quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Quando a verdade se torna mentira

Texto originalmente publicado via Facebook

Um negócio que me chama atenção – e também me entristece – é a fanfarronice polarizada com relação a essa figura mitológica, quase próxima de uma fábula ou de uma lenda urbana, que é a tal da "bruxaria hereditária".

É uma fanfarronice em duas vias, diga-se de passagem.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

NEMORALIA: O antigo festival de Diana e sua transformação na Festa da Assunção de Maria

 

   O senso comum da bruxaria moderna, infelizmente, acredita numa ruptura total e absoluta das práticas pagãs com o advento da hegemonia do cristianismo romano. Ruptura esta, por sua vez, que culminaria na perda total das práticas mágicas do mundo politeísta, as quais só teriam ressurgimento possível com a Wicca de Gardner e outras vertentes neopagãs que vieram a florescer após o século XIX, entretanto, as tradições folclóricas e ancestrais demonstram – e são amparadas pela pesquisa acadêmica – que este não é o caso. O processo europeu de transição entre o politeísmo e o monoteísmo cristão foi, em muitos locais, um processo carregado de nuances, de readaptações e da ressignificação de práticas que se mantiveram preservadas, se não em magnitude e esplendor, ao menos em pragmatismo e essência, sob uma roupagem cristianizada.

 Um destes exemplos – e que é o meu favorito, tanto por estar intimamente ligado à história de meus antepassados quanto por dizer respeito à minha principal divindade de culto – é o festival de Diana Nemorensis (Diana Trivia) e sua subsequente transformação nas festas católicas de Santo Hipólito e da Assunção da Virgem Maria.


c. 1720, Autor desconhecido.

Diana e seu cão - Autor desconhecido, c.1720.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Sobre Fé e Crença


Fé não é a mesma coisa que crença.

Pode parecer estranho afirmar isso sendo que a maior parte das pessoas utiliza estas duas palavras como sinônimos, mas sob o meu ponto de vista elas representam coisas muito distintas.

A palavra “fé” vem de fides no latim e significa confiança, mesma raiz de “fiducia”. O ato da fé é um ato, portanto, de confiança. Já a palavra “crença” vem de credentia, no sentido de acreditar, dar crédito a alguém ou alguma coisa. E por mais que confiar e dar crédito tenham o mesmo sentido em determinados contextos, entendo que confiar é ligeiramente diferente de acreditar no que tange os mundos invisíveis da espiritualidade.

sábado, 2 de maio de 2020

Comentário sobre o Culto aos Ancestrais


Esta pequena publicação se trata da minha visão sobre o tema, construída com influências da minha linhagem e da tradição que eu faço parte, mas ainda assim é uma visão pessoal.


Muita gente reproduz um discurso de temor àqueles que já se foram. É ensinado em algumas religiões que não é saudável cultuar espíritos de familiares mortos dentro de casa, e há pessoas que assimilam isso sem ser destas religiões, como se fosse uma regra geral da existência.

Pois bem, eu discordo radicalmente dessa visão, e eis o porquê.


Os ancestrais são a matéria que gerou nosso corpo. Somos a continuidade física, mental, e espiritual deles. Esta continuidade é vista em meu caminho como uma árvore de sangue e espírito, crescendo pelo tempo e pelo espaço (ou mesmo um rio de sangue fluindo por ele). O mais lógico é que os indivíduos que formam essa árvore desejem nosso bem estar, nosso crescimento, e a perpetuação do legado deles através de nós. Afinal, quando damos um passo para trás ao encarar os desdobramentos da vida percebemos que somos todos um único ser.


Imagem: Around the Tree - Glenn Brady.

Não existe uma explicação razoável para assumir que depois de mortos, os ancestrais passariam a nos fazer mal, deliberadamente.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Reflexão sobre ritmo no Cosmos


Imagem: Anima Mundi, de Robert Fludd - Utriusque Cosmi Historia, 1617.


Ninguém colhe algo que não foi plantado.

Parece óbvio dizer que não estamos separados do Cosmo e que a magia opera segundo os ritmos e critérios cósmicos, mas frequentemente as pessoas não compreendem essa realidade e os atos mágicos "falhos" causam desespero e descrença.

Os antigos me dizem que ninguém neste mundo ou em qualquer outro colhe algo que não foi plantado antes. Pode não ter sido plantado pela mesma mão que colheu, mas cada coisa existente é resultado de causas anteriores e dos ritmos e possibilidades do "relógio" cósmico.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Sobre a Bruxaria Italiana - Partes 4 e 5 (final)



Parte 4 – Stregoneria e as narrativas modernas que nela se inspiraram


 A concepção pública da bruxaria começou a tomar contornos um pouco distintos daqueles ideais populares que foram abordados na primeira parte desse texto em meados do Séc. XIX e primeiras décadas do Séc. XX, quando alguns acadêmicos voltaram seus olhos ao estudo do que pareciam ser indícios de um culto pagão sobrevivente por toda a Europa (hipótese desacreditada atualmente) e quando, paralelamente, as grandes ordens ocultistas da modernidade começavam a aparecer e se manifestar publicamente. Foi o início de uma longa era que nos trouxe a Golden Dawn – Ordem Hermética da Aurora Dourada, a Teosofia de Blavatski, a criação da Thelema e da Wicca Gardneriana, e o surgimento de figuras como Aleister Crowley, MacGregor Mathers, Gerald Gardner e outros tantos nomes do esoterismo moderno.

 Nesse contexto, um dos principais escritores ainda no Séc. XIX que iniciará um processo de ressignificação da bruxaria aos olhos do público é Charles Godfrey Leland, um folclorista norte-americano que publicou um livro com o título de Aradia: O Evangelho das Bruxas. Tratava-se de um compêndio de mitos, receitas e depoimentos supostamente colhidos de uma bruxa chamada Maddalena Talutti que, segundo Leland afirma, recolheu as informações de diversas outras bruxas atuantes na região da Toscana no centro-norte na Itália.


Figura 13. Capa da primeira edição do "Evangelho das Bruxas" de Charles G. Leland. Fonte: Wikipédia.

 O conteúdo do Vangelo (evangelho) de Leland é até hoje controverso, pois trouxe várias narrativas que sugerem uma sobrevivência ininterrupta de mitos e práticas pagãs na modernidade sem influencia alguma do catolicismo romano – religião profundamente entranhada em grande parte das práticas de magia do povo italiano. Além disso, não há outros indícios que corroborem a existência – naquela época – de um culto organizado às deidades pagãs na Toscana além daqueles que são trazidos pelo próprio Leland em outros escritos seus como Etruscan Roman Remains Legends of Florence, que também falam de lendas camponesas de cunho pagão na Toscana e na região da Emilia Romagna.

Sobre a Bruxaria Italiana - Parte 3



Parte 3 – Stregoneria e suas nuances culturais


 A Itália apenas adquiriu unidade nacional enquanto país após a Guerra da Unificação (Risorgimento) finalizada totalmente apenas em 1870.

 Até então, a região era um aglomerado de diferentes povos com diferentes concepções de nacionalidade e que guardavam semelhanças uns com os outros, porém, possuíam diferenças muito expressivas tanto em termos de língua quanto em termos de cultura.


Figura 8. Mapa do território da Itália em 1843, ainda dividido em oito estados distintos. Fonte: Wikipédia.

 Tanto isto é verdadeiro, que é possível observar que houve um grande esforço por parte do governo pós-unificação para reprimir o uso dos inúmeros dialetos locais falados pelas populações das diferentes regiões italianas. As crianças que tinham acesso ao estudo passaram a ser alfabetizadas pela escola unicamente no dialeto fiorentino que foi eleito como italiano “standard”, ao passo que quase todos os meios de comunicação também eram forçosamente em italiano standard. A mera fala dos dialetos locais nas ruas, em algumas regiões, podia ser punida com severidade pelas autoridades, e é justo dizer que por um tempo um grande estigma social se formou com relação aos dialetos, sobretudo os do sul da península. 

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Sobre a Bruxaria Italiana - Parte 2


Parte 2 – Stregoneria, entre êxtases angelicais e sonhos diabólicos


A voz mais conhecida ao falar de bruxaria na história da Itália é o historiador Carlo Ginzburg, que abordou o tema principalmente em seus livros O Queijo e os VermesCaminhantes do Bem e História Noturna: Decifrando o Sabá.

 Os dois últimos títulos tratam com ênfase especial fenómenos extáticos e oníricos que culminaram no surgimento da ideia do Sabá das Bruxas, um tipo de reunião diabólica no qual as bruxas supostamente se encontrariam com o Diabo e performariam ritos avessos à liturgia cristã.


Figura 6. Pintura "El Akelarre", de Francisco Goya, retratando o imaginário do Sabá das Bruxas.

O autor estabelece no História Noturna uma série de conexões no tempo e no espaço geográfico da Europa entre os séculos XI e XIX através das quais busca evidenciar que muitas crenças populares confluíram para a visão inquisitorial cristã que se formaria do Sabá das Bruxas, e que tais crenças provavelmente provém de substratos culturais comuns a alguns povos europeus. Tais crenças populares expressas nos relatos obtidos pela Inquisição revelariam, pelas similaridades entre si, a existência de toda uma estrutura de crença e de prática espiritual subliminar àquela imposta pelo cristianismo hegemônico. Não uma religião pagã e secreta propriamente dita – como defenderam Margareth Murray e Gerald Gardner –, mas algo mais próximo do inconsciente e da herança ancestral manifesta através dos atavismos, fantasias e experiências oníricas de populações diversas em tempos e locais distintos, porém unidos por elementos simbólicos e impulsos psíquicos semelhantes.

Sobre a Bruxaria Italiana - Parte 1



Contextualização e análise sobre o passado, o presente, o real e o imaginário construído



 O que mais impera no debate público sobre bruxaria e em especial sobre bruxaria italiana é a desinformação. O desconhecimento, ou melhor, o conhecimento pela metade propicia que o absurdo seja dito e propagado por quem bem desejar e para os mais variados fins. Então esse texto e a indicação de bibliografia ao final dele são minha pequena e humilde contribuição na tentativa de diminuir a quantidade de desinformação circulando e seus consequentes aproveitadores.

 A minha vivência pessoal no caminho que eu sigo – que envolve também o contato e troca de informações com pessoas de caminhos semelhantes – é algo que poderá ser visto em alguns trechos, mas de modo geral procurei me ater ao que possui respaldo histórico ou antropológico.

 A primeira questão enfrentada ao falar de qualquer tipo de bruxaria será conceituar o que é bruxaria, e este seria um tópico muito extenso para incluir aqui. Por isso, simplifico estabelecendo para os efeitos dessa discussão que Bruxaria é um termo amplo que designa um fenómeno humano e social normalmente delineado nas descrições de diversos autores por: prática de magia e necromancia, conhecimento e utilização de poderes e recursos naturais para diversos fins, associação com simbologias obscuras ou noturnas e marginalidade social. Essa definição genérica proposta aqui atende ao que se convenciona como bruxaria de modo geral e também segundo os pontos de vista que devem ser levados em conta quando se fala de bruxaria de raiz italiana: os dos italianos e seus descendentes.

~


Parte 1 – Stregoneria como Magia Vernacular

 O termo correlato a “bruxaria” na língua italiana padrão é stregoneria. O significado dado a essa palavra pelo maior e mais respeitado dicionário online da língua italiana, o Treccani, é o seguinte:

stregonerìa s. f. [der. di stregone]. – 1. L’arte di streghe e stregoni, come facoltà di operare, attraverso poteri soprannaturali o con l’intervento di forze demoniache, in danno di altri, e l’esercizio stesso di tale arte: la dura persecuzione della s. dal medioevo fino al Settecentoaccusare qualcuno di stregoneriaessere condannato al rogo per stregoneriacredere nella stregoneria. In antropologia sociale, influsso malefico che molti popoli ritengono derivi da caratteristiche fisiologiche di certe persone, con effetti indipendenti dalla loro volontà, del quale influsso tuttavia, quando esse ne fossero consapevoli, si servirebbero per disseminare paura e conseguire scopi malvagi di potere e profitto. 2. Con valore concr., operazione di streghe e stregoni, pratica magica ai danni di qualcuno; maleficio, fattura: fareoperare o mettere in opera una s.credono che il figlio si sia ammalato per una stregoneria. In senso fig., azione misteriosa, diavoleria e sim.: deve aver certamente inventato una s. per essere riuscito così facilmente nel suo intento; anche, cosa strana, bizzarra, imprevedibile: quale s. ti ha fatto cambiare così repentinamente opinione?

Traduzindo as partes principais:

 stregonerìa s. f. [der. di stregone]. – 1. A arte das bruxas e bruxos, como faculdade de operar, através de poderes sobrenaturais ou com a intervenção de forças demoníacas, em prejuízo de outrem, e o exercício dessa mesma arte. (...) 2. Com valor concreto, operação de bruxas e bruxos, prática mágica voltada ao dano de alguém; malefício, feitiço (...) Em sentido figurado, ação misteriosa, diabolismo (...).

 A definição dada pelo Treccani demonstra levemente como os termos strega e stregoneria tem uma conotação muito negativa na cultura italiana. Essa conotação negativa tem papel fundamental na confusão que é feita quanto aos contornos da bruxaria italiana sobretudo nos países que receberam imigrantes italianos, como o Brasil, a Argentina e os Estados Unidos.