vivos, peça que tentem exercer influências positivas para seus intentos e lide com diplomacia com esses pedidos. Se conduzir esses contatos com bom senso e cuidado, ainda que tenha de passar por situações desconfortáveis, você verá que tudo valerá a pena no final.

 

Oráculos e meios adivinhatórios

A comunicação com o mundo espiritual pode em grande medida ser exercida pela percepção mediúnica e pelo domínio das técnicas de indução de transe, mas de diferentes formas, interferências externas e internas podem prejudicar essa comunicação. A melhor maneira de contornar esse problema, ou mesmo de estabelecer uma comunicação mais direta e objetiva em momentos de necessidade, são os oráculos e as técnicas de adivinhação.

Para a definição de muitos, um oráculo é um mecanismo por meio do qual fala uma divindade ou outro tipo de entidade espiritual, enquanto as técnicas de leitura da sorte e previsão do futuro são alocadas como meios “adivinhatórios”. Acho que não faz muita diferença, já que seres espirituais podem se manifestar pelo segundo tipo de técnica e a primeira pode ser usada para questões banais se houver contexto para tal. O essencial aqui é a utilização de mecanismos oraculares, formas ancestrais de discernir mensagens do mundo espiritual ou confirmá-las quando foram passadas de outros modos.



Skull still life - Autoria desconhecida.


O Tarô, o Petit Lenormand e as sibilas de conversação são um bom meio de comunicação com o mundo ancestral desde que quem os utiliza seja competente o bastante para não se deixar levar por fantasias da própria mente. O estudo e o treino árduo podem capacitar qualquer pessoa a utilizar estes instrumentos, mas o seu uso sempre deve ser cauteloso. Só se pode ter razoável certeza de uma informação quando ela for repetida em três análises oraculares distintas. E todos esses baralhos e sistemas citados são passíveis de interferência por seres espirituais e magias de fascínio e ocultação, sendo por vezes necessário utilizar técnicas de magia que isolem a leitura desses “atrapalhos”. Para isso existem algumas possibilidades que se pode buscar aprender, como orações aos espíritos protetores da clarividência e o uso de amuletos, pós e outros.

Outras formas oraculares interessantes são as runas, a geomancia, jogo de grãos tradicional dos Balcãs (para quem tiver oportunidade de aprendê-lo), e os jogos tradicionais dos caminhos afro-diaspóricos que, nas mãos de um sacerdote competente e habilitado, podem fornecer a você recomendações precisas e objetivas.

Muitas pessoas não utilizam oráculos em suas devoções e nem por isso o culto ancestral que realizam é inferior. Entretanto, se você deseja aprofundar a nível magístico a sua relação com seus ancestrais, é inescapável ter apoio oracular de qualidade. Não importa qual oráculo você escolha para buscar ou confirmar as mensagens de sua ancestralidade, o que importa é que você o estude de forma profunda e responsável, com empenho e dedicação, ou que você busque recorrer a um bom oraculista caso não tenha domínio de nenhuma técnica que te sirva no momento.

 

Necromancia

Durante as últimas décadas criou-se uma ideia em nosso meio de que qualquer prática que se relacione aos mortos é “necromancia”. Para nosso entendimento, a palavra necromancia na realidade refere-se principalmente aos atos de conjuração de um morto que esteja no mundo inferior para que venha forçosa e não-naturalmente ao nosso mundo, seja para responder perguntas (relembrando a própria etimologia da palavra mancia) ou para realizar serviços. Segundo a definição clássica, a necromancia também pode ser a adivinhação com partes de cadáveres humanos ou a utilização das almas dos mortos e de seus restos para fazer o mal a um alvo, como é extremamente comum de se fazer na bruxaria tradicional europeia, com os pactos com espíritos em locais assombrados e o uso de agulhas de mortalha e outros elementos fúnebres. Num terceiro sentido, mais incomum, as práticas que visam adulterar o curso natural da vida, como a transmigração de alma de um corpo velho para um corpo jovem – supostamente intentada por magistas de várias tradições –, as tentativas de ressurreição dos mortos e a ressurreição de corpos dos mortos para serem habitados por outros seres, são práticas que caem no escopo de significado da palavra necromancia em razão de transgredirem de forma tida como “antinatural” o limiar entre a vida e a morte.



Ilustração de John Dee em necromancia no cemitério - Autoria desconhecida (c.1890)


Desnecessário dizer que muitas dessas práticas são condenáveis sob o ponto de vista da moralidade hegemônica e algumas também são malvistas dentro da própria bruxaria. O uso da palavra necromancia para se referir ao mero culto ancestral ou às práticas espíritas é um equívoco do nosso ponto de vista. Encaramos isso como uma tentativa de impor uma aura escura e suja a coisas que são limpas, quando não razoavelmente higienizadas, somente para fins de propaganda pessoal e construção de uma imagem “trevosa”.

A necromancia não tem ligação necessária com o culto ancestral, embora ela possa ser exercida por quem tem conhecimento de como fazê-lo. Por óbvio, o pouco de conhecimento prático que eu tenho sobre esse assunto não precisa nem deve ser exposto nesse texto para leigos. Se você deseja aprender esses mistérios, busque por instrução numa tradição mágico-religiosa onde o conhecimento sobre eles ainda exista, e evite experimentações por conta própria se não souber limpar suas próprias lambanças sozinho.

Serve o ditado dos Antigos: “A prudência tem duas filhas: a saúde e a longevidade”.

 

– ESTRUTURA DE PRECES SUGERIDA –

Preces diárias

Ao se aproximar de seu altar pela manhã, se persigne com água benta e bata um sino para despertar as forças espirituais que ali se acumulam em razão da ressonância e saúde. Você pode utilizar alguma uma frase como:

Salve os ancestrais, salve as santas almas de nossos antepassados, salve o fogo sagrado de nossa casa e família!

Se tiver ervas de bênção e usar um fogo perpétuo, queime um pouco delas na chama para incensar o altar. Ofereça aos ancestrais uma porção da comida do seu café da manhã e algo como uma xícara de café. Diga o que pede a eles nesse dia e dedique então um Pai-Nosso, uma Ave-Maria e um Glória ao Pai. Você pode incluir as devoções diárias aos santos e aos eventuais gênios familiares que possua nesta ocasião.

 

Preces semanais

Na sexta-feira ou no domingo, em horário propício ou quando possível, se persigne com água benta e bata o sino no altar. Incense o altar com ervas de benção. Se tiver óleo bento, pode ungir a testa, nuca e pulsos com ele. Saúde conforme faz nas preces diárias e acenda uma vela ungida de azeite de oliva ou óleo bento, dedicando-a aos seus ancestrais. Você pode utilizar palavras como:

Eu dedico esta vela e o fogo santo que nela arde aos meus ancestrais, às santas almas de meus antepassados, para que me abençoem com sua proteção, me guiem com sua sabedoria, me permitam não cometer os mesmos erros que cometeram em vida, e me ajudem a levar a diante as boas coisas de seu legado (entre outros pedidos que desejar).

Faça outras oferendas, como a troca da água dos ancestrais que é dedicada a extinguir a sede e exaustão que porventura sintam. Após dedicar todas as oferendas, inicie a reza do terço do rosário e dedique-a aos seus antepassados e aos santos e anjos (ou outros espíritos compatíveis) ligados à sua linhagem familiar. Você pode usar o mesmo tipo de frase que foi usado para dedicar a vela.

Ao concluir as orações, faça a oferta do seu fôlego ao fogo perpétuo do altar e/ou à vela oferecida aos ancestrais. Gaste um tempo em contemplação e guarde suas percepções.

 

Época de Finados

Seguindo o padrão das práticas semanais, organize uma oferenda maior para seus ancestrais no dia 2 de novembro. No mesmo dia, faça a visita ao cemitério para honrar os túmulos dos seus entes queridos conforme explicado mais acima neste texto. Se você fizer parte de outras tradições que guardam práticas ancestrais neste dia, elas podem ser feitas em conjunto se forem compatíveis com o catolicismo popular. Um exemplo seria o culto à Santa Morte e o culto à Linha das Almas na Umbanda, ambos realizados nesta mesma data.



A relevância do cruzeiro das almas é um elemento em comum de várias
tradições que possuem uma base no catolicismo folclórico.


 

Considerações Finais

Ao longo deste texto passamos por muitas práticas tradicionais de culto ancestral. Muitas delas tem ecos em outros caminhos e algumas são mais específicas. O maior interesse que tive ao produzi-lo foi ajudar na busca daqueles que desejam cultuar sua própria ancestralidade, mas ainda não dispõem de conhecimento e meios para tal. Eu o fiz por razões coletivas, pelo valor que dou não apenas à minha ancestralidade, mas a TODAS as ancestralidades. E o fiz também por razões pessoais, porque é meu desejo que as práticas de minha tradição tenham serventia para além daqueles que as mantém de forma iniciática. Tal como eu disse na primeira parte desse longuíssimo texto, as ancestralidades são como árvores. Elas se ramificam e se enxertam umas nas outras o tempo todo através dos casamentos, dos nascimentos de filhos, do distanciamento de irmãos, das iniciações e de outras tantas ocorrências da vida humana. Embora ninguém que tenha lido esse texto até o final seja somente por isso um iniciado na tradição que o embasou, eu acredito que algo benéfico – o tipo de bênção que raras vezes na vida é compartilhada – pode ser recebido dela como se fosse uma pequena nova veia ancestral. Não uma veia minha, nem uma veia especificamente pertencente à minha tradição, mas sim uma veia da própria árvore que todos nós, seres humanos, formamos juntos.

Eu desejo que a árvore ancestral de todos vocês, atenciosos leitores, seja forte, robusta e próspera. E que aqueles dentro dela que tiverem respeito pelo sagrado e boa-fé uns para com os outros encontrem um caminho para congregarem juntos na eternidade.

Que o sangue que tudo liga vos abençoe, hoje e sempre.

 

 


Flâmula memento mori, exposta no Museu Etnográfico do Friuli.

 

 

 

 

Recomendações

Este texto baseia-se quase que totalmente na tradição e nas experiências da oralidade, mas algumas recomendações para os interessados em estudar existem. Conforme novas surgirem, vou inseri-las aqui e também na página “Recomendações”.

Italian Folk Magic – Mary Grace Fahrun : Um livro voltado à magia folclórica italiana na diáspora para os Estados Unidos, oferece um lampejo significativo de como este universo encara a espiritualidade doméstica e alguns aspectos da relação com a ancestralidade.

Cidade Antiga – Fustel de Coulanges : Livro que me foi recomendado pelo Vinícius Pimentel, por abordar o culto aos mortos na antiguidade, uma das raízes do culto ancestral nas práticas tradicionais que ainda sobrevivem na nossa sociedade.

Slavic Witchcraft: Old World Conjuring Spells and Folklore – Natasha Helvin : Um livro voltado às práticas mágicas de origem eslava, escrito por uma filha da diáspora para os Estados Unidos. Oferece um olhar sobre diversas práticas e superstições russas sobre os mortos que em parte são muito semelhantes à cosmovisão apontada por mim neste texto.

Consorting With Spirits – Jason Miller : Não é um livro sobre ancestralidade, mas na minha opinião é o melhor livro já escrito sobre o trabalho com espíritos por um praticante de magia. O autor destrincha assuntos complexos de forma objetiva, direta e inteligível, e desconstrói muitos equívocos (tanto de pretensos tradicionalistas puristas quanto de ecléticos modernos sem juízo), fornecendo uma abordagem para a relação com os seres espirituais que é equilibrada, responsável e eficaz, abrangendo desde uma cosmovisão politeísta até a cosmovisão cristã-herética e diabolista. Não exagero ao dizer que foram este autor e suas obras que fizeram renascer algum entusiasmo em mim para ler obras escritas por autores do meio esotérico novamente.

Honoring Your Ancestors: A Guide to Ancestor Veneration – Mallorie Vaudoise : É um bom livro para se obter um contato inicial com muitos dos assuntos que foram abordados neste texto. Tomei algumas referências trazidas pela autora como citação acerca da visão de outras tradições. De modo geral é um bom livro, mas não são todas as abordagens propostas que considero alinhadas ao meu modo de enxergar o culto ancestral.

 

 


3 comentários:

  1. Meu querido, gratidão por suas dicas pra quem nada entende do assunto, como Eu rs... Abraços fraternos! Fiat Lux🔥

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    1. Que bom que está sendo útil! Fico muito feliz! Abraço! :)

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  2. Você deveria publicar um livro.

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