quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Stregoneria Liventina in Terra Brasilis: Um olhar sobre a minha tradição

 Por Draco Stellamare

              Tenho escrito muitas coisas desde que comecei este blog, da a bruxaria alemã nos Estados Unidos até diversas nuances da stregoneria italiana, que como já devem saber é mais plural do que se possa imaginar. Contudo, não escrevi até hoje sobre a minha própria tradição e como ela funciona, e percebo que isso gera expectativas em alguns dos meus leitores. Vocês têm culto aos deuses pagãos? Você tem um coven? Como posso me iniciar na sua tradição? Entre outras, são perguntas que aparecem de vez em quando por meio das redes sociais sempre que eu mostro alguma coisa que pertença a nossas práticas. Essa postagem é uma tardia explicação sobre a tradição que mantenho, suas origens, como ela chegou até aqui e para onde eu acredito que ela esteja caminhando. Não vou revelar coisas que considero íntimas, excessivamente polêmicas ou secretas, e nem vou me alongar demais nas explicações. Mas espero que gostem mesmo assim e que algumas ansiedades sejam diminuídas através desse vislumbre da minha história que eu vos ofereço.



Imagem que me remete à relação com os espíritos da água no Friuli.
Fonte IA.

              Minha tradição – assim como a maior parte das tradições semelhantes que já tive o prazer de conhecer – é no todo um conjunto orgânico de diversos laços tradicionais. O que quero dizer com isso é que existem diversas práticas mágicas, conhecimentos, mitos e ancestralidades que se cruzaram no decorrer das suas transmissões de uma geração à outra. A sabedoria para lançar ou exorcizar o malocchio é um laço que é transmitido de uma pessoa à outra de forma linear, tal como a sabedoria para conjurar os mortos, a sabedoria para curar o “mau-jeito” etc. São diferentes linhagens, que ora convergem, ora se separam, e que têm origens que podem ser até mesmo longínquas umas das outras, considerando os ramos de nossa árvore ancestral. Algumas provêm dos meus antepassados que vieram do sul da Itália, outras estão fortemente enraizadas no nordeste italiano, e outras ainda foram adquiridas aqui, em solo brasileiro. Mas existe um fio condutor que eu compreendo como a principal de todas essas transmissões ancestrais, ao redor do qual todas as demais práticas se acomodam, e é esse o legame (laço) que eu pretendo abordar como a fonte e o denominador comum de nossa stregoneria.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

LIVRO: Fundamentos de Bruxaria Tradicional e Stregoneria

 Por Draco Stellamare

    Algumas vezes na vida encontramos pessoas cuja trajetória une mundos diversos e sintetiza diversos saberes ancestrais, criando novas perspectivas e suscitando promissores debates. Esse é com certeza o caso de Cleber Lupino Haddad, ou como é mais bem conhecido: Sett Lupino, o autor da obra Fundamentos de Bruxaria Tradicional e Stregoneria, lançada em dois volumes pela Editora Manus Gloriae, para a qual eu tive o prazer e a imensa honra de escrever o prefácio. Tamanha honra se deve ao fato de que uma das principais vozes a falar da bruxaria italiana no Brasil tenha sido este ilustre bruxo, através do seu blog Congrega Lupino, que serviu de inspiração para eu mesmo e outras tantas pessoas que fazem parte destes caminhos ou neles possuem interesse.




CULTO ANCESTRAL - Parte 2: Prática

Por Draco Stellamare


Memento Mori - Edwaert Collier (1640-1707)


Na primeira parte deste texto abordei conceitos e entendimentos que são necessários para uma abordagem mais profunda do culto ancestral sob a ótica de minha tradição. Agora, tendo assimilado uma ideia mais orgânica da ancestralidade, vamos discutir como se estrutura uma prática de culto ancestral. Não é minha intenção fornecer um esquema pronto e imutável, mas sim uma estrutura compreensível para que cada leitor possa compreender o que é adequado fazer – dentro de uma miríade de possibilidades de como fazer – e, tão importante quanto isso, o porquê fazer.

Portanto, eu partirei do princípio, tomando por exemplo um leitor leigo que não esteja familiarizado com nenhuma forma de devoção ancestral equivalente ao que será aqui discutido. Mais adiante, a complexidade do culto pode aumentar à medida que os primeiros passos forem dados com sucesso. Espero que gostem!

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

CULTO ANCESTRAL – Parte 1: Teoria

Por Draco Stellamare



Vanitas Still Life (ca 1665-1670) - Jan Van Kessel


Uma árvore separada de suas raízes seca e morre. Ela se tornará matéria orgânica para enriquecer o solo onde outras árvores podem um dia surgir, mas aquilo que ela foi um dia será esquecido neste mundo. Não é por acaso que pensamos em linhagem familiar como uma árvore. Tendemos a organizar a genealogia dessa forma, mas frequentemente o fazemos como se o indivíduo no tempo presente fosse o “tronco”, do qual seus antepassados brotam como ramos, e na realidade é justamente o oposto: eles são nossas raízes, adentrando o mundo ctônico dos seres que estão mortos, enquanto a nossa descendência sanguínea e espiritual são os ramos que se erguem a partir de nós. Um não pode existir sem o outro: raízes, tronco e ramos superiores formam uma árvore completa. Por sua vez, as árvores interagem umas com as outras, tanto acima da terra quanto embaixo, formando uma rede de trocas e amálgamas da qual conhecemos muito pouco a respeito.

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Dicas "intolerantes" para quem está começando



 

             O mundo da magia e da espiritualidade é uma selva perigosa, uma selva que constantemente é encarada com inocência e despreparo por quem está começando sua caminhada. Muitos coachs espiritualistas e tiktokers do ocultismo retroalimentam essa inocência e esse despreparo, dando força para tendências da espiritualidade moderna que não são lá muito saudáveis do ponto de vista dos caminhos tradicionais.

              Para ajudar você, fofo principiante, a NÃO FAZER MERDA (ou pelo menos fazer merdas menos graves e menos difíceis de reverter), bolamos esse texto com algumas dicas valiosas que podem impedir você de transformar sua vida espiritual num lixão ou numa fábrica de ilusões em poucos anos.

quinta-feira, 20 de julho de 2023

SANGUE BRUXO: Comentários sobre sangue, marca e a bruxaria como condição pessoal

O texto a seguir é a expansão de um pequeno ensaio que escrevi em 2020 sobre os conceitos mais tradicionais que conheço sobre sangue e marca na bruxaria. Ele integra uma parte do meu livro sobre stregoneria que está em processo de escrita, especificamente no capítulo dedicado a delinear o conceito de bruxaria segundo nosso entendimento.



Satã marca a fronte de uma aprendiz de bruxaria - Francesco Guazzo (c. 1626).

Algumas das fantasias mais comercializadas na bruxaria contemporânea são os conceitos de marca de bruxa e do sangue bruxo, mas ambos são conceitos muito mais complexos do que se supõe e que infelizmente vem sendo usados há muito tempo como desculpa para um elitismo espiritual, bem como justificativa arbitrária para aceitar ou rejeitar pessoas em grupos destinados ao tema. Longe de serem originalmente justificativas para que um grupo de pessoas se sinta especial perante o resto da humanidade, como se pertencesse a uma raça superior, a marca bruxa e o sangue bruxo são respectivamente símbolo e característica do pertencimento de um indivíduo a uma linhagem espiritual.

domingo, 28 de maio de 2023

ARADIA: Entre a tradição e a fantasia



Magic Circle - John William Waterhouse (1886) - Quadro de um artista italo-britânico
que sempre surge relacionado à estética atribuída a Aradia e às bruxas italianas.


A figura de Aradia é uma das mais conhecidas do universo da bruxaria após o revival ocultista da virada do século XIX para o século XX. Ela aparece no âmbito público pela primeira vez com a publicação de Aradia, ou o Evangelho das Bruxas, de Charles Godfrey Leland, em 1899. Sua aparição literária como um “messias” das bruxas italianas inspirou os primeiros praticantes da wicca tradicional britânica na composição de seus textos litúrgicos, e serviu de exemplo para todo um movimento de resgate da feitiçaria e do sagrado feminino que se desdobraria nos anos seguintes a partir da flexibilização do acesso das pessoas à prática da bruxaria moderna. Não existem, no entanto, comprovações concretas de sua existência, seja como personagem histórica, seja como personagem mítica existente em tradições folclóricas fidedignas.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

ARADIA NA SARDENHA - Artigo de Sabina Magliocco

Deixo abaixo uma livre-tradução do artigo da antropóloga Sabina Magliocco, carinhosamente fornecida por Remus Lupino, para que o público brasileiro possa usufruir mais facilmente dessas informações. Agradeço ao Remo por ter me disponibilizado o texto, bem como pelas suas contribuições ao meu próprio texto sobre Aradia que espero concluir em breve. Relembro que não somos proprietários deste artigo e que esta tradução foi feita meramente para fins informativos aos interessados.

~Draco Stellamare.




ARADIA NA SARDENHA

A Arqueologia de uma Personagem Popular

Por Sabina Magliocco[1]

 

sexta-feira, 17 de março de 2023

Comentário sobre a esquerda e a direita na bruxaria



              Tornou-se comum ao esoterismo ocidental moderno dividir a si mesmo e as demais práticas mágico-religiosas entre caminhos da “mão-direita” e caminhos da “mão-esquerda”, recorrendo a interpretação ocidental do Tantra e dos pilares da Cabala como explicações para a existência desses dois caminhos. Enquanto o caminho da mão direita traria uma busca pelo alinhamento à vontade divina e uma harmonia com o cosmos, o caminho da mão esquerda traria para muitos praticantes as ideias da auto-superação e da revolta contra as instituições, normas culturais e religiosas da sociedade hegemônica, por vezes, permeadas de um propósito “anticósmico” mais ou menos evidente conforme a narrativa em questão.