sexta-feira, 25 de julho de 2025

CHRISTOPHORUS: De Lupercus e Hermanúbis ao santo cinocéfalo

Por Draco Stellamare, a.k.a Hercle Lupino

A narrativa mítica das tradições não nasce a partir do nada. Ela é o resultado de um longo processo de trocas, amálgamas, transliterações e traduções que ocorrem com os simbolismos mágico-religiosos ao longo da história. Um perfeito exemplo disso é a figura de São Cristóvão em sua representação cinocéfala (com cabeça de cão), amplamente perseguida nos últimos séculos, mas ainda sobrevivente no folclore e nas tradições de bruxaria europeias e diaspóricas. Essa figura, que corrobora diversos e complementares mistérios, relaciona-se a representações caninas, lupinas e cinocefálicas anteriores ao cristianismo, como as figuras do deus lobo italiota que originou o romano Lupercus – ora representado com cabeça de lobo, ora como fauno –, os cães da horda de Hécate ou Diana Trivia, e o sincrético Hermanúbis do Egito helenizado.



Os cultos do cão e do lobo na península itálica são muito antigos, e já eram praticados por vários dos povos que habitaram o local antes da expansão política romana, como os lígures e os sabinos. Inicialmente, a divindade loba (ancestral do cão) não era muito diferente da Mãe-Ursa dos povos do sul: caracterizava-se pelo totemismo e por sintetizar uma deidade clânica, cosmologicamente central na visão de mundo do povo que a cultuava, e dotada de características tanto primordiais quanto apotropaicas. Com as movimentações entre esses diferentes povos e a assunção de um modelo religioso politeísta curvado aos centros de poder político e social que surgiam, tais divindades clânicas e locais passam a ser inseridas numa cosmologia onde adquirem um papel secundário ou derivativo em relação aos deuses principais dos dominadores políticos. É assim, resumidamente, que a figura primordial e primitiva do deus lobo – tanto em aspecto masculino quanto feminino – se desdobra em Lupercus (um deus que passa a ser considerado filho de Marte em alguns contextos, ou uma face de Sabazios, Dis Pater, Februo ou Fauno em outros) e as figuras lupínicas matriarcais como a heroína Valeria Luperca e a própria Lupa Capitolina, que nutriu Romulo e Remo.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

A Sinergia e seu valor na Bruxaria Tradicional

 Por Draco Stellamare

A leitura de algumas passagens do livro Della Medicina, de Lisa Fazio, me trouxe um insight interessante sobre o papel que o coletivo desempenha no desenvolvimento dos saberes tradicionais e como até mesmo a sua estruturação prática depende das relações entre o praticante e o outro – sendo esse outro tanto o alvo da prática, quanto o auxiliar dela, um elemento humano ou não humano presente no mesmo contexto e todo o restante da teia de complexidades que os envolvem. A autora do livro menciona que a medicina folclórica italiana nasceu – como diversos saberes tradicionais de diferentes etnias – através de uma emergência de conhecimento propiciada pela sinergia de diversos seres: humanos (dentre os quais a relação entre muitas gerações que legaram conhecimento de múltiplas formas às gerações posteriores, e a relação entre membros de uma mesma comunidade que interferem e trocam entre si no mesmo espaço), não-humanos (como as plantas, animais e demais fatores naturais com os quais o humano se relaciona de forma muito profunda) e supernaturais (como espíritos, deidades, e outras presenças de cunho transcendental à matéria nua e crua, que fazem parte daquele complexo de relações).



La Danza - Guglielmo Zocchi (1874)

O uso da palavra sinergia é muito propício, pois ela vem de συνεργία que traduz o alinhamento entre duas partes que permite a manifestação de algo que ultrapassa suas individualidades. Ou seja, a união harmônica, sinérgica, dos seres que coabitam um mesmo espaço é superior à soma de suas partes individualmente consideradas. É com base nesse mesmo princípio que podemos entender a importância do coletivo tanto nas práticas da magia folclórica – de qualquer etnia e contexto – quanto nas bruxarias tradicionais.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Meditações sobre o “esoterismo bruxo”

 Por Draco Stellamare

Há um assunto sempre muito debatido nos círculos de bruxos tradicionais que me faz refletir e procurar respostas no passado, tanto o meu quanto o dos outros. Esse assunto é a relação íntima e ao mesmo tempo conflituosa e incompleta entre a bruxaria historicamente precedente à Wicca de Gerald Gardner e o esoterismo – em sentido tradicional da palavra. A noção esotérica de tradição é o que faz com que muitos de nós tenhamos aderido ao termo bruxaria tradicional para designar as nossas práticas, pois ele reflete as noções de linhagem iniciática, simbologia coesa e alinhamento com os pressupostos e estruturas dados pela tradição perene (ou qualquer outro nome que se queira dar para esse mesmo conceito). Contudo, maiores detalhes sobre como se deu esse processo de “esoterização” de nossas bruxarias frequentemente fogem ao nosso entendimento.



No pouco tempo livre que me sobra entre o trabalho, a manutenção da vida doméstica e os afazeres pertinentes aos meus grupos de bruxaria, li um texto relevante da autoria de Andrew D. Chumbley – um autor frequentemente mencionado por mim e não por acaso – para a antologia Hands of Apostasy publicada em 2014 pela Three Hands Press. Esse texto se chama The Magic of History e, como o próprio título sugere, aborda as complexidades existentes entre a concepção acadêmica-historiográfica sobre o passado e a concepção interna às tradições bruxas sobre sua própria história. Chumbley elabora nesse texto uma linha de pensamento sobre a evolução das bruxarias inglesas que eu mesmo me valho para compreender as tradições italianas – em específico a minha.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

E-book “A Chave da Crosara”

Por Draco Stellamare

O primeiro lançamento do selo editorial Tria Sabbatica – pertencente à Editora A Língua da Serpente – vem na contramão daquilo que tenderá a ser o padrão das futuras publicações. Trata-se do e-book A Chave da Crosara, escrito por mim e disponível ad eternum para aquisição pelo Instagram do nosso selo editorial.




“Crosara” é um termo arcaico e regional do Friuli de séculos passados que designava a encruzilhada de quatro caminhos, na qual o Diabo podia ser invocado. O título, portanto, significa “a chave da encruzilhada”, porque este é o objetivo da obra: ser um fator de abertura de caminhos para os buscadores de uma vivência mais tradicional de bruxaria.

TRIA SABBATICA: Como nasceu o selo editorial sobre bruxaria tradicional

Por Draco Stellamare





Algo que considero uma grande bênção em minha vida é o fato de que meu caminho espiritual me possibilitou conhecer grandes pessoas, algumas das quais me permitiram estabelecer vínculos com elas que transcendem as relações comuns e expandem e muito o meu próprio potencial. Algumas dessas conexões, fruto da amizade e da parceria de anos, foram o solo fértil do qual nasceu essa iniciativa chamada Tria Sabbatica.